• Romance
  • 1961

A maçã no escuro

“É o melhor. Não posso defini-lo, como é, como não é… posso apenas dizer que é muito mais bem construído que os anteriores.” Essa declaração foi feita por Clarice Lispector na ocasião da publicação de A maçã no escuro (1961), romance que, ao lado de A paixão segundo G.H. (1943), marca um ponto de culminância em sua obra, por enfrentar a experiência do limite da maneira mais radical. Narrado em terceira pessoa, o enredo gravita em torno de Martim, que, em fuga por um crime que supostamente cometeu, oscila entre o medo e o desejo de liberdade.

O leitor atento e paciente perceberá que pouco importa se houve ou não o crime, se Martim será ou não condenado. Desde o início, as linhas fundamentais da escrita de Clarice já denunciam que não haverá ali uma narrativa policial nos moldes convencionais, onde a força do enredo recai no enigma, no indício e na decifração. O leitor saberá que o crime de Martim é abstrato, simbólico, e que, por meio dele, se atingirá a questão da liberdade e da difícil construção de um destino próprio. É nesse lugar problemático que Martim pisa. Seu crime e sua fuga surgem, pois, como uma espécie de ascese, tal como ocorre com gh no ritual de devoração de uma barata morta.

A cuidadosa organização simétrica de A maçã no escuro – são três capítulos, três os personagens centrais e três os secundários – configura-se como uma de suas qualidades estruturais. Além disso, a atmosfera noturna e sombria abre passagem para a noite interior de Martim e para seu permanente estado de vigília. Um herói a quem se vai conhecendo aos poucos; um homem que quer dar um “destino ao enorme vazio que aparentemente só um destino enche”. Trata-se de uma narrativa, portanto, que não faz concessões ao leitor, levando-o também para a escuridão onde tudo é criado, a escuridão do mundo.

Escalando passo a passo o desafio de sua estruturação narrativa, chega-se ao centro da escrita de Lispector, que, situada nos próprios limites da língua, enfrenta o mundo para dizer o indizível e figurar o infigurável. Em outras palavras, além da liberdade e do destino como questão, igualmente compartilhamos com Clarice a sofisticada reflexão sobre a escrita como um lugar muito frágil e que, em sua lenta rotação, procura tocar o rosto sombrio e lírico do mundo, captando-lhe o ínfimo e o volátil. A escrita como possibilidade, como “esse modo instável de pegar uma maçã no escuro, sem que ela caia”.

Por Martha Alkmin