Dissonante das quatro outras obras para crianças de Clarice Lispector, Como nasceram as estrelas, doze lendas brasileiras, publicada em 1987, reúne narrativas herdadas da tradição, reelaboradas pela escritora. Os textos foram encomendados pela fábrica de brinquedos Estrela para compor seu calendário; assim, cada um deles é relativo a um mês do ano, e o primeiro dá título à obra.Todos os textos são curtos, ocupando no máximo duas páginas, o que parece derivado de um formato-padrão de sua origem, por encomenda. Embora nascidos da literatura popular, a autora lhes dá forma e neles imprime sua marca, ao assumir um “eu” que não se contenta em ser apenas contador de histórias, mas faz-se comentarista e articulador de ideias. As relações de comunicação, próprias da oralidade, encontram-se firmes nas narrativas, acrescidas de intromissões: “Será que a moral desta história é que o bem sempre vence? Bom, nós todos sabemos que nem sempre. Mas o melhor é a gente ir-se arranjando como pode e dar um jeito de ser bom e ficar com a consciência calminha”. O pacto de leitura, na esfera das lendas, coloca em jogo sintonias entre texto e leitor, ao estabilizar formas simples e colaborar para a fixação do imaginário brasileiro. Os contos e lendas, pertencentes a regiões várias do país e derivados de culturas diferenciadas, culminam, no mês de dezembro, com “Uma lenda verdadeira”, que apresenta o nascimento de Cristo, narrado com simplicidade e lirismo. Em todas as outras narrativas, predomina a expressão aparentemente simples, a constante interferência do narrador e, acima de tudo, um modo peculiar de olhar a infância. Fazem parte do volume os seguintes episódios folclóricos: a festa no céu, à que comparecem o sapo e o urubu; a história do uirapuru; aventuras de Malazartes; a narrativa da Yara; a festa na mata, que levou os animais a perderem a fala; a essência do Curupira; o Negrinho do Pastoreio; o Saci; o casco rachado do jabuti; o aparecimento dos bichos. Evidencia-se na constituição das narrativas um ritmo vagaroso, um contar com mansidão, como se deve falar para crianças, sem que haja recursos infantilizadores. O fecho moralizante, comum a textos com caráter de lenda, fábulas, aparece deslocado, reorganizado pela escrita de Clarice. Assim é, por exemplo, na lenda da Yara, que tem por fecho: “Esta história não admite brincadeiras. Que se cuidem certos homens.”; e na do Uirapuru, pássaro encantado: “Como é que se espalhou que o uirapuru dá sorte? Ah, isso não sei, mas que dá, dá!”, em que a narradora arremata o contar com humor.
Por Rosa Gens