Livro de contos lançado postumamente, reúne seis escritos do período 1940-41 e dois de 1977, pouco antes da morte da autora, ambos falando de escolhas, sentido da vida, solidão e condição feminina. Os textos do primeiro conjunto, ao se debruçarem sobre conturbadas relações amorosas entre homem e mulher, não escondem a atmosfera romântica e certa ingenuidade. Mas ao mesmo tempo trazem discussões que atravessam a ficção clariciana. Lá estão a percepção aguda de dramas familiares e o senso de ironia. A obra convida à leitura retrospectiva. Lado a lado, a escritora madura, em momento de profunda crise devido à doença que a tomava, e a jovem autora, na descoberta do mundo e da ficção.
Curioso é que o olhar adulto sobre experiências remotas é simulado em textos juvenis, como “História interrompida”. A narradora recorda a paixão juvenil: um rapaz “moreno e triste”, roupa escura, analítico; ela, jovem perspicaz, inteligente e romântica, de roupa florida, diminuída com a altivez dele, mas já intuindo haver sob aquela soberba um pensamento estéril. A rememoração, forma de compreensão, ou tentativa de, registra a força da acomodação a valores dominantes: “Estou casada e tenho um filho”. A história é retomada com variações em “Obsessão”, também rememória de personagem com origem similar: “Nasci de criaturas simples, instruídas naquela sabedoria que se adquire pela experiência e se adivinha pelo senso comum”. Ela é preparada para “casar, ter filhos e, finalmente, ser feliz”.
No outro grupo de textos, que assume a perspectiva de dentro do casamento ou de quem já viveumuito, há uma dimensão dilacerada quanto aos rumos e equívocos cometidos ao longo da vida, em nome da estabilidade e do bem-estar. Sim, porque se o livro como um todo encena a indagação clariciana sobre a felicidade, os contos escritos no final da vida dão ao tema uma acidez e uma revolta inexistentes nos anteriores, aniquilando de vez os parâmetros afetivos pequeno-burgueses. Chega a atingir o patético, na reflexão da socialite(“– Como é que eu nunca descobri que sou também uma mendiga?”), ou na figura de Margarida, de “Um dia a menos” (que reverbera personagens nos textos com viés autobiográfico de Avia crucis do corpo e também de A paixão segundo GH), mulher que habita o depois, e enfrenta o diálogo surdo com o tempo–morto que nela habita.
Por Clarisse Fukelman