O longo manuscrito “Objeto gritante”, de 1971, elaborado por Clarice Lispector a partir (ou através) de crônicas que haviam saído na imprensa e de textos de A Legião Estrangeira, jamais foi publicado no original. Ela o editou e reescreveu, transformando-o na obra Água viva (1973), em que radicaliza processos inovadores de escrita que já experimentara em publicações anteriores, inclusive emUma aprendizagem ou O livro dos prazeres, em que exercitara o enxerto de textos jornalísticos.
Água viva, híbrido, sem enredo convencional, não é romance, poesia, diário, ensaio filosófico, mas tem fragmentos de cada um desses gêneros. A autora desestrutura a forma romanesca numa narrativa fluida. Ideias e imagens se fundem e se transformam em moto-contínuo. A busca de conexão direta entre corpo, pensamento e linguagem faz que ela se expresse como quem pinta ou interpreta música fora do padrão realista de representação. Pois não busca o concreto ou o analógico como garantia de apreensão do real; ao contrário: a indefinição de categorias como cor, forma, palavra; a própria consistência significativa do silêncio; e o mistério da criação é que a levam a romper fronteiras no âmbito da narratividade e da abordagem da existência humana e da criação. Esse texto envolvente e perturbador busca o improvável: “Música de câmara é sem melodia. É modo de expressar o silêncio”. O leitor é levado a romper padrões de leitura e a aceitar as dissonâncias e o movimento da voz enigmática e feminina.
Em Água viva não há história linear nem tema central. Há, sim, um mote que provoca a escrita: o tempo, a quarta dimensão do “instante-já”, sucedido por um instante-jamais, fugidio. O dito é sempre fugaz. Para apreender valores difíceis como amor, morte, liberdade, solidão, religiosidade,é preciso que a linguagem mostre novas faces. Daí a palavra líquida, feminina, água viva, que nutre e também queima. “É-se. Sou-me. Tu te és.” Novas conjugações para novas percepções. Uma nudez de si que incorpora transparência e levitação, de um lado, e também o peso do corpo e da alma, de outro. Porque até o que é único, e próprio da pessoa, espanta:
Antes do aparecimento do espelho a pessoa não conhecia o próprio rosto senão refletido nas águas de um lago. Depois de certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha. É um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haverá.
Por Clarisse Fukelman