Uma (outra) possível ordem
A transcrição da caderneta “Era nesse sentido” se deu durante o primeiro semestre de 2020, em paralelo ao agravamento da pandemia de COVID-19; sendo assim, por motivos de segurança, o processo de consulta ao documento precisou ser feito virtualmente. A princípio, dividi os escritos em três partes: a primeira continha pensamentos que se iniciavam e findavam abruptamente no espaço de uma única página, sem aparente conexão com a anterior ou com a seguinte; a segunda era composta por anotações corriqueiras, um endereço, uma frase curta; e a terceira parte, um curto diálogo que levava a uma introspecção. Apesar de já familiarizada com a escrita fragmentária de Clarice Lispector, percebi que ali, dentre os escritos da primeira parte, havia uma coerência, porém as ideias que a autora explicitava pareciam traçar o caminho inverso de sua intenção. Me deparei, então, com uma imensa barreira levantada pelo trabalho de digitalização: esse meio saciava o olhar, mas deixava de lado o tato. Na tentativa de recriar o manuseio do documento físico, reproduzi a caderneta em casa, com papel, caneta e grampos, o que me permitiu observá-la de vários ângulos e, por fim, folheá-la de trás pra frente. Foi assim, mimetizando os prováveis gestos da autora, que vislumbrei a possibilidade de as duas últimas partes do documento terem sido redigidas a partir do meio da caderneta, respeitando o sentido proposto pela capa. Para escrever a primeira parte, no entanto, Clarice teria virado a caderneta de ponta-cabeça, percorrendo o caminho contrário, iniciando seu texto no meio da caderneta e concluindo-o na primeira página — por mais abstrato que pudesse ser seu pensamento (e até mesmo sua forma de tomar notas), existia ali certa ordem. Ela é apenas uma sugestão, uma (outra) possível ordem, das muitas de se ler um original de Clarice.
Por Clara Pereira
*
[págs. 9-2]
Ele sentia que nunca nenhum ato o simbolizara. sua íntima unidade nunca se esfacelara ou se entregara como unidade. O que um homem era estava aquém de sua vida. E que a humanidade era uma abstração.
Mas a comunicação não [adiantava]. No fundo mesmo, ele não a queria. Já experimentara mil vezes a comunicação, e era sempre alguma coisa de seca e consciente. Com amigos: [conversavam], [conversavam], e se por um momento se diziam alguma coisa importante logo o notavam, os olhos piscavam. Não a respeito tot da própria coisa supostamente, mas a respeito de um modo consciente, com pudor [mútuo] a respeito do fato de tocarem em coisas importantes. Muitas amizades suas tinham secado por causa de um momento essencial e da espécie de repulsa que se seguia.
Não parecia “natural” — e no caso “natural” era o antônimo de “pervertido” — não parecia natural que pessoas se compreendessem com a consciência e a cabeça. Era um contato errado, provocava uma aridez, um curto circuito! A comunicação tinha que ser entre alguém que não fosse perturbado pela consciência do outro. E esse outro, sem consciência, teria em si mesmo apenas uma sensação de “abrigo”.
O que tinha consciência não seria perturbado na criação, teria não teria um inimigo — e poderia usar inclusive dos fragmentos que são necessários para que se seja verdadeiro. não teria ninguém que percebesse esses fingimentos e cortasse a corrente de vida com uma atenção má. E o outro? O outro seria o que teria seria alertado. O outro Receberia a comunicação como se a recebesse da natureza, de um lago, de uma floresta! Esse outro seria o ser propriamente [vivo].
Era nesse sentido que G. não procurava nunca os seus “iguais”. Ele desprezava os seus iguais como fonte de vida.
[págs. 11-14]
– Eu deixo o leite cozinhando até que ele fique grosso — então tomo — como um creme.
– Isso é pura sensualidade!. riu-se ela referindo-se mais ao tom com que ele fala[r]a, do que à própria frase. logo depois de falar, arrependeu-se ligeira, porque havia palavras que, pronunciadas, criavam uma atmosfera falsa, como se abrigasse a [deveres] ou a atitudes. “Sensualidade” era uma dessas palavras ambíguas. Ele notou a palavra com um piscar mais rápido de olhos mas pulou por cima da própria perspicácia e continuou falando. No entanto estava mais alegre. Pareceu-me estranho e indiferente. Pareceu-me uma pessoa que soubesse muito bem como as coisas acabam. Não podia escapar da ordem do dia — cada hora parecia impor-lhe uma atividade e nenhuma deixava-o livre. Essa impressão era tão de estar preso ao destino era tão forte e real que, olhando a manhã, parecia surpreender-se de que tanta inefabilidade e graça pudessem ser correntes.