De: Clarice Lispector
Para: Elisa Lispector

Nápoles, 12 – janeiro – 1945

Elisa, querida:

Recebi cartas formidáveis de vocês, e como disse a Tania, tenho vontade de provocar para receber, também carão, é verdade, nas cartas grandes. Pois então não vou durante a guerra, nem de 6 em 6 meses, exatamente, se vocês acham absurdo. Mas, querida, não pense que eu gosto de você porque estou longe e acrescento. É que quando estamos juntas não escrevemos carta e parece que é escrevendo que se podem dizer certas coisas. Você tem razão, com a idéia do provisório não se pode fazer nada. E por isso é que carta me faz bem, me dando uma lição. Não me diga que não tem a pretensão de ter ascendência sobre mim, que é bobagem, meu bem. e por falar em bobagem, cito- lhe outra e produzida pela mesma fonte, que é vocezinha: você diz que embora pareça incrível, você também já perseguiu miragens. Que burrinha você é! Se há pessoa em que se veja isso, é você. E não só você perseguiu, como persegue – o que vale como não ter mudado e ser fiel. Até passarinhos essa menina cria no banheiro, lugar onde em geral só se penduram toalhas! Me interessa saber é como eles se alimentam. Umas das coisas formidáveis disto é que é ótimo ter passarinhos mas é pau às vezes a gaiola: no seu caso os passarinhos é que têm você e vocês moram de igual para igual, um reclama contra o outro, são até capazes de não se falar durantes algumas horas. Você explicou pouco em relação a eles; você já os viu? Quantos são? Às vezes eles saem? Eles mesmos cuidam da comida ou o contrato que eles assinaram é com pensão? E por falar em pensão, não só os passarinhos precisam comer, você também. Escreva-me sem falta onde tem almoçado e jantado.

Você vai ver como eu vou melhorar e levar uma vida agradável. Mas vou ao Rio, não sei quando, depois que a guerra terminar, um dia e em boas condições. Eu gostaria aqui de ajudar um pouco, mas é impossível. Pedir dinheiro às pessoas para dar a outras é dificílimo porque a quem eu pediria? Ao Matarazzo? Ele começaria por dizer que tem casa requisitada e etc. Ele não precisa, mas todos precisam pouco ou mais. Porque me ofereci para fazer alguma coisa, estou agora trabalhando em datilografia com o coronel Julio de Moraes. Vou lá todas as manhãs e salvo a humanidade copiando numa letra linda à máquina, umas coisas. Pretendo também visitar feridos. Ajudamos pessoalmente e em cada caso como podemos e isso não é nada. Os casos aqui são inúmeros e cada família tem o que contar. É verdade que se culpa a guerra de muita coisa que sempre existiu aqui. A prostituição, por exemplo, sempre foi aqui um grande meio de vida. Contam-nos que agora os meninos na rua oferecem as irmãs, o marido que diz que tem uma moça muito bonita e no fim sabe-se que é a mulher dele, etc; mas todos dizem que é isso sempre. Tem aqui é que o povo napolitano é o + sem-vergonha do mundo. Os italianos dizem que a vergonha da Itália é Nápoles. Roubam como podem, e não sou quem os acusaria. Aliás, quando estive em Lisboa que não está em guerra, fiquei boba. Não se dá um passo sem que alguém não peça esmola. E me disseram que a prostituição lá é terrível, abundantíssima e desde a idade de 13, 14 anos. A guerra é boa talvez no sentido de chamar a atenção para certos problemas. Talvez incorporem estes na resolução de outros propriamente de guerra.

Em Roma está caindo um pouco de neve; eu não vi. Mas aqui o Vesúvio (Vesúvio – o único vulcão ativo no continente europeu, situado acima da baía de Nápoles, na costa oeste da Itália. Seu cume, embora variável, eleva-se a uma altura de 1.277 m.) está com o cimo coberto e ontem e hoje caíram aqui pequenos flocos. Eu não vi, mas Maury saiu hoje de manhã e trouxe embrulhado num pedaço de papel (!) uns pedaços de neve que parece gelo, com certeza já gelada, já meio derretida, e não muito branca. Amanhã de manhã vamos a um bairro onde talvez tenha neve. Disse que nesse bairro onde ele esteve hoje tinha uns dois dedos de neve no chão (conte isso a Tania).

Quanto a estudar canto, vou tratar disso. Quanto a cursos interessantes, desde que cheguei procuro me informar vagamente mas você sabe como são esses cursos, a maioria deles terrivelmente didáticos, terminando por dar caceteações e obrigações em vez de interessar realmente e dar prazer. Mas continuo + – em vista. E em vista também de alugar um rádio, se for possível encontrá-lo, tão difícil que é.

Agora me lembrei de uma coisa engraçada. Um amigo nosso em Argel achou a moça do restaurante muito bonitinha e perguntou-lhe se queria ir ao cinema com ele. Ela respondeu um pouco ofendida e muito digna: Pas moi, je suis vierge!

Não é tão engraçado? Ele disse que teve vontade de responder: C’est pas ma faute…


– Tudo está bem e eu gosto muito de vocês. Seja feliz, querida, sem falta nenhuma. E não tome água gelada. Um grande abraço de sua

Clarice