Publicado em 1974, reúne crônicas, contos e produções ficcionais que fogem a classificações. Como sugere o texto que dá título ao livro, a obra explora dimensões pulsionais, áreas limítrofes com o delírio e o mágico, androginia, camadas íntimas do ser. A noite se apresenta como materialização do onírico, lugar de rituais, de acontecimentos improváveis, mas densos de realidade – ou de infrarrealidade –, até que aconteça a manhã “límpida como coisa recém-lavada”. Manhã que “em tanta mansidão” pode abrigar a noite e o “modo mais leve e silencioso de existir”.
Uma das barreiras a serem vencidas para chegar ao que “é”, conforme “Relatório da coisa”, consiste em abolir a palavra, anteceder ao ato de nomeação. O excesso de dizer e ao mesmo tempo a incompletude do dizer estão em tudo o que se diz. Assim como o relógio não dá conta do significado do tempo, a palavra é posta em cheque quanto a sua capacidade de significar. A reflexão reaparece em “É para lá que eu vou”.
Outro tema do livro é a velhice. O apetite vital independe da idade, e o velho sofre com olhares condescendentes, às vezes repulsivos: em “À procura de uma dignidade” o desamparo confronta Eros, a pulsão sexual prestes a se manifestar, não importa a idade; em “A partida do trem”, delicadamente se “tocam” os destinos da jovem desiludida pelo amor e da idosa que se tornara um fardo familiar. Outro tópico forte na obra é a conexão epifânica e brutal entre sujeito e natureza, cuja potência, destituída de racionalidade, surpreende a força da vida e a violência da morte.
Todo esse vigor pulsional se expressa em colagens de frases, fluxos de palavras, fragmentos, instantâneos que sintetizam evocações, sentimentos e percepções com intensa força poética. A que não faltam toques de humor judaico e de autoironia, nem sempre percebidos, mas presentes em toda a obra de Lispector. “Vou lhes contar um segredo: a vida é mortal” (“Tempestade de almas”). Ou melhor, nos versos que Drummond dedica ao livro: “– Onde estivestes de noite/ Que de manhã regressais/ com o ultramundo nas veias,/ entre flores abissais?”.
Por Clarisse Fulkeman