Chegamos a Natal a 19 de julho, 2 horas da tarde, hospedados na base aérea de Parnamirim, dos americanos. Limpeza e ordem aqui, comida nutritiva e lisa. Cidade pequena, sem caráter, casas sem harmonia, nem mesmo velhice. Gente sem típico, sem especial força [lacuna]
A prima de M.,3 uma pessoa meramente isenta de certo tipo de consciência, me diz quando às vezes falo (sempre tão sem interesse por mim mesma, mas falando por falar), ela diz espantada: é isso mesmo! Olhe como ela disse mesmo o que eu queria dizer! Dionisia você odeia nenê, Dionisia?
Exteriores – Rio / De Dacar a Argel você viajará em avião da Air France. / Faltando dinheiro brasileiro, trocar os cheques no Banco do Brasil em Natal a razão de Cr$19,80 cada dólar. / Não levar dinheiro brasileiro para o exterior – trocá-lo em dólares ou enviar à Tania. / É possível que venha após a nossa partida a autorização para viajar em avião militar americano do a.t.c. (Air Transport Command).
Chegando a Dacar procurar imediatamente o senhor Benedito Costa, consul du Brésil, consulat du Brésil.Para viajar no clipper é necessário autorização das autoridades navais americanas – foi pedida no Rio pelo cônsul Barbosa da Silva, em nome do Ministério do Exterior (Brazilian Foreign Office), ao tenente Jacobs americano – já deve ter chegado às autoridades de controle em Natal essa permissão. Se não chegou, insistir junto ao Barbosa telegrafando a Barbosa da Silva.
Convém, por isso, telefonar todos os dias ao coronel Young – 286. / Base Maritime / Barrett Eldridge 1511- / Tenente Martin / 1006 – Naval operário [ilegível] / 6:7000$000 – 335 dólares / 7: 705$800 – 335 dólares / Carlos Eiras Consulat du Brésil Argel
De Natal a Recife: terça e sábado / De Recife a Natal: sexta e segunda + Praia de Areia Preta + Anita Gurgel Vieira quarto 58 – Grande Hotel.
Si j’écris plus facilement?… La facilité ne propose que lieux communs et [formeles] toutes faites; précisement ce que j’écarte. De plus en plus difficile envers moi-même, et de plus en plus regardent. / Ne passe forcer à penser mais noter aussitôt chaque pensée qui se propose. / Il me semble que j’écrivais à présent des chefs-d’oeuvres – si seulement le temps ne me [manque pas].
J’avais perdu l’habitude – je la reprends – d’éxiger plus de moi-même. C’est presque volontairement que je l’avais perdue, et par methode presque estimant qu’il n’est pas bon d’être toujours tendre que le laisser-aller repose et peut, [lui] aussi, nous [instruire]
Me répéter chaque matin que le plus important reste à dire, et qu’il est grand temps. / Leve fervor no ar / Como arde seca a compreensão dos outros. / Gide: Il faut que j’apprenne à me taire. D’avoir parlé nier de ce projet de livre à Albert, ma volonté s’en était affaiblie. Il faut que j’apprenne à me prendre aux sérieux et a n’avoir aucune opinion satisfait de moi-même. … Que je ne sois pas pour tous de la même amabilité té fade.
Gide: “Oser être soi. Il faut le souligner aussi dans ma tête.” Ne rien faire par coquetterie; pour se rendre facile par esprit d’imitation ou par vanité de contredire. / Ele não deixava o caderno dele. Anotava todas as impressões. / Quel danger! Quel danger de s’occuper de tant de choses! J’ai l’esprit tout desaffecté. / “A volúpia do esforço”
Mandar endireitar a correia – telegrafar [ilegível] – saber da autorização – pesar bagagem – entregar [lacuna]
Ela como perdera a sensibilidade de si mesma e volvia o corpo para um só sentido, o da vida de Vicente. Queria, por um esforço de finalidade obscura, transformar-se, porém seu modo de pensar era mais forte do que ela. / Anita Gurgel Vieira – caixa postal 35 Natal – Rio Grande do Norte Brasil / Adriano – Ele tinha as unhas demasiado cortadas encostadas à cal seca da parede. (Dentes belos e limpos)
Libéria, Fisherman’s Lake, 31 de julho de 1944 / Com a jornalista Ana Kipper, o capitão David Crockett e Bill Young, fui às vilas de negros, Tallah, Kebbe, Sasstown. As negras de busto nu nas vilas onde os missionários não chegaram. Elas trabalham para os americanos e falam alguma coisa de inglês (na Monróvia há uns 24 ou 25 dialetos). Dizem de repente: hello! Adoram dar adeus. Vi uma mocinha de seios muito bonitos. Mas a maior parte delas, ainda jovens, tem seios grandes e murchos. São limpos e sadios. Só que algumas crianças
têm umbigos tão grandes como laranjas. Um negro, a quem eu dei adeus e sorri mais demoradamente, de propósito, ficou encantado e pôs a mão no [rasurado]. As negras jovens pintam o rosto com traços de cor creme e o lábio inferior com uma tinta da cor de azinhavre. Uma delas pediu-me meus sapatos. Outra, a quem agradei o filhinho, disse: Baby nice, baby cry money. Um dos rapazes deu-lhe um níquel, ela disse: baby cry big money. Uma falou alguma coisa longa e complicada. Vi que era a meu respeito e ela ria. (eles riem com grande facilidade,
mas alguns são tristes e mesmo o riso deles é de humildade e fascinação.) Pergunto a um deles, que sabia inglês, o que ela dissera: ele tentou resumir, disse afinal: that you are fine, she likes you. Perguntaram sobre o meu lenço de cabeça. Eu tirei para ensinar a botar e quando eles viram meus cabelos ficaram sérios e atentos. Entramos numa loja pobre, quase sem nada. O homem ria, ria de alegria da gente ter entrado lá. Aquele tambor também para chamar todos. Os desenhos do rapazinho pregados na parede
de fora da cabana: em aeroplano, sapatos de mulher civilizada etc. Voltamos, jantamos com os rapazes, fomos ao cinema da base, vimos Jack London. Descobri que quase todos os americanos que viajaram conosco são missionários, homens e mulheres. Aqui dormimos três num quarto: eu, Ana Kipper e uma missionária. Ana Kipper deve ter ficado em intimidade com o capitão. Para mim, tudo um pouco cansativo, menos a visita às vilas. Como gostei daquela gente negra. Cinema aborrecido, jantar qualquer coisa de haricot. A missionária está falando de algo com Ana Kipper.
negros dormindo na rua. Negrinhos com ar carioca metidos em togas, em passo ligeiro de malandro. Carnaval, Hollywood, os livros exóticos estragaram um pouco essa primeira impressão que poderia ser extraordinária. / Uma das melhores coisas interiores é sentir que hoje ainda não é amanhã, que amanhã fatalmente virá, mas que hoje é inteiramente hoje
D. Maria Inês do Nascimento / Travessa Pedro Américo, 285 – Bairro Vermelho / Amanhã, às oito horas (parece), tomaremos o avião; depois de três horas e pouco de voo, chegaremos a Bolama, possessão portuguesa, onde almoçaremos. À 1h, parece, chegaremos a Dacar, onde ficaremos duas horas! Voaremos tod a a noite e chegaremos na manhã seguinte a Lisboa. Não sei o que me espera lá.
Lisboa, 4 de agosto de 1944, sexta-feira / Acordei quase dez horas. Ontem jantei em Cacilhas com Ribeiro Couto e Maria Archer. Fiz compras de manhã, fui à casa de Ribeiro Couto, almocei com ele, li capítulo dos bonecos de barro.15 Só de tarde ele disse quanto gostou. Disse que a mim não adianta dar conselhos, que sem ter experiência eu sei de tudo. Coisas agradáveis e bem observadas, já ouvidas ou sentidas. Depois do almoço ele me mudou. Hotel mais barato é melhor. “Sem aqueles homens do Hotel Astoria, no hall, admirando você embasbacados”. Mudei-me para o parque Palacio. Li todo o romance de Maria Archer. Saudade de M. Fui jantar em Bucelas – paisagem nítida e cor-de-rosa ovelhas – olivais – Tejo
Vilas econômicas – Citael, Citael, sobretudo Citael – Ela sorriu pra mim, quando não sorri para quase ninguém. Diz a madrinha qu’ela achou-me engraçada e sem razão, com meus cabelos assim e tão novinha, acrescentou. Voltei uma hora, vou dormir, ler um pouco. Amanhã, trabalhar no meu livro, fazer o possível para suportar sem excessiva inquietação essa semana que vem até ir a Nápoles – Estado de viagem, de espera, de saudade, de projetos, de inquietação e ignorância e ansiedade. Tania, minha irmãzinha, eu te amo. E minha Elisa também. Marciazinha está dormindo agora. M. já deve estar em Nápoles. Quero que ele sinta tanta falta de mim quanto eu dele. Por culpa dele, porque ele sempre arranja um jeito de ler minhas notas, nada posso dizer a seu respeito. No entanto, há bastante. Boa-noite.
– Sim, pensou ela vagamente, nós erramos porque temos poder (o nosso próprio poder e não a força divina e não o motivo divino).
Fisherman’s Lake, Libéria, 31 de julho de 1944 – 09 horas da manhã / Ah, o corpo, o corpo. Como é difícil arranjar uma posição confortável para ele! / Em Natal, uma noite, (não, acordei no meio ouvindo), uma noite de insônia, ouvi aquela música do ar (já tinha ouvido antes). Tive mesmo medo. É alguma coisa extremamente doce e sem própria melodia, mas feita de sons que poderiam se organizar em melodia. É algo insaciável flutuante mas ininterrupto. Tenho como a certeza de que captei a vibração do ar, que recebi ondas. É bonito, x.
x quase se torna agudo, de um agudo suave e sem aresta, atravessado por sons horizontais. Aliás, toda a ressonância tem a mesma altura e a mesma intensidade. É como um mesmo longo vem flutuando e tornando em longão, sombra ou luz, forma ou ausência de forma. Flautas extremamente diluídas. É de uma beleza incrível e impossível descrever, porque é como abstrata, não se sente a presença de um autor. É preciso estar com o ser fino e atravessado de acuidade para perceber. Mas é ao mesmo tempo inútil estar nessas condições se não se perceber. De tal modo esse perceber parece estar além de qualquer aviso.
Fisherman’s Lake, Libéria , 31 de julho de 1944 – 9 horas da manhã / Como é limpo o tempo que não é dividido em tarefas. / Há vários caminhos para a mesma qualidade. / O incompreensível está salvo dos indiscretos./ Fisherman’s Lake não é ilha. Libéria é uma república independente, de negros. Eu poderia ir a Monróvia mas é necessário tomar um avião. Estamos hospedados por hoje e pela noite de hoje até às oito horas da manhã seguinte na base da Panair.
Lisboa, 2 de agosto de 1944 / Almoço e jantar com Ribeiro Couto. Tudo bem. E no fim uma sensação de extremo cansaço e aborrecimento, de fim, de fim, de fim. Disse que era difícil me desenhar, tinha alguma coisa que não se pegava e a doçura. Que eu tinha três coisas: ____________: infância, vida profunda e alguma coisa áspera. Disse: animalidade banhada de luar. Queixo saudável. Deus meu me perdoai, me dai real paz.
Perto não há nenhuma cidade. Vi alguns negros. Bonitos, limpos (por que estou falando deles como de animais? No entanto, gosto mais deles, de certo modo, do que dos *portugueses com os quais viajo. Os negros são bem negros e não marrons como a Marcinha notou no Brasil.12 – Parece-me que tanto faz estar na Libéria como no Brasil. Não sinto mudança de natureza, não sinto “viagem”! Pois agora uma mania de procurar poesia nas coisas, de se enternecer. (É horrível isto e, no entanto, fácil e atraente. Não existirá
um modo mais, digamos, austero e fino de ver as coisas? E no momento em que esse modo austero e fino for um abismo onde se cai com prazer, procurar um novo modo. Para não ofender as coisas. Ser leal com elas. Não enganá-las. Não ver no mar imediatamente o verde, o brilho, as ondas, o poder, a calma. Se não puder ver mais nada, o silêncio será mais simples e mais puro como atitude. Mesmo as melhores pessoas caem no veio de sentir. Ontem no avião experimentei de tal forma o desejo de ter um filho que me senti nova, forte, criada. Durou horas essa sensaçã
e eu sei que na verdade eu a abafo sempre por causa do medo. Tenho medo de perder a liberdade com um filho. E eu preciso nunca me perder. Mas sei que queria ter um filho, um filho de M. sobretudo ou apenas, e terei com certeza.
Não sei, talvez só em choque com os outros se tenha amor por si mesma. / Lisboa, 3 de agosto de 1944 / Ontem – lanche com [Moscoso?], almoço e jantar com Ribeiro Couto, numa quinta e à beira do mar. Depois fomos a um lugar de ouvir fado, depois fomos à feira, bar Sevilha. Voltei 2 da madrugada e dormi até 1 de hoje. Hoje jantei com R.C. e Maria Archer.
(Este não é sopa). / Esparadrapo / Naftalina / Um ou dois vestidos / Sola de sapato / Sapato preto / Expressões italianas / Fazer as unhas antes de ir / A única coisa firme e boa na vida é estar mais ou menos contra todo o mundo e só ser de e com algumas. O que não exclui amizades, humanidade, piedade etc.
João Gaspar Simões / Rua da Artilharia, 44 – 4º andar / Não, não, eu não perdi minha vida, mas falei demais.
No avião para Argel – 15 de agosto de 1944 Ontem, courrier diplomatique “Bob” me levou a uma volta na cidade, tomar alguma coisa. Depois o Robert Hunter me levou ao cinema da Red Cross. / Aquilo de ter falado demais: do trem, deitada, numa escuridão interior, teve uma espécie de começo de morte e pensou claramente: não, não perdi minha vida, mas falei demais. Depois disso [ilegível] despertou-a e ela adormeceu.
Lisboa, 14 de agosto de 1944 – no avião para Casablanca / R.C. é uma das melhores pessoas que eu conheço. Ele disse que é grato a mim por eu [ter] dado a ele um estado de alma no qual é possível ver discernir e fazer certas poesias. Que não acreditava em mulher há muitos anos. E é necessário acreditar. Mas que é hora que eu vá porque senão ele teria uma dessas paixões que o indivíduo se rasga a noite toda e na manhã seguinte arranja uma francesa para passar perto e fazer ciúmes. Que mesmo agora ele se sente desconfiado junto de mim e com pudor. É bom que eu esteja casada e feliz – senão ele se apaixonava. Fiquei com pena de embarcar com pena dele, se bem que não haja motivo.
Tomar o comboio no cais Sodré (12:30h), comprar passagem para Cascais. Tel. Cascais 221 / Casa Sura Bonvalot (Marquês de Minas, 17, Bem Lembrados) / Sexta-feira / De si mesma o que ela podia sentir era: eu sou aquela que tem meu corpo e meu espírito.
Ela chorava por alguma coisa. Ele olhava-a, dizendo palavras vagas e serenadoras. E o modo distraído como ele a olhava – como se ela fosse uma mulher – fez qualquer coisa brilhar de surpresa e desânimo no meio das lágrimas. Meu Deus, meu Deus – era isso o que ela pensava friamente.
Negro’s Village Tallah Kebbe Sasstown / Bill Young Nicholas M. Mendak Symon Berman David / H. Crockett Nashville, Tenn. U.S.A. / Robert L. Hunter American vice consul Casablanca
Lisboa, 11 [de agosto de 1944] / R.C. acaba de conversar longamente pelo telefone. Gostaria que eu ficasse aqui trinta mil dias esperando pelo avião. Que não é caso para exageros, nem para diminuições, mas que existe, que é uma pedra no caminho. Que, aliás, é de algum modo antigo porque ele desviava o caminho do Flamengo para a rua Silveira Martins, para ver se me via passar. Que desde o momento em que desembarquei e cheguei na embaixada ele tem vivido de um modo todo especial, mágico. Que ele se sentiu orgulhosíssimo de mim quando viu o [ilegível] na festa dele. Que a Natércia e o Gaspar Simões e todos ficaram deslumbrados. Disse que eu não posso entender porque sou mulher e criança: não posso entender como as mulheres são chatas, (vivacidade verbal) um dia está bem, na segunda vez cansam, joiazinhas da Sloper, nenhuma autêntica. Que para ele eu tenho
doze anos. Só sou mulher nos cabelos. Mas hoje eu não sairei com ele. Tenho medo. Disse que quando ele segurou minha mão e eu disse: que explosão! era como se um menino dissesse ao soldado que acendeu um cigarro: que incêndio. O tolo pensa que eu não sei nada sobre explosão, nem me conhece como me espera.
1 – se eu não devo levar comigo o papel da missão da legação francesa me autorizando a viajar na terça-feira. / 2 – o endereço do cônsul americano, o nome dele / 3 – o endereço da companhia onde eu devo comprar / passagem para Argel (telefonar aeroportuguesa perguntando e perguntando também se o avião parte às 11:30h, 11 não é tarde demais para ir.) / 4 – endereço do meu hotel (perguntar aeroportuguesa)
Lisboa, dia 8 de agosto de 1944 / Que coisa desagradável, desagradável, desagradável. Ribeiro Couto jantou comigo na casa dele, já pela segunda ou terceira vez. Não vi nada demais nisso, ele me tratava como camarada, e eu até ficava com medo que ele estivesse saindo comigo de má vontade, só por dever de ser delicado. Fez duas poesias sobre mim, e disse que fez muitas outras por causa de mim. Que há muito tempo isso não sucedia. Que ele ia sentir minha falta. Que eu era estranha e curiosa. Mil vezes, a propósito de tudo, me dizia como ele era discreto, como o principal era a reputação. Que o fato de eu ter ido à casa dele, aos olhos dos outros, era como se eu tivesse dormido com ele. Por isso era melhor não dizer a ninguém. E hoje me fez fazer um papel chatíssimo, obrigando-me a fingir que era uma americana, para um amigo dele, “defendendo minha reputação”. Que nojo, que cansaço. Já há dias notava que ele se
aproximava um pouco de mim. Hoje andou de braço comigo – tão desagradável meu papel. E depois, enquanto na feira esperávamos a roda, segurou-me em mão, procurou encostar não na fazenda mas no pulso. Retirei-a discretamente. Disse que sou complicada e austera, que é horrível que ele se sinta atraído por pessoas diferentes dele. Que poderia ficar comigo três dias sem parar até eu morrer de cansaço. Eu já previra indistinta [a] isso, mas ele insistiu tanto para dançarmos. No carro, segurou minha mão, beijou-a muitas vezes, encostou-a ao rosto. Eu fiquei fria de aborrecimento. Eu disse: que explosão. Ele disse: só interna e mais coisas. Que ele não tinha dormido por minha causa (ele tinha antes contado apenas a insônia). Depois de outras tentativas, que eu repelia vexada, ele disse que sentia muita ternura por minha vida, uma vida difícil. Depois viu mesmo o meu silêncio, e disse: mais tarde você vai ver, vou me vingar. Eu disse: como?! Ele disse: sem gestos
Antes eu vira que ele afastara [Moscoso]. Disse-lhe que este não aparecera, ele retrucou: ele viu seus cabelos, sua boca, mas pensou que você era leviana, quando viu que não, afastou-se. Deus meu, me muerdo las manos de solitud. Mas não há nenhum desespero, há que é: desagradável. Amanhã há um jantar com convidados na casa dele. Assim não me incomodo. Mas quinta, sexta, sábado e domingo? Esquivar-me sem ofendê-lo. Disse-me que ainda no Rio, ele procurava me ver, em vez de passar por não sei que rua procurava a Silveira Martins.18 Que a base de vários poemas são agora olhos cinzentos. Me desagrada, horrível esse derrame lírico. Que eu o inspiro. Que dei vida às coisas. Que descubro pequenas coisas que ele sentia mas não sabia definir (mandíbulas das portuguesas).
Chuto, chato. Minha querida, sei que você está sozinha, mas você é você. Quando chegar em Nápoles, arranja um modo de trabalhar e ter horário e nesses intervalos trabalhar para você mesma, com o impulso que o trabalho fora dá. E que os homens façam o que quiserem. Inclusive m., que eu amo. Ribeiro Couto disse que todos sabiam que eu e Lúcio éramos namorados. Quero gostar de várias pessoas para não esperar nada de nenhuma, particularmente. Não quero que minha vida seja uma tortura de desilusões. Noto que de novo tenho que fazer a minha vida, que me defender dos outros. No fundo eles hão de rir de mim. Ou não? Possível não. O fato é que tenho que considerá-los em bloco para que nenhum deles particularmente me fira. É, a solidão anda. Boa-noite, querida. Durma bem!
15 quilos grátis / De 15 a 25 – 10 escudos por quilo / Mais de 25 – 25 escudos por quilo / 1.825 escudos e 50 centavos até Casablanca – 2h e meia 12 e 15 parte – Aeródromo da Portela. / 11 horas da manhã passará Parque Palácio. / Ordem de missão da Ligação Provisória Mr. Du Chàyla / Rua de São Domingos da Lapa, 57, Rez de Chão / Legação francesa
Rua da Emenda, 37 / British passaport control office / De Casablanca a Alger – 2200 francos-marroquinos / Não é permitido levar francos daqui (1.100 escudos, mais ou menos). /// x/30 /// Vasco Cunha telegrafou-me ir direto Lisboa não tenho *viso português necessário urgentíssimo embaixada portuguesa Rio telegrafe Panair beach Natal dando autorização comunicar autoridades Lisboa também.
Como vai a zona? / (No trem) Ela sentia um pouco de fome e isso prometia apagar qualquer coisa. Quando eu comer… dizia-se numa vaga ameaça, os lábios secos, os olhos franzidos.
Sábado – fazer unhas, me vestir, ir ao cinema, buscar minha pulseira, comprar um livro policial, de noite, ler. Domingo – trabalhar até meio-dia, escrever carta, ir ao cinema. Segunda – trabalhar até às doze horas, ler, ir ao cinema. Todos os dias – trabalhar, ir ao cinema, ler policial, procurar costureira segunda-feira, indagar cartomante. Segunda-feira: comprar naftalina, comprar chapéu palha de milho, endireitar a unha, trocar o livro, comprar papel-carta, escrever, buscar a pulseira, dar broche prata consertar, telefonar costureira (Frederic-Luisa), ir ao cinema (Tivoli).
Embaixada 24016 / R. [ilegível] – 42689 / Rua Castilho, 59, quarto esquerdo / RU / 150 dólares / 3.500 escudos / 3.000 francos
Na obra de arte cada traço tem que surgir apenas uma vez. Se não será a obra de arte pensada pelo autor. E não a coisa em si mesma.
A caderneta de Clarice Lispector – de medida exata 17 cm x 10,5 cm e 58 páginas – é aqui disponibilizada de modo integral para o deleite de pesquisadores e leitores claricianos. O caderno de bordo, como passou a ser chamado pela equipe de Literatura do Instituto Moreira Salles, foi doado pelo filho e herdeiro da escritora, Paulo Gurgel Valente, em janeiro de 2012. Após passar pelo processo comum a todos os documentos que são depositados sob os nossos cuidados, como higienização e catalogação, a caderneta foi digitalizada em alta resolução e seu conteúdo transcrito.
Durante a leitura, teremos inúmeras felicidades ao acompanhar mais que o registro de pequenos detalhes durante os meses de julho e agosto do ano de 1944 quando da viagem de Clarice Lispector com destino a Nápoles e escalas em Fisherman’s Lake e Lisboa. Uma das surpresas fica por conta de trechos ainda em fase muito rudimentar de O lustre, segundo romance de Clarice Lispector e que seria publicado somente em 1946, quando a autora já estava na Suíça, país no qual escreveria também A cidade sitiada. Lemos no bloco de notas que trabalhar no livro até então inominado constava como uma das atividades diárias de Clarice enquanto não chegava a seu destino final. Alguns personagens de O lustre, como Adriano e Vicente, são citados na caderneta – podendo esta ser, portanto, considerada um valioso documento para aqueles que se dedicam à crítica genética literária.
Outro feliz achado nas páginas amarelecidas, porém conservadas, é uma de suas anotações que ecoaria no conto “A menor mulher do mundo”, incluído em Laços de família, de 1960. Clarice registra, no dia 31 de julho de 1944, o mútuo espanto gerado a partir do encontro entre ela e os negros “bonitos, limpos” de algumas vilas da Libéria, “onde os missionários não chegaram”. Alonga-se na descrição de mulheres e homens, dos olhares, de uma pequena loja, e confidencia: “Como gostei daquela gente negra”. O fato parece ter fornecido inspiração para o conto já citado, e a anotação é um texto quase pronto que se desdobraria em outros dois: “África”, incluído em Fundo de Gaveta e, de 1964, e “Corças negras”, publicado em 5 de abril de 1969 no Jornal do Brasil e recolhido posteriormente em 1984 na coletânea de crônicas A descoberta do mundo.
Durante 12 dias, Clarice Lispector também esteve em Lisboa e registrou no bloco seus dias em capital portuguesa acompanhada de perto pelo diplomata e poeta brasileiro Ribeiro Couto. Impulsionada pelas anotações em terras lusitanas, Elvia Bezerra olha mais de perto a relação entre os dois no texto “Caderno de Lisboa”, para a seção Por dentro dos acervos, do site do IMS.
Ainda folheando as páginas, damo-nos conta da legítima naturalidade da escrita ao nos depararmos com uma anotação em que a premência está denunciada pela caligrafia muitas vezes ilegível, inúmeras rasuras, páginas rasgadas e lapsos. Para resguardar a leitura de possíveis equívocos, há palavras indicadas entre colchetes, que, embora sejam de certo modo legíveis, não podemos afirmá-las. A pontuação original foi mantida, mas a ortografia foi atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
Registramos o especial agradecimento à pesquisadora clariciana Nádia Batella Gotlib pela gentileza de auxiliar na transcrição e na elaboração das notas e a Paulo Gurgel Valente por eleger o Instituto Moreira Salles como guardião desse pequeno e valioso caderno de bordo.
Por Elizama Almeida