De: Clarice Lispector
Para: Elisa Lispector, Tania Kaufmann

Washington, 10 maio 1954, segunda-feira

Minhas queridas,

Estou com uma carta de 2 de maio, sua, Elisa, e outra do dia 3 de maio, sua, Tania, para responder. Não sei porque estão demorando tanto a chegar: demoram às vezes oito dias. A sua, Elisa, com notícias ótimas sobre Genebra, que eu já sabia porque tinha saído no boletim da Embaixada – parabéns! parabéns! parabéns! E, com ela veio um recorte de Raquel de Queiroz. A sua carta, Tania, dá notícias boas de todos, e da possibilidade de um bom inquilino – em que ficou?

Hoje recebi o telegrama dando preço de passagem. Vou explicar porque mandei a pergunta. Nós vamos pela Aerovias, que nos dá desconto, mas várias pessoas começaram a dizer que ainda sairia mais barato ir pela Panamerican, se pagássemos no Brasil (com o preço fixo da passagem, mas não valor fixo do dólar, sairia muito barato). Cada um dizia uma coisa, e o homem das Aerovias esperando, e eu já chateada de mil cálculos que fiz. E a coisa ficando urgente; então o único modo era saber quanto era em cruzeiros o total das passagens. Foi ótimo eu perguntar, apesar do trabalho que dei, porque assim ficamos sabendo que, mesmo pago no Brasil e mesmo com um câmbio favorável de dólar, ainda sai mais barato na Aerovias. Queríamos evitar Aerovias por causa da baldeação em Miami e consequente desconforto com duas crianças. Mas vamos mesmo assim, pois representa um bom desconto. De modo que amanhã mesmo vai o dinheiro para Miami e teremos as passagens conosco, e o problema, se Deus quiser, resolvido.

A comida de Paulinho seguiu, como já lhes disse, por um senhor. Vou em breve mandar o telefone dele, para uma de vocês telefonar e perguntar se ele já desembaraçou a bagagem e se já está com as duas caixas em casa. Então vocês, por favor, me avisarão imediatamente, para assim eu ficar descansada sobre esse ponto, e saber que o homem não perdeu os caixotes ou coisa que valha. Não quero de modo algum mudar a alimentação de Paulinho nesses dois meses de Rio.

Estou escrevendo esta carta para você, Elisa, sem saber a mínima se você já não partiu para Genebra. Mandarei para Marquês de Abrantes.

Estou muito atrasada com a correspondência com vocês porque estive muito ocupada. Recebi as provas da tradução de P.C.S. (Perto do coração selvagem foi traduzido pela E. Plon, em 1954.), já em certo tipo de papel que Érico reconheceu como sendo papel definitivo: isto quer dizer, minhas correções devem ter ido tarde demais. E foram tantas correções que eles teriam que refazer toda a paginação etc. etc. Se já chegaram tarde demais, é melhor eu esquecer o caso, se não quiser me aborrecer seriamente. A conselho de Érico, mandei uma carta dizendo que a “tradução era escandalosamente má” etc. que preferia que o livro nunca fosse publicado na França a sair como está, sem correções. E mandei exemplos dos erros de tradução. Esse trabalho me levou cerca de dez dias, trabalhando muitas vezes até duas e tanto da madrugada, pois fui obrigada até a escrever em francês. Para vocês terem uma ideia da tradução, eis alguns exemplos: em português, “ao fim de alguns instantes, as chamas subitamente reanimadas”, foi traduzido: “ao fim de alguns instantes, tudo o que nela o chamava, se acordou” (com certeza a tradutora vendo “chamas” achou que se tratava do verbo chamar). Onde ponho: “o pai estava despenteado”, a tradutora põe: “o pai estava sem fôlego”. Ondo ponho: “ela temia continuar ao lado de Fulana”, a tradutora pôs: “repugnava-lhe estar” etc. Eu escrevi no original: “Fiquei tonta, disse ela”. A tradutora traduziu: “Fiquei estúpida, disse ela”. (A tradutora deve conhecer melhor o espanhol e tonto em espanhol quer dizer mais ou menos estúpido). Escrevi: com suas olheiras negras… Ela traduziu: com seus óculos escuros… O livro está todo assim, e em muitos trechos perde totalmente o sentido. Uma noite, à meia-noite mais ou menos, eu estava tentando ler e corrigir, quando deparei com uma brutalidade de tradução, tão forte, tão inesperada, que, sozinha, mesmo, ri a ponto de chorar. Imaginem que escrevi, em má hora, no original: “a boca em forma de muchocho”. E sabem como ela, toda engraçadinha, traduziu: Assim: “la bouche en cul-de-poule”. Que tal? Quando escrevo a palavra “porcaria”, ela traduz por “excrementos”, mesmo quando não é o caso. Sem falar em liberdades engraçadas que ela tomou. Eu escrevo “a criada” e ela traduz: “a criada preta” – sendo que em nenhum pedaço do livro se fala em nenhum criado negro. Enfim, estou procurando passar por cima desse aborrecimento e esquecer. Parece que é tarde demais, que não vão poder fazer nada. Então vou procurar esquecer que o livro foi traduzido.

Continuo pedindo que me façam agora as encomendas – porque vocês não respondem?

Tudo bem aqui, Paulinho ótimo mas sem pronunciar uma palavra inteligível, já estou meio impaciente. Pedrinho está bem, provavelmente em muito breve deixarei de ir ao “Child Center”. Maury sente-se ótimo com a dieta em que não entram frituras. Dizem mesmo que todos deveriam se alimentar assim. Tudo o mais bem, a viagem já não está tão longe.

Um beijo para vocês.

Clarice

Tania, você já recebeu os folhetos do Department of Labour?

Tania, que posso levar para William?