Tornar-se amante de um livro, sentir a vida jorrando de uma boca para a outra num beijo, no mar, reconhecer-lhe “a mais ininteligível das existências não humanas”, no dente quebrado, a falta de sentido de tudo. Eis alguns microcosmos revelados nos contos de Felicidade clandestina, publicado em 1971. Se essa obra representa ou não um registro autobiográfico de Clarice Lispector, compondo certa perspectiva memorialística, talvez não seja a questão mais relevante, pois, uma vez levada para o território da fabulação, a matéria vivida se transforma em signo de outra coisa, vira ficção.
O importante na experiência de leitura que Clarice provoca em Felicidade clandestina é a vivência imaginária que cada conto – gênero de narrativa que Julio Cortázar chamou de “tremor de águas dentro de um cristal” – opera no trânsito de seus discursos.
Breves e tensos, esses contos cumprem um destino extraordinário em direção à abertura da vida; em cada um, a presença indiscutível do talento de Clarice para comunicar o que vê nos intervalos do mundo. Como um boxeador astuto, ela golpeia o leitor vencendo-lhe todas as resistências, e ele, a seus pés, se curva feliz.
Por Martha Alkmin