O conjunto de textos “Fundo de gaveta”, que integrava a edição original de A legião estrangeira (1964), ganhou autonomia no livro Para não esquecer. Ao comentar esses escritos despretensiosos, a autora revela o quanto a fascinamos subterrâneos (da criação, da existência etc.). Lispector publica o que não presta “porque o que presta também não presta. Além do mais, o que obviamente não presta sempre me interessou muito. Gosto de um modo carinhoso do inacabado, do malfeito, daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão”.
De fato, o livro desconstrói clichês sobre amizade, solidariedade, velhice, discute falsos valores da instituição família burguesa, investiga a existência humana e revela extraordinária conexão com o outro, o diferente. Releituras de narrativas infantis, relatos primordiais e lendas (condessa de Ségur, Sherazade, Bíblia) sondam nossa natureza imperfeita, “suja”, movida por desejos. Personagens mirins quebram mitos da pureza infantil e revelam a potência erótica já nessa fase da vida, como em“Os desastres de Sofia”, em que a aluna confronta o amargurado e ingênuo professor, ou no conto que dá título ao livro, escrito aos 14 anos e surpreendente pela potência verbal e a percepção da complexidade do amor.
A impiedade com a velhice e a discriminação social são mostradas em “Viagem a Petrópolis”. O idoso, descartável, caroço difícil de deglutir, perdeu a função de conselheiro. Usura e doação afetivas reaparecem em “Repartição de pães”, e a opressão gerada por papéis predeterminados e seguros em“Os obedientes” é tema de textos claricianos, especialmente em Laços de família.
Outro mote que desponta é o da barata. Em “A quinta história”, um fato pueril contado com humor em mini-histórias sucessivas, há o exercício de narrar e o confronto com a condição humana e o mundo animal ancestral, a morte incontornável e a inexplicável manifestação de vida.
A discussão da palavra como meio de expressão se dissemina neste livro. Em “O ovo e a galinha”, o olhar e o ato criativo são escavados à exaustão, em busca do sentido das coisas. O texto foi lido no I Congresso Mundial de Bruxaria (Bogotá, 1975), de que Clarice participou. Alguns contos reaparecem com modificações em Felicidade clandestina (1971).
Por Clarisse Fukelman