De: Clarice Lispector
Para: Elisa Lispector

Nápoles, 13 agosto 1945

Elisa, queridinha:

Recebi hoje sua carta de 17-7-45 e de 21-7-45. Querida, fiquei muito amolada com a história do livro sair errado, me aborreci enormemente. Você não tem culpa porque é de esperar que uma editora boa como a Leitura faça bem uma revisão e tenha pessoal adequado para isso. Ainda mais rever 3 meses e não acertar! Mas não ligue muito, no Brasil a coisa + normal é o uso da errata. Eu, por exemplo, sempre descontei nos livros que lia os erros, nem ligava, porque sempre se sente quando é erro de revisão e tipografia. Revisão é um dos trabalhos + chatos do mundo, mais perigosos e cansativos, e não há escritor que não se queixe da revisão. Um dia desses estava lendo um livro francês, editado por uma das melhores editoras francesas, a NRF, e me lembro que disse a Maury: está inteiramente cheio de erros de tipografia, e isso me espanta nessa editora. Mas se entendia tudo e o livro afinal não perdia com isso, naturalmente eu sei o que há de aborrecido nisso. Sobretudo para quem o escreveu e tanto cuidou de escrevê-lo bem. Mas o leitor passa naturalmente por cima disso, sem sentir. Querida, como eu quero ler seu livro! Que horror esperar até que venha d. Zuza! não há nenhum jeito de mandar antes? fico impaciente, e quase ofendida pela demora como se a culpa fosse sua. É que pegarei no livro com enorme prazer. Talvez aconteça comigo o que aconteceu com você, que sentia dificuldade de dar sua opinião sobre meu livro porque estava perto demais de mim como irmã e “conhecida”. Como é a capa? Pelo menos me informe de coisas, já que não posso ver o livro agora: quem fez a capa? Quantos exemplares? E mil coisas + que eu quero saber e que você esquece de contar. Quantas páginas tem o livro? É capaz de você estar me achando boba por fazer essas perguntas quase materiais, mas isso me dá, na falta de melhor, a idéia do livro.

Elisa, eu tenho escrito várias cartas que não chegaram aí. Uma com fotografia na praia, vocês não acusaram e foi há muito tempo por portador, e não posso reclamar porque não o conheço. Outra foi com encomenda por um rapaz do Banco do Brasil: na encomenda mandei 2 canetas-tinteiro e mais outras coisinhas. Outra carta, grande, está retida em Roma, à espera da maldita mala que não está seguindo normalmente. E outra, com várias fotografias, não chegou a Roma e penso que esteja perdida. Essa história de ter que mandar carta para a embaixada em Roma pôr na mala e a história de ter que esperar que as cartas de vocês cheguem antes a Roma e sejam mandadas para Nápoles me irrita horrivelmente. Espero ansiosamente o dia em que as comunicações postais da Itália e com a Itália se regulem e eu desprezarei então essa mala. Imagine, em 12 a 15 dias receber carta de vocês, diretamente! Você vê que eu não peço muito, me parece um sonho o período de Belém, quando recebia carta às vezes em 2 dias. Cada vez mais, parece, o passado “foi” melhor que agora. Elisa querida, eu tenho a impressão de que no dia em que vier do Ministério um telegrama para Maury transferindo-o para o Brasil eu fico maluca. Penso que adiarei então a viagem por + duas semanas só para aproveitar da certeza de ir para o Brasil… Enfim, isso será daqui a 3 ou 4 ou 5 anos. Espero que 3. Conheci uma senhora austríaca, esposa de um diplomata brasileiro, que me disse que nunca passou + de dois anos sem ir à Áustria ver a mãe e as irmãs; só agora, por causa da guerra na Áustria mesmo, é que passou + tempo. Por aí você vê que é assim mesmo. No dia em que vocês me escreverem assim: Clarice, por que é que você não dá um pulo aqui? – eu ficarei feliz e irei. Porque eu tenho medo de vocês, da opinião de vocês, sou em geral tão anormal e ninguém me compreende apoiando, geralmente, de modo que se vocês me acusam eu não posso fazer nada, não tenho a quem recorrer para me defender…

– Não sei porque Joel Silveira foi anunciar que faria a reportagem sobre o livro de Mussolini, quando eu disse a ele que era pouco provável que eu o conseguisse. Certamente ele não anunciou a verdade e disse isso para você para que eu me sentisse comprometida.

Maury vai bem. Ele tem muito + do que eu, como é natural, o temperamento adequado para a carreira dele. Se eu não falasse em saudade, acho que ele não se lembraria muito de pensar nisso, se bem que goste da família como é de esperar.

Enfim, eu estou bem. Dilermando (As enormes dificuldades de transporte e a proibição de cachorros nos hotéis da Suíça impediram Clarice de levar consigo Dilermando quando se mudou para Berna. Dilermando é um dos personagens de A mulher que matou os peixes (Sabiá, 1968).), o cachorro, é uma delícia de cão e gosta de mim + do que a todos da casa. Me faz uma festa louca quando me vê de manhã, depois de uma noite de separação. Ele tem uma briga antiga com um gato das vizinhanças; mas o gato fica sentado olhando para ele com frieza enquanto Dilermando fica rouco de latir com medo de se aproximar. Dilermando come pão com manteiga, carne, arroz, macarrão, biscoito, chocolate, uva, melão, sendo que despreza um pouco as frutas. Quanto a fruta cristalizada, detesta simplesmente. Nós tivemos aqui uma empregada muito burra e medrosa; uma noite voltamos tarde e encontramos o miúdo Dilermando de pé mas sem conseguir dar uma “palavra” que não fosse cortada de três bocejos, o cachorro nem tinha força de fazer festas, e bocejava tão alto que parecia uma gaveta se abrindo. A empregada estava vitoriosa, a burra, e disse: eu não deixei ele dormir para montar guarda na casa! Só faltei dar nela de raiva, mas não disse nada, só rimos muito vendo o cãozinho que ela atiçara e que não tinha nada com a história, bocejando a ponto de molhar os olhos. Essa empregada é que disse à moça que trabalha no Consulado que eu lhe parecia um pouco burra…

Quanto ao mais, macarrão, macarrão, macarrão.

Minha querida, tenha uma boa vida, faça dieta. Tania está fazendo? Está bem de saúde?

Receba um grande abraço de sua sempre

Clarice