Berna, 2 janeiro 1947,
quinta-feira de noite
Tania, queridinha,
Depois de falar com você no dia 31, recebi de manhã, no dia 1o de janeiro de 1947, uma carta sua (aquela com recorte de artigo de Antonio Candido, no O Jornal, 15 dez.; nota no Correio da Manhã, 15 dez., sobre os melhores livros de 1946; a entrevista da sra. Leandro Dupré, na Revista da Semana). Na sua carta, por distração, você me mandou também uma folha em branco, junto das escritas… Minha queridinha, eu estava tão nervosa antes de falar; e foi tão bom, ouviu-se tão bem, tua vozinha delicada, autoritariazinha… Reconheci todos os jeitos de voz de você, de Elisa, de Marcinha querida, que reclamou ausência de cartas minhas… Depois que desliguei, Maury estava na outra sala com os olhos úmidos e Rosa ficou com ar de frio… E eu fiquei tão alegre em ver que tudo estava bem que comecei a cantar a seguinte ária de ópera, com perdão da palavra: Mon coeur s’ouvre à ta voix, comme s’ouvrent les fleurs au baiser de l’aurore… (“meu coração se abre à tua voz, como se abrem as flores ao beijo da aurora”.) Antes de falar me deu um frio que não houve nada que me esquentasse; senti até uma falsa dor de garganta e pensei que estava gripada; mas logo que acabei de falar, passou. Me controlei muito e estava muito bem. Fui me vestir para irmos à casa de mme. Strasser de vestido comprido, como ela pedira. Rosa saiu também para a gente levá-la de carro para a casa dela. Quando saí, tinha nevado muito, estava uma beleza. E eu levei meu batismo de verdadeira neve: levei um daqueles tombos, que nem passarinho baleado. Se não fosse a Rosa me segurar um pouco, minha cabeça bateria com força no chão. Me levantei e fui para o carro. Mas com o choque da queda violenta, o controle da emoção do telefonema desorganizou-se e eu fiquei tão lassa para o resto da noite que teve um momento, antes da meia-noite, que adormeci ligeiramente na cadeira… A casa de mme. Strasser fica junto da Catedral, os sinos antes tocam pelo ano velho, param, e tocam à meia-noite pelo ano-novo. Vestimos os casacos, abrimos a janela, e tudo estava branco, com os sinos batendo como se fosse dentro de casa. Pedi a Deus que nos desse muita saúde e felicidade, não pedi coisas demais para não confundir Deus que à meia-noite de ano-novo está tão ocupado. Depois se botaram na vitrola uns discos brasileiros (Maury comprou, apesar de não termos ainda vitrola), e dançamos tico-tico no fubá etc. Eu dançando mole, de veludo, decotada, na Suíça, tico-tico no fubá (Tico-tico no fubá (1917), de Zequinha de Abreu, foi gravada por Carmen Miranda.), ano-novo… que mistura estranha. Ainda me cumprimentaram pela queda, porque diz que é bom cair no dia 31, no fim do ano-velho, porque quer dizer que a coisa ruim aconteceu no velho e que o ano-novo está limpo… – Minha querida, vou lhe pedir uma coisa: pelo fato de eu contar que fiquei tão contente e emocionada com o telefonema, não vá ter um remorsinho por não ter sentido exatamente o mesmo: cada pessoa é diferente e afinal quem está na Suíça sou eu… – Minha queridinha , você está bem no trabalho? Espero que você se habitue depressa, e que não leve a sério demais. Você não poderia deixar de trabalhar? Quem sabe, florzinha? Pense nisso. Estou tão contente porque tudo está bem com você, meu amor. Que 1947 comece para você um tempo lindo e constante de boa saúde, de alegria e tranquilidade. – Mando aí outra série de “Children’s Corner”, para O Jornal. Não sei se você vai gostar. Mas, querida, não mude nada, sim? Nem vírgulas. E entregue logo ao jornal, para que saia logo. No meio, tem um trecho chamado “Au-dessus d’un certain vide”, entre aspas, mas que traduzo para o português na linha abaixo exatamente, como você gosta. Tive que botar em francês mesmo, porque é o título de um quadro que vi, de um pintor suíço, cujo nome já não me lembro bem. Você há de dizer que eu devia explicar que é um quadro; mas não posso, porque se disser que é uma pintura, pensa-se que então estou descrevendo a pintura, o que não é verdade: uma coisa nada tem a ver com a outra. Deixe assim mesmo, viu querida? Isso não tem a menor importância. – Quanto a escrever para os jornais, querida, é o que eu estou fazendo, não é? Você é muito ambiciosa… Mais do que estou fazendo não quero, nem posso. Pode ser que mais tarde. Fazer crônicas de estilo ligeiro, tem muito perigo. O perigo de tomar gosto na facilidade de escrever. O perigo de cair no que Antonio Candido chama de literatura “infernal”… Você leu o artigo dele? Ele diz, falando de um livro qualquer: que ele “reflete um espírito que vem chegando aos poucos em certos magazines, certos cronistas e contistas. Espírito que é uma mistura da irresponsabilidade das histórias de quadrinhos com o humorismo superficial, e cuja ética, ou falta dela, exprime a apoteose do gostosão”. Naturalmente sei que você não se refere a isso, e sim a crônicas boas como de Rachel de Queiroz. Mas por enquanto, querida, fico nisso ainda: mandando de vez em quando coisas para um ou outro jornal.
Minha queridinha , como você se sente agora? Seja muito feliz, minha irmãzinha, e que Deus te abençoe, te dê saúde, alegria interior e exterior, alegrias em casa e fora de casa.
Vou sábado para Paris: Maury seguirá logo que o ministro voltar, o que será mais ou menos uma semana depois de eu partir. Estou muito contente com a viagem. Embarco sábado de noite e domingo de manhã estou lá. Mas tenho cama reservada. Continue a escrever, minha querida, vou dar um jeito para que as cartas me cheguem logo às mãos. Desculpe eu ter escrito no lado avesso da carta, esqueci que o papel era meio transparente.
Receba um abraço grande, grande, minha margaridinha viçosa, filhinha pequena, e seja feliz, feliz, feliz, feliz, feliz, feliz, feliz! (como é bom escrever esta palavra).
Tania: como é? A Agir não vai pagar o resto? E quando? Já recebi dela 2.800,00, quer dizer, descontando daí os selos. Ela deve me pagar ainda essa quantia. Quando?