“Um romance que faltava.” Foi assim que o crítico literário Antonio Candido se referiu ao romance de estreia da jovem Clarice Lispector, de 1943. Igualmente os críticos Francisco Assis Barbosa, Sérgio Milliet, Adonias Filho, Otávio de Freitas Jr, entre outros, reconheceram na jovem escritora a força e a singularidade do processo criador e o quanto sua técnica e sua temática se distanciavam de tudo o que já havia sido escrito.
Tamanho foi o impacto provocado pelo romance, que, para o poeta Jorge de Lima, em artigo publicado em 1944 na Gazeta de Notícias, o livro “deslocou o centro de gravitação em que girava o romance brasileiro”, estabelecendo uma mudança de paradigma em nossa prosa de ficção. Nesse mesmo ano, Clarice entra para a lista de autores cujas obras de estreia receberam o prêmio Graça Aranha. Ao lado de Murilo Mendes, Jorge de Lima, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego e Erico Verissimo, surgia o nome de Clarice.Perto do coração selvagem, saudado pelos principais jornais do país, foi considerado um dos melhores momentos na nova literatura moderna.
Concentrado na experiência interior e na introspecção, o romance reorienta os caminhos da escrita ficcional ao inaugurar uma linguagem que captura e se apropria do que parece mínimo, banal ou mesmo óbvio, para constelar um diálogo surpreendente com o mundo. Joana, personagem a partir do qual se ergue o enredo, revela-se pouco a pouco uma figura de exceção pela percepção invulgar de tudo que a cerca. Oscilando entre reminiscências do passado e referências exteriores da realidade presente, Joana, a órfã de mãe e de pai, a que sente pena das galinhas, a inadaptável aos lugares, a vocacionada para o mal que destila veneno e ironia; Joana, a que tivera “vontade de se dissolver até misturar seus fios com o começo das coisas” e que um dia “haveria de reunir-se a si mesma”, atinge o leitor como uma seta no centro do alvo. Seu movimento de descida em direção a si própria faz surgir uma paisagem feita de cavidades e subterrâneos onde queima o impulso informe e audaz da vida, que, em sua verdade incomunicável, a tudo chama criação e nascimento.
Em Perto do coração selvagem assistimos ao nascimento de uma nova perspectiva no quadro da prosa brasileira, ao realinhamento de sua tradição, porque Clarice, no trabalho com a língua, investe na narração, e não na matéria narrada. Em outras palavras, pouco importam os acontecimentos, pois são as impressões e as digressões que sustentam a narrativa e a subordinam ao personagem. Trata-se, portanto, de uma obra que, por se apresentar em sua radical diferença em relação às demais de sua geração, exigiu um novo horizonte de leitura, a partir do qual a centralidade da ficção foi concedida à escrita e seus devires.
Por Martha Alkmin