De: Clarice Lispector
Para: Tania Kaufmann

Berna, 22 outubro 1947

Minha queridinha,

A máquina está se consertando, tenho que escrever cuidadosamente à mão, o que detesto. Querida, florzinha, você está bem então? Com saúde? Está fazendo algum tratamento?

E Elisa com o concurso? – Fiquei contente em saber que Marcinha quer estudar até atingir o minueto… E falando em música, temos uma vitrola! O tio de Maury, quando passou por aqui, nos ofereceu, como presente de casamento um bonito relógio. Mas achamos que preferíamos uma vitrola – e compramos. Pode ser que isso não seja bonito, mas é bom.

Tem havido almoços etc. Hoje mesmo vai haver na Legação uma espécie de recepção, onde Felícia Blumental vai tocar compositores brasileiros. Maury vai bem. Engordou bastante nesses últimos tempos, trabalha bastante, está de um modo geral satisfeito. Gostou muito da viagem à Espanha, e nem se cansou de guiar tanto. Ele está e é muito bom. – Rosa continua um anjo. Hoje ela disse que não queria “estar na pele” de uma certa vizinha nossa, que é muito sem-vergonha. Perguntei se ela gostaria de estar na pele de outra pessoa qualquer. Para meu encabulamento ela disse que gostaria de estar na minha. Nem perguntei porque, pois fiquei inesperadamente envergonhada.

Ela, que me vê desde manhã até de noite, e assiste meus maus humores e minhas tristezas, mesmo assim aceitaria ser eu… Acho, pois, que não me resta senão querer ser eu mesma – o que já está ficando bastante chato, diga-se de passagem…

Estou com o livro, por assim dizer, terminado. Deus sabe que ele não vale nada, querida. Creio que nuns dois meses posso dá-lo por encerrado. Acontece que vou encerrá-lo porque já tenho nojo dele. Foi o trabalho que mais me fez sofrer. Já são três anos que viro e mexo, abandono e retorno. E faz apenas uns 3 meses que sei afinal o que eu estava querendo dizer nele… Esse livro foi mil vezes copiado, destruído, renascido, sei lá. Um dia desses, pegando numa das cópias mais recentes (bem diferente da de agora) – me deu náusea física à medida que me lembrava de como sofri por cada pedaço daquele e de como depois eu via que não prestava. Tive que não pensar nele durante dias – porque persistia em mim esse curioso nojo da dor. Enfim, querida, o livro não presta. Não evoluí nada, não atingi nada. Continuo com os pés no ar, continuo vaga e sonhadora, deslocando de algum modo o sentido da vida. Que Deus me perdoe. Três anos – para chegar a isso. Virei e revirei tanto o livro que já não entendo o seu sentido. Dá vontade de gritar de tanta impotência. Em todo esse período de 3 anos, desempenhou grande papel minha desadaptação. Parece, queridinha, que estou agora me habituando; tenho estado mais alegre e mais conformada, e mais capaz de me dominar e de abafar sonhos inúteis. Mas posso dizer que desse perído me ficou mesmo uma repugnância de sofrimento, como se tem repugnância de ferida que não cura. Não sei o que fazer com o livro, Tania. E estou lhe pedindo conselho. Não adianta me dizer que devo deixá-lo de lado e revê-lo mais tarde: ele está podre nas minhas mãos, e cada vez mais me afastarei dele. Embora esteja tão ligada a ele, que sou incapaz de começar outra coisa. Naturalmente você há de perguntar o que diz Maury. Maury uma vez começou a ler e não gostou (ele, à primeira leitura, também não gostou do 1o nem do 2o livro, no que teve razão). Deste aqui não só ele não gostou, como se desinteressou de tal modo que só leu umas 15 páginas, e esqueceu de ler o resto. Nem aliás me pediu mais. Compreendo muito bem. Naturalmente a semana que se seguiu a esse incidente sem importância foi muito ruim para mim; guardei o livro “para sempre”. Mas, com uma constância que até parece leseira, voltei de novo a trabalhar nele; parece que sou incorrigível. Maury teve razão: o livro não presta. Mas o que é que eu devo fazer? Não sei. Mandá-lo, depois de definitivamente copiado, para você e Lucio lerem? Diga, por favor, querida. (Se não digo também para Elisa ler, é que ela tem tanto escrúpulo num caso desses, que não vale a pena provocar nela um problema.) Me escreva, querida, diga o que você pensa.

Enquanto isso, aquele rapaz, que está em Genève, está completamente neurastênico. Parece mesmo que acorda de noite para chorar… Não diga a ninguém, naturalmente. Parece que ele vai mesmo para uma casa de saúde. Em parte, deve ser porque ele esteve doente, e isso o deprimiu. Mas acho que em grande parte, isso vem do desenraizamento dessa vida no estrangeiro. Nem todos são bastante fortes para suportar não ter ambiente propriamente, nem amigos. Cada vez mais, admiro papai e outros que, como ele, souberam ter “vida nova”; é preciso ter muita coragem para ter vida nova. Nessa carreira se está completamente fora da realidade, não se entra em nenhum meio propriamente – e o meio diplomático é composto de sombras e sombras. É considerado mesmo de mau gosto ter um gosto pessoal ou falar de si ou mesmo falar de outros. Ninguém se dá propriamente com um diplomata; com um diplomata, se almoça. Isso tudo – e mais o conforto, as facilidades e a instabilidade – faz com que eles se considerem à parte e acima dos outros. Assim um deles disse, falando de uma moça: “ela não casou bem: casou com um simples médico…” E mesmo ele uma vez se queixou ao tio de Maury de que trabalhava demais e estava se esgotando. O tio de Maury, que é homem misturado com a vida, perguntou quantas horas ele trabalhava. Resposta: umas 4 por dia, e muitas vezes menos… O homem caiu na gargalhada! Porque ele mesmo trabalha mais de 8 horas por dia, e tem responsabilidade direta, tem assinaturas, despachos de navios, e também dinheiro a perder. E não tem tempo de ter a horrível depressão moral de M.

Acho que falei demais, querida. Espero que você tenha tido paciência de ler até o fim…

Peça a Marcinha para me escrever uma carta. Ela está me “devendo” resposta… Diga sobre o concurso de Elisa. Como vai William? Mande notícias dele, sim? Sobre saúde, trabalho.

Minha irmã querida, Deus te abençoe e te dê muita saúde e alegria.

Clarice