Caderno de bordo

A caderneta de Clarice Lispector – de medida exata 17 cm x 10,5 cm e 58 páginas – é aqui disponibilizada de modo integral para o deleite de pesquisadores e leitores claricianos. O caderno de bordo, como passou a ser chamado pela equipe de Literatura do Instituto Moreira Salles, foi doado pelo filho e herdeiro da escritora, Paulo Gurgel Valente, em janeiro de 2012. Após passar pelo processo comum a todos os documentos que são depositados sob os nossos cuidados, como higienização e catalogação, a caderneta foi digitalizada em alta resolução e seu conteúdo transcrito.

Durante a leitura, teremos inúmeras felicidades ao acompanhar mais que o registro de pequenos detalhes durante os meses de julho e agosto do ano de 1944 quando da viagem de Clarice Lispector com destino a Nápoles e escalas em Fisherman’s Lake e Lisboa. Uma das surpresas fica por conta de trechos ainda em fase muito rudimentar de O lustre, segundo romance de Clarice Lispector e que seria publicado somente em 1946, quando a autora já estava na Suíça, país no qual escreveria também A cidade sitiada. Lemos no bloco de notas que trabalhar no livro até então inominado constava como uma das atividades diárias de Clarice enquanto não chegava a seu destino final. Alguns personagens de O lustre, como Adriano e Vicente, são citados na caderneta – podendo esta ser, portanto, considerada um valioso documento para aqueles que se dedicam à crítica genética literária.

Outro feliz achado nas páginas amarelecidas, porém conservadas, é uma de suas anotações que ecoaria no conto “A menor mulher do mundo”, incluído em Laços de família, de 1960. Clarice registra, no dia 31 de julho de 1944, o mútuo espanto gerado a partir do encontro entre ela e os negros “bonitos, limpos” de algumas vilas da Libéria, “onde os missionários não chegaram”. Alonga-se na descrição de mulheres e homens, dos olhares, de uma pequena loja, e confidencia: “Como gostei daquela gente negra”. O fato parece ter fornecido inspiração para o conto já citado, e a anotação é um texto quase pronto que se desdobraria em outros dois: “África”, incluído em Fundo de Gaveta e, de 1964, e “Corças negras”, publicado em 5 de abril de 1969 no Jornal do Brasil e recolhido posteriormente em 1984 na coletânea de crônicas A descoberta do mundo.

Durante 12 dias, Clarice Lispector também esteve em Lisboa e registrou no bloco seus dias em capital portuguesa acompanhada de perto pelo diplomata e poeta brasileiro Ribeiro Couto. Impulsionada pelas anotações em terras lusitanas, Elvia Bezerra olha mais de perto a relação entre os dois no texto “Caderno de Lisboa”, para a seção Por dentro dos acervos, do site do IMS.

Ainda folheando as páginas, damo-nos conta da legítima naturalidade da escrita ao nos depararmos com uma anotação em que a premência está denunciada pela caligrafia muitas vezes ilegível, inúmeras rasuras, páginas rasgadas e lapsos. Para resguardar a leitura de possíveis equívocos, há palavras indicadas entre colchetes, que, embora sejam de certo modo legíveis, não podemos afirmá-las. A pontuação original foi mantida, mas a ortografia foi atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Registramos o especial agradecimento à pesquisadora clariciana Nádia Batella Gotlib pela gentileza de auxiliar na transcrição e na elaboração das notas e a Paulo Gurgel Valente por eleger o Instituto Moreira Salles como guardião desse pequeno e valioso caderno de bordo.

Por Elizama Almeida