A obra Quase de verdade data de 1978. A abertura usual em narrativas infantis é tensionada: “Era uma vez… Era uma vez: eu!”, seja pelo pronome que explode, no lugar de personagens ou espaços, seja pelo inusitado do “eu” que corresponde ao cachorro Ulisses. O início prepara o enredo “para valer” que, como em algumas narrativas para adultos da autora, demora a chegar. A história do cachorro Ulisses e de sua dona, Clarice, propõe questões, simples e complexas, e torna deslizantes os conceitos de real e ficção, de mentira e verdade. Afinal, a estratégia de construção do texto mostra Ulisses como observador, enquanto Clarice, que entende seus latidos, escreve o que ele lhe conta. O quadro narrativo se desdobra (“Eu fico latindo para Clarice”, “e ela escreve o que eu lhe conto”) enquanto o toque de oralidade, que perpassa as obras claricianas destinadas a crianças, revela-se mais intenso. Nessa história latida para Clarice, a narrativa é pontuada pelo canto de um passarinho, recurso que abre espaço para a fantasia. A trama, que atinge foros de alegoria, gira em torno de uma figueira invejosa, que se empenha em escravizar as galinhas para obter lucro. Assim, com a ajuda de uma bruxa, a árvore acende-se durante a noite, levando as galinhas a pensarem que é dia, e, enganadas, botarem ovos. Há sempre espaço para a rebelião: as galinhas passam a se instalar nos galhos da figueira, e de lá botam os ovos, que se quebram. Ao fim, a figueira perde o auxílio da bruxa e suas luzes se apagam. E a paz volta a reinar no galinheiro. Se contextualizarmos a obra nos anos 70 do século XX brasileiro, outros significados aparecem – história de poder e dominação, em época de censura e uso de força. Os livros de Clarice Lispector destinados a crianças tiveram importante papel na renovação da literatura infantil brasileira nas décadas de 1960 e 1970, ao abandonarem o pedagogismo e abraçarem o lirismo, junto a uma dimensão que procura unir a voz narrativa à do pequeno leitor. A construção textual parece refletir o modo de ver o mundo infantil, de tal forma que o movimento de articulação de ideias reproduz a sequência do pensar da criança. O fascínio é obtido pela capacidade de provocar a sensibilidade e a intuição infantil, principalmente pelo recurso a estados emocionais (sem ser piegas), que tocam os leitores em formação. Em Quase de verdade, o leitor vai de assombro em assombro, não apenas pelos fatos narrados, e sim por perguntas e afirmações que surgem e se ampliam. Como exemplo, a indagação final da narrativa, que fica no ar, sem resposta: “engole-se ou não o caroço de jabuticaba?”. Investigação constante da linguagem literária, o texto de Clarice abre-se para a brincadeira com as palavras, marcada especialmente na obra pelo nomear das personagens Oníria, Ovídio, Oxalá, Odissea, Onofre, Oxelia, Oquequê.
Por Rosa Gens