De: Clarice Lispector
Para: Tania Kaufmann

Berna, 14 agosto 1946

Tania, meu amor,

Recebi sua carta datada no correio a 6 de agosto em 12… Eu estava me convencendo de que não ia receber tão cedo, e eis o grande presente: Ah, querida, como estou cansada de ter saudade e de pensar. Estou tão cansada disso e de tentar pelo pensamento sair fora da vida que levo que não tenho gosto nem força de trabalhar. Um dia desses abri um livro que comprei, o célebre Imitação de Cristo (Publicada no século XV, de autor anônimo, há quem atribua sua autoria ao padre alemão Tomás de Kempis. Considerada a obra mais lida no mundo cristão depois da Bíblia. Clarice fez alguns comentários sobre a leitura desta obra com Fernando Sabino (Cartas perto do coração). “Tenho lido muito a Imitação de Cristo que tem me purificado às vezes.” (p. 21)) “Quanto à Imitação de Cristo, ela manda sofrer até o sangue, e me ceder inteiramente. Sofrer até o sangue, chegarei lá e mesmo às vezes já cheguei. Mas me abandonar, não sei como, me falta a graça. Como diz Álvaro Lins, eu sou dos muitos chamados e não escolhidos… (p. 54)), e estava escrito: ainda não sofreste até o sangue. Acho que no momento em que isto suceder, será o momento de agir, de resolver. Por enquanto ainda posso contemporizar. A carta que eu estou respondendo é aquela em que você manda a cartinha de Marcia… Que amor de cartinha, da primeira série! É a adulta menor mais querida que eu conheço. E você a criança maior querida. Fiquei boba com os quatro bilhetes de sweepstake vencidos. Seria mais bom do que você imagina, você vir aqui… As cartas de vocês afinal recebi, acho que todas, com retratinhos, com recortes. Eu tinha tanta vontade de lhe dar uma boa notícia qualquer. Nossa sala de visitas é muito bonitinha. Lá está o seu retrato numa moldura, me olhando. Nos momentos em que estou mais chateada, você sorri para mim. Muitas vezes não sei o que você quer dizer, mas estou sempre adivinhando. Tem o retrato de Marcia na parede. E também, em moldurinha dupla, Elisa, com um retrato de carteira, e Marcia em duas pequeninas provas para o retrato grande. Tem meu retrato de De Chirico (Giorgio de Chirico (1888- 1978). Fez parte do movimento chamado Pintura metafísica, que antecipou elementos que depois apareceram na pintura surrealista. No início dos anos 20, a sua obra obtém um êxito considerável nos meios vanguardistas e, em 1925, participa na primeira exposição surrealista. Entre as suas obras mais conhecidas há que citar Retrato premonitório de Apollinaire, Heitor e Andrômaca e as Musas inquietantes.) e todas as coisinhas que nós temos. Ontem fui comprar flores para enfeitar, e achei um lugar maravilhoso: é um jardim enorme, com um corredorzinho sombrio que leva a ele. Chega-se lá, entra-se numa casinha de teto de vidro e se diz: quero comprar flores. Então a mocinha com avental e meias compridas de algodão, pega numa tesourona e sai com a gente, mostra o jardim enorme e diz: quais? A gente escolhe: essas amarelas. Então ela corta da planta mesmo uma dúzia de flores amarelas, enrola no papel e dá. Não é bom? Quer me mandar um retratinho com o vestido havana? Os botões foi você mesma quem escolheu, e é bem possível que os tenha pago também… Naquele tempo você pagava muita coisa por mim… Já não posso nem escrever uma carta, Rosa aparece para conversar. Já está ficando chata a minha amizade com ela… Ela tem mil histórias sempre, e tantas opiniões quanto é possível. Muitas histórias ela termina assim: ah, os homens, a senhora sabe… Finjo que sei, e talvez saiba mesmo. – Ontem Maury recebeu a carta de um amigo; ele dizia que “como nós devíamos saber”, o Itamarati estava distribuindo o Lustre…; que por enquanto ele só tinha recebido o ofício anunciando mas não o livro. Isso nos deixou mortos de raiva e vergonha. Você não pode imaginar o ridículo disso, como vão rir de mim. Você não pode imaginar essas coisas porque está afastada do ambiente. Todo o mundo se reúne para falar mal de pessoas. Não sei se a notícia é verdadeira, e não sei de quem partiu a idéia. Acredito que talvez a AGIR, vendo que o livro não se vende, tenha se lembrado de vender exemplares ao Itamarati… Se isso for verdade, não quero mais saber da AGIR para nada, estou cansada dos golpes deles que me prejudicam e me ferem. Sei bem que todos vão imaginar que fui eu quem consegui esta história no Itamarati, porque estive no Rio. Tudo isso me chateia mais do que posso lhe explicar. Maury está furioso, sentindo-se ridículo. – Minha querida, então você não tirou sua amizade por mim. Me fez tanto bem sua carta. Ah, minha querida, eu acho que já não tenho mais palavras para lhe dizer como estou ligada a você, mais do que pelos botões…

– Mandei um conto muito pequeno para Buono, para a “Casa”. Chama-se “O Crime” (Publicado posteriormente sob o título de O crime do professor de matemática em Laços de família (Francisco Alves, 1960).). Não mandei para você antes, com medo de você não gostar… Meu livro está encostado. Já não sei chegar até ele. Abandonei ele muitas vezes demais, e agora precisaria revivê-lo todo para transformá-lo. Com o seu auxílio longínquo, vou tentar de novo. – Eu me correspondo com Fernando Sabino, que está em Nova York, com Sarah Escorel (Esposa do diplomata Lauro Escorel. O casal conviveu com Clarice e Maury em Washington.), que está em Boston, com Maria Luiza; recebi um carta grande de Buono, uma daquela moça Diva Alves Terra, que diz que conheceu você. O pessoal da Itália não me escreve. Açucena não gosta de escrever. Saiu no boletim do Ministério, saiu que todo o pessoal masculino da Itália foi condecorado com cruz de guerra por serviços prestados à FEB. Estão incluídos personagens que chegaram à Itália depois da guerra terminada…, e uma datilógrafa também. O nome de Maury foi excluído, não se sabe porque, talvez porque ele esteja na Suíça; é uma vergonha. Tinham falado que até eu ia ser condecorada pelo trabalho no hospital… (A Rosa está agora dizendo que há aqui suíços tão sabidos que até parecem judeus…) Bom.

Um dia desses vimos um filme já antigo de Betty Davis; o título em inglês é “Old acquaintance”, com Miriam Hopkins (Old Acquaintance (1943), estrelado por Miriam Hopkins e Vicent Sherman.). Se passar por aí de novo, vá ver. É um desses filmes gostosíssimos, de se ter pena que acabe. Às vezes também aparecem filmes franceses, bons. Tania, não será exagero seu dizer que William ainda não aproveitou a viagem aos EE.UU? Só sei que se ele precisar de novo viajar, você deve aproveitar e ir também; não vejo porque não. – Já escrevemos encomendando cristais, talheres e porcelanas para você. Só que é preciso esperar também que tudo venha por água abaixo, tanto o seu serviço como o nosso. Só no momento em que ficarem prontos é que saberemos. Porque se a questão do dinheiro mudar, sairiam por uma fortuna – Tania, diga a Priscila que continuamos sem receber resposta dos parentes dela. Que talvez ela deva lhes escrever, dando nosso endereço, porque não entendo a demora, uma vez que Priscila diz receber carta deles. Vamos escrever de novo. Maury escreveu em inglês e deu muito claramente as instruções.

Querida, me escreva, sim? É tão infinitamente bom receber sua carta depressa e com frequência. Receba meu abraço, querida, e goste um pouco de mim.

Clarice