• Contos
  • 1974

A via crucis do corpo

Ao ser lançado, em 1974, A via crucis do corpo causou polêmica. Parte da crítica reagiu negativamente àquela obra escrita por encomenda, com a proposta de ser erótica. A ideologia da seriedade e o enquadramento da autora como ícone da literatura filosófica impediram que se percebessem ali jogadas de mestre. Primeiro, a remissão que ela faz a alguns cânones da literatura erótica e pornográfica brasileiras. Em algumas das histórias, ela estabelece claramente conversas com o dramaturgo Nelson Rodrigues e o escritor curitibano Dalton Trevisan: recorre, bem mais do que em outras obras, a diálogos rápidos; usa frases curtas; trata de tabus como a prostituição, o estupro, o ménage à trois; incorpora o kitsch; subverte a separação entre a alta e a “baixa” literatura. Não no livro, mas na crônica “Um caso para Nelson Rodrigues”, publicada no Jornal do Brasil um ano antes, ela cita os dois mestres da provocação à moral e aos bons costumes: “Mas estou me confundindo toda ou é o caso de tão enrolado que se puder vou desenrolar se bem que Dalton Trevisan narraria com o poder maior que tem. As realidades dele são inventadas. Peço desculpa porque além de contar os fatos eu também adivinho e o que adivinho aqui escrevo”. A intertextualidade se dá de forma paródica e com muito senso de humor.

Outro aspecto marcante do livro são as situações que discutem a solidão e o desamparo, especialmente aliados à velhice, mas não só. Datas solenes e convencionais como o 13 de maio e o Dia das Mães; a comemoração de um aniversário; ou a magia que se estabeleceu desde os românticos em torno do escritor em seu processo de criação – nenhum desses ritos, mitos e convenções conseguem obliterar a sensação de mal-estar, de isolamento insuperável, num cotidiano que distancia as pessoas, apesar de todos os aparatos eletrônicos que decoram as casas: rádio, televisão, telefone.

O livro consegue trabalhar em dicções diversas, divertindo-nos com contos que recorrem ao grotesco e a técnicas de humor elencadas pelo filósofo Henri Bergson, e comovendo-nos com a idosa levada a pagar por sexo, porque um corpo precisa de outro corpo.

Por Clarisse Fukelman