Rosenbaum, Yudith. O infamiliar. IMS Clarice Lispector, 2024. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2024/02/22/o-infamiliar/. Acesso em: 21 dezembro 2024.
A palavra “infamiliar” é um neologismo que Clarice Lispector utilizou em vários momentos de sua obra. O vocábulo não está dicionarizado na língua portuguesa e não se pode afirmar que a autora seja a primeira a criá-lo na literatura brasileira. No entanto, ao mencionar a palavra “infamiliar” ao menos dezesseis vezes1, seja nos romances, seja em contos e crônicas, a autora faz desse significante singular um objeto de maior atenção. Ainda mais se considerarmos que os termos “estranho”, “estranha” e “estranheza”, ambos correlatos ao significado de “infamiliar”, aparecem não menos do que centenas de vezes nas narrativas.2
Os sentidos que a palavra encerra, como se verá, condensam uma das marcas mais características de seus textos. Não é incomum leitores e leitoras, bem como a crítica de forma geral, evocarem o efeito “infamiliar” dos enredos claricianos, ao lado das camadas semântica e sintática da insólita escrita de Lispector. Aliás, “insólito” gravita no mesmo campo lexical de “infamiliar”, cuja potência sígnica provém de sua conexão com outros saberes que lhe deram origem, sendo a psicanálise o território em que a palavra ganha ressonâncias mais particulares.
Para uma apreensão inicial da palavra-conceito “infamiliar” dentro dos estudos freudianos, é preciso dizer que, em 2019, no centenário do notável ensaio de Freud “Das Unheimliche”, o título foi traduzido justamente por “O infamiliar” – o artigo freudiano transformou em substantivo o que era uma qualidade do sentir – reverberando, por coincidência, a presença do vocábulo em Clarice, que apareceu muito antes da citada tradução, já em seu segundo romance, O lustre, de 1946. Antes e depois desse feliz achado dos tradutores, a dificuldade em encontrar uma palavra que abarcasse o fenômeno, tal qual Freud o concebeu, gerou tentativas em diversas línguas3 e no português tivemos algumas escolhas, como “O estranho” (Edição Standard/Imago, 1996), “O inquietante” (Companhia das Letras, 2010) e, mais recentemente, “O incômodo” (Blucher, 2021).
Mas o que significa das Unheimliche na teoria freudiana e que relação Clarice Lispector teria com essa noção?
No campo da estética, segundo Freud, haveria um domínio de sentimentos angustiantes e aterrorizantes, negligenciados pela literatura especializada voltada ao Belo e ao Grandioso. O “infamiliar” seria um núcleo no interior desse domínio. Na língua alemã, unheimlich é um adjetivo/advérbio de uso comum, formado pelo prefixo de negação un e pela palavra heimlich (familiar), derivada de Heimlichkeit (familiaridade), cujo núcleo é Heim (lar, morada), que significa doméstico, íntimo, conhecido. Após vasta pesquisa lexicológica, filológica, estética e literária para apreender os significados da palavra, Freud percebe que há uma ambiguidade inerente ao termo heimlich, pelo seu caráter antitético: refere-se tanto ao que é confiável e confortável quanto ao que fica oculto, secreto e escondido, podendo coincidir com seu contrário, unheimlich. Tal descoberta faz Freud afirmar: “Em suma, familiar [heimlich] é uma palavra cujo significado se desenvolveu segundo uma ambivalência, até se fundir, enfim, com seu oposto, o infamiliar [unheimlich]. Infamiliar é, de certa forma, um tipo de familiar […]” (p. 20). E o que tornaria o familiar “infamiliar”? Segundo Freud, seria o processo de recalque do que não deveria vir à tona por sua incompatibilidade com a consciência, como determinados desejos, pensamentos, lembranças: “O infamiliar é, então, também nesse caso, o que uma vez foi doméstico, o que de muito é familiar. Mas o prefixo de negação – in-, em alemão Un – nessa palavra é a marca do recalcamento” (p. 20).
Ao final do ensaio mencionado, tendo percorrido a literatura fantástica de E.T.A. Hoffmann para corroborar a ciência psicanalítica, Freud conclui que a “inquietante estranheza” (locução recorrente para o vocábulo das Unheimliche) revela a angústia que acomete personagens diante do que deveria ter permanecido inconsciente e retorna gerando mal-estar. O “infamiliar”, conclui Freud, é o efeito da (re)aparição indesejada de complexos infantis, como a experiência do duplo (“duplicações do Eu, divisão do Eu, confusão do Eu”, p. 69), do fantástico (quebra da lógica de causalidade entre acontecimentos, afim à magia e ao sobrenatural), do animismo (crença em múltiplas naturezas que enlaçam seres humanos e não humanos), da compulsão à repetição (retorno involuntário de ideias, sentimentos, cenas, lugares etc) e do complexo de castração (corte narcísico que remete ao horror da morte). A presença do feminino, alteridade radical ao homem e hostil a ele pela sua estranheza e diferença, bem como o desamparo diante do destino implacável, também são possíveis fontes do “infamiliar” analisado por Freud.
De todo modo, o “sentimento do ‘infamiliar’” (p. 49) pode decorrer da perda de fronteiras entre o mundo psíquico e o mundo exterior, entre a realidade e a fantasia, entre o animado e o inanimado. A sensação anômala acompanha situações em que o natural intercambia características com o sobrenatural ou mágico, indistinguindo um e outro pela ausência de limites e de hierarquia entre eles, gerando a angustiante estranheza quando ambos os tipos de natureza não se diferenciam.4)
Importa sublinhar que a sensação de tal infamiliaridade (seja nos pacientes da clínica, seja na literatura) denuncia a divisão do sujeito diante de si mesmo, uma vez que a suposta unidade do eu se revela falsa. O inconsciente passa a ser o território de vivências que se tornam estrangeiras ao próprio sujeito, o que instaura o não-idêntico no cerne da identidade. Tal cisão, dada pelo processo de recalque, é constitutiva da subjetividade humana, e conteúdos alijados da consciência por mecanismos de defesa podem, sob certas circunstâncias, furar o bloqueio que impede sua expressão e dominar a cena.
Foi preciso retomar brevemente o ensaio freudiano para apontar direções da literatura clariciana em franco diálogo com a mesma concepção do sujeito psicanalítico. A modernidade da obra de Lispector não poderia deixar de expor seu vínculo com o Zeitgeist (espírito de época) que gerou as vanguardas artísticas do fim do século XIX, bem como a própria psicanálise. O homem cartesiano, em sua pretensão de unicidade, racionalidade e coerência consigo mesmo, é destronado em nome da multiplicidade de “eus” e do desconhecimento sobre si. “O ego não é o senhor de sua própria casa”, diz Freud.5 E, quando menos se espera, vive-se o contato com das Unheimliche, em que intensidades pulsionais, sensações e fantasmas passados e presentes são mobilizados por situações cotidianas. É nesse momento que reencontramos o fio da obra de Clarice Lispector, sempre atenta ao que escapa à frágil vigilância egoica e ao ruidoso silêncio que se escuta dessa “terra estranha interior”, nas palavras de Freud.
O infamiliar clariciano
O significante “infamiliar” atravessa praticamente todos os livros da autora, mas há passagens em que se mostra mais expressivo, realçando o que Freud mapeou a partir do conto de Hoffmann, mas indo além. Das Unheimliche imprime à atmosfera das narrativas algo que foge ao comum e ao habitual, despertando até mesmo horror, susto, espanto, mal-estar, estranhamento… Em seu segundo romance, O lustre, de 1946, protagonizado por Virgínia, há uma descrição do espaço e nele o termo “infamiliar” aparece pela primeira vez e instaura um ambiente sinistro:
Havia nas salas sombrias e nada extraordinárias algo que sobressaltava e que alertava porque continha uma intimidade envolvente e infamiliar – como uma banheira suja de estranhos onde fosse preciso despir-se e pôr-se em contato brusco. (LISPECTOR, 2021, p. 262, grifo meu)
A cena indefine o que seria esse “algo que sobressaltava” nas “salas sombrias e nada extraordinárias”, como um alerta por conter uma “intimidade envolvente e ‘infamiliar’ ”. O recorte é misterioso, mas parece se referir a uma ordem externa que se projeta no universo interior e uma ordem subjetiva que impacta o exterior, tornando o ambiente não mais familiar. O que seria? A segunda parte da frase intensifica a ideia ao trazer a imagem da banheira (espaço mais privativo e “secreto” da casa) “suja de estranhos”, ou seja, presenças irreconhecíveis com as quais Virgínia, a protagonista, imagina que deveria se despir e “pôr-se em contato brusco”. Sombras, intimidade, banheira, estranhos, contato, nudez, brusquidão… Não está ausente certa violência nesse encontro com desconhecidos. Se há um retorno de “algo” infantil – um banho de criança na banheira, por exemplo, ou alguém invasivo na casa – chama a atenção o caráter pouco prazeroso justamente pela expressão “contato brusco”. Das Unheimliche surge, portanto, como efeito inquietante ativado por esse “algo” (alguma lembrança?) – talvez uma experiência já conhecida, mas recalcada – revivida agora nessa visão meio onírica de uma banheira marcada pela estranheza. O comparativo “como uma banheira” estabelece a ponte entre presente e passado. O que até então era sorrateiro e inconsciente, por resguardar alguma ameaça, vem à luz e gera o sentimento “infamiliar”. A questão que “sobressalta”, portanto, é a intimidade que se tornou sinistra, o conhecido que surge como insólito.
Em seus textos, Clarice quer flagrar o instante em que se abre uma fenda na rotina diária quando “algo sobressalta”, para usar sua expressão. O disparador dos processos infamiliares pode ser absolutamente qualquer estímulo – um ovo na mesa da cozinha (“O ovo e a galinha”), rosas no vaso (em “A imitação da rosa”), um relógio (“O relatório da coisa”), um esbarrão entre mãe e filha no táxi (“Os laços de família”), um rato morto na avenida Copacabana (“Perdoando Deus”)… A angústia ou inquietação despertadas nas personagens podem advir das vivências mais inusitadas ou, paradoxalmente, de afetos positivos, nada sombrios, mas sempre provocados e mobilizados pela fricção entre o dentro e o fora. No romance já citado, por exemplo, às vezes é a própria alegria ou a felicidade vivida por Virgínia o que traz o estado “infamiliar”, como se vê na citação abaixo:
Relembrou a tarde com Vicente; a felicidade era tão violenta, abalava-a tudo; aqueles instantes horríveis haviam-na deixado fora de si, infamiliar, curiosa e removida de seu interior; podia-se pois sucumbir de felicidade, ela se sentira tão abandonada; mais um minuto de alegria e teria sido lançada para fora de seu mundo por desejos audaciosos, cheia de uma esperança insuportável (O lustre, p. 321, grifos meus).
Os grifos marcam reações inabituais atribuídas à felicidade que a personagem viveu numa tarde com Vicente: violenta, horrível, sucumbir, abandonada, insuportável… A vivência feliz, que o senso comum consideraria apenas fonte de emoções sublimes e prazerosas, leva Virgínia a ficar “fora se si” e sob o risco de “sucumbir”. O excesso de felicidade, portanto, pode lançar a personagem para “fora de seu mundo por desejos ambiciosos”. O que excede a continência egoica também movimenta o estado “infamiliar”; a eclosão inesperada de um sentimento que evoca um abandono (“ela se sentira tão abandonada”) ressurge de forma horripilante. Sair de si é viver o estrangeiro de si mesma, com o qual já fez contato e dele se distanciou. Terá sido a intensidade dos “desejos audaciosos” o que retorna agora como uma ameaça que a transporta para “fora de seu mundo”?
O espectro “infamiliar” nas narrativas claricianas ganha múltiplas figurações e revela a maestria da autora em dar forma ao que justamente se esquiva a adquirir formas acabadas. O “in-familiar”, como quer o nome, acena ao que perdeu a configuração rotineira, sobretudo quando as capas protetoras e imaginárias, mediadoras de nossas ligações com o mundo cotidiano, se rompem e desnuda-se o Real (registro lacaniano do que é impossível de ser abarcado pelo simbólico). É aí que o estranho toma corpo e a nudez das coisas é uma presença ofuscante e perturbadora.
O conto “Amor”, de Laços de família6, é especialmente revelador da transformação do prosaico, da vida doméstica e cotidiana, em “infamiliar”. A personagem Ana está sentada no bonde com a sacola de compras no colo, voltando para casa. Ela relembra como “suplantara a íntima desordem” da sua juventude, quando sentia uma “exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável” (p. 30). Vivia agora uma “vida de adulto” (p. 31), sentindo a sólida “raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera” (p. 30), afirma, legitimando a escolha pelo casamento e pela maternidade. É quando avista um cego mascando chicletes parado no ponto do bonde. É o bastante para o coração bater “violento, espaçado”. “Ele mastigava goma na escuridão” (p. 32), diz o narrador. O cego, que olha para dentro, desperta Ana para o que não pode enxergar em si mesma, operando como a figura mítica de Tirésias. O bonde dá uma “arrancada súbita” e as compras dentro da rede de tricô despencam no chão, quebrando os ovos: “Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede” (p. 32). A sequência de frases desvela a crise que acomete a protagonista: “O mal estava feito” (p. 33), “A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido” (p.33), “O mundo se tornara de novo um mal-estar” (p. 33). E a marca da crise “era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada” (p. 33-34). A presença perturbadora do cego, índice do mundo externo, provoca um deslocamento (ou descolamento?) interno que projeta Ana (como Virgínia) em direção ao “fora” de seu mundo conhecido. A ruptura com a “corrente de vida”, construída para abafar a intensidade do prazer e do desprazer, expulsa Ana da “rede” familiar e social na qual desempenhava papéis asseguradores e a lança ao terreno da infamiliaridade. A identidade adaptada fica para trás e a fenda se abre ao novo que, no entanto, sempre esteve aí pronto a assaltar o sujeito distraído, ao menor contato com a tessitura da vida. O “infamiliar” em Clarice é o encontro desarmado com a Vida (a maiúscula é da autora) experimentada fora de seu enquadre usual.
Ela desce do bonde desorientada e adentra os portões do Jardim Botânico, onde vive a experiência de uma vastidão ilimitada e da coexistência de contrários, como fascínio e náusea, dor e prazer. “Tudo era estranho, suave demais, grande demais” (p. 35). Ou ainda: “O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno” (p. 37). A lembrança dos filhos faz Ana retornar com pressa ao lar, agora desfamiliarizado. “[Q]ue nova terra era essa?”, se pergunta. “E por um instante a vida que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver” (p. 37). Está selada a inversão típica dos textos claricianos: a vida de todo dia é estranhada e o seu avesso passa a ser o natural. A violência da domesticação da vida (“um modo moralmente louco de viver”) é denunciada por um olhar desviciado, capaz de ver o de sempre pela primeira vez.
Pensar o “infamiliar” em Clarice é vislumbrar no cerne da própria família, na intimidade mais recôndita, a emergência de sua maior ameaça. E precisamente os contos de Laços de família são os mais afetados por acontecimentos insólitos em meio ao ambiente da família de classe média carioca, regida pela ordem patriarcal ainda vigente nos anos 50, período de escrita do livro. Quanto mais as personagens se furtam ao contato com a estranheza, mais são flagradas por ela. Uma frase do conto “Feliz aniversário”, que encena (teatralmente) a festa de 89 anos da matriarca Dona Anita, é um bom exemplo do esforço em compactuar com o artificialismo das relações instituídas, mesmo que os afetos não correspondam a elas: “A aniversariante recebeu um beijo cauteloso de cada um como se sua pele tão infamiliar fosse uma armadilha” (p. 82). Os parentes cumprimentam a aniversariante com cautela, sabendo que a protagonista os vê com desprezo e temem a infamiliaridade de sua pele, sintoma da ruína familiar. A pele, maior órgão do corpo, é o que une e separa uns dos outros, e por ela se vive (na pele) a perda disfarçada dos elos construídos.
É também o caso de Laura, de “A imitação da rosa”, cujos “laços de família” representam um enlace enlouquecedor. Ela, que havia voltado de uma internação psiquiátrica, esforça-se por estar “bem” (as sugestivas aspas são do conto), sendo a esposa submissa e insignificante, apagada em seu vestido marrom e seus olhos marrons. Com a mesma função do cego para Ana, é a visão de algumas rosas no vaso que faz transbordar o que até então se mantinha em surdina. A explosão erótica, vital e transgressora (as rosas simulam um ato sexual) desrecalca uma vida inteira que o adoecimento tentou solapar. E é como “louca” que Laura entra em seu trem para Marte… Saindo da dita “normalidade”, vista agora pelos olhos do estranhamento, Laura vive o seu êxtase feminino sem, contudo, retornar ao socius, como faz Ana. Transformada em rosa pela força do olhar7, Laura desabrocha em seu particular universo imaginário, distante e avesso ao enredamento limitante da vida comum.
Se em “A imitação da rosa” o encontro com o “infamiliar” trazido pelas plantas é o trampolim para a perdição (ou libertação?), em outras narrativas pode ser o operador de uma travessia essencial que passa pela experiência do informe. Em Clarice, a dissolução da forma se afina perfeitamente com a ideia de algo que resiste a ser representado – mote maior da escrita clariciana –, estando sempre aquém de qualquer signo, mas que a ficção busca refazer com sua teia de fios verbais. No (des)encontro entre as palavras e as coisas, a emergência do “infamiliar” surpreende quem faz contato com o que está vivo demais, como se lê na crônica “A geleia viva como placenta”8. Trata-se do relato de um pesadelo da cronista em que seu semblante está refletido numa viscosa matéria deslizando pelos móveis. O termo “placenta” no título sugere a imagem de um feto, trazendo o informe para o campo dos primórdios da vida humana: “Lançada no horror, quis fugir de minha semelhante – da geleia primária”. A assombração parece vir de um pré-sujeito sem forma definida, nomeado como “minha deformação essencial”. O duplo aqui se mostra sinistro.
O romance A paixão segundo G.H.9, de 1964, é um dos mais pulsantes exemplos do confronto entre o ser humano e sua alteridade radical na obra clariciana, ou seja, o encontro com o(a) estrangeiro(a) ou o(a) outro(a) de si, que, por sua vez, impacta quem com ele(ela) interage. G.H. é uma mulher burguesa, que mora em um apartamento de cobertura no Rio de Janeiro e adentra o quarto da empregada Janair, recém-saída do emprego. Na condição de ser a outra de classe social, Janair (de cujo rosto G.H. sequer se lembra) desenhara um mural a carvão na parede (um homem, uma mulher e um cão) que parece acusar a patroa de não a reconhecer como um ser vivente. No quarto, G.H. estremece, sentindo-se expulsa de sua própria casa. “E que ali dentro de minha casa se alojara, a estrangeira, a inimiga indiferente” (p. 39). A passagem por Janair leva G.H. ao confronto com o outro de espécie diferente10. Ela se assusta diante de uma barata saindo do fundo do armário. Depois de golpeá-la, G.H. confronta a massa branca que emerge por entre as cascas e vive a via-crúcis de um percurso absolutamente… “infamiliar”. Também as suas “cascas” ou camadas sociais e subjetivas desmoronam frente ao enigma de si e do outro incompreensível. O inseto abjeto faz vir à tona o recalcado da cultura, a desordem que desestabiliza a vida ordinária e acena para um mundo pulsional indelimitado:
Como chamar de outro modo aquilo horrível e cru, matéria-prima e plasma seco, que ali estava, enquanto eu recuava para dentro de mim em náusea seca, eu caindo séculos e séculos dentro de uma lama – era lama, e nem sequer lama já seca mas lama ainda úmida e ainda viva, era uma lama onde se remexiam com lentidão insuportável as raízes de minha identidade. […] Toma, toma tudo isso para ti, eu não quero ser uma pessoa viva! Tenho nojo e maravilhamento por mim, lama grossa lentamente brotando (p. 53).
O encontro entre humano e não humano é, como se vê, mais uma das fontes de das Unheimliche em Clarice, sobretudo quando a vida “pacata” e acomodada é subvertida, tumultuada por percepções inusitadas ou visões que reativam inquietações adormecidas. Ainda G.H.:
Aguardei que a estranheza passasse, que a saúde voltasse. Mas reconhecia, num esforço imemorial de memória, que já havia sentido essa estranheza: era a mesma que eu experimentava quando via fora de mim o meu próprio sangue, e eu o estranhava. Pois o sangue que eu via fora de mim, aquele sangue eu estranhava com atração: ele era meu (p. 55).
A fragmentação dos órgãos do corpo, vertendo o sangue fora de si, faz parte da memória corporal de G.H. e acena para o horror da morte e a parcialidade das pulsões como vivências primitivas11. Antes da organização adulta da sexualidade, Freud mostra o caráter polimorfo da gratificação sexual infantil, que deverá ser regrado pelo caminho simbólico e civilizatório da cultura. Pois G.H. faz o trajeto contrário, numa anti-odisseia homérica, partindo do sujeito construído para o mundo primário e neutro da matéria amorfa, do it, do inexpressivo, do planctum, do nada, do plasma: “Para ter chegado a isso, eu abandonava a minha organização humana – para entrar nessa coisa monstruosa que é a minha neutralidade viva” (p. 94). A desmontagem da sua humanidade, “na transformação da crisálida em larva úmida” (p. 71), leva à despersonalização em direção ao “núcleo da vida”, à miragem de uma primordial e intangível origem do mundo orgânico compactado na ancestralidade da barata. Essa porção inumana, “a parte coisa da gente” (p. 65), leva G.H. a sentir “um horrível mal-estar feliz”. O processo vertiginoso de G.H. culmina em uma tal aproximação da massa branca da barata que os lugares da mulher e do inseto se intercambiam, podendo a protagonista habitar o “infamiliar” do outro como sua parte estranhada. Afinal, “o mundo é extremamente recíproco”, diz G.H., evocando a vivência animista e também perspectivista, segundo Nodari.12
A vivência infamiliar se dá, ainda, entre um explorador francês e uma pigmeia africana grávida, no conto “A menor mulher do mundo”. Nesse caso, o racionalismo cartesiano se encontra com o feminino em estado bruto. A raça de gente dos Likoualas, à qual pertence a menor das pigmeias, vive aderente à natureza selvagem, sem o verniz social da cultura. E na fricção entre os dois mundos – dois lados de uma mesma moeda clariciana, dado o copertencimento entre a casca/crosta13 e o núcleo (ou gema/massa branca/geleia) – o conquistador Marcel Pretre vive o desassossego da infamiliaridade ao tentar compreender (ou controlar) o signo irredutível de Pequena Flor:
Na certa, apenas por não ser louco, é que sua alma não desvairou nem perdeu os limites. Sentindo necessidade imediata de ordem, e de dar nome ao que existe, apelidou-a de “Pequena Flor”. E para conseguir classificá-la entre as realidades reconhecíveis, logo passou a colher dados a seu respeito (LISPECTOR, 1991, p. 88).
O que não é reconhecível na esfera familiar da linguagem e do saber científico torna-se objeto aprisionado pela rede do grande colonizador, que destitui sua criatura de qualquer humanidade para dela manter distância. Ele a aproxima da planta (“Pequena Flor”), do mineral (“esmeralda nenhuma era tão rara”) e do animal (“escura como um macaco”). A foto da pigmeia no jornal circula pelas famílias cariocas na cidade, escancarando o avesso do refinamento civilizacional ao expor a crueza e a crueldade de quem estranha e rejeita a diferença.
Análogas às narrativas anteriores, as crônicas “Perdoando Deus”14 e “Mineirinho”15 trazem experiências viscerais em que o “infamiliar” é incontornável. Na primeira, a narradora se sente plena como a “mãe de Deus, que era a Terra, o mundo” (p. 48) ao caminhar pela avenida Copacabana, quando se aterroriza ao quase pisar em um rato morto. “Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa” (p. 49). A castração de sua onipotência deflagra uma revolta contra Deus e a faz questionar suas crenças e a si mesma: “A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto” (p. 50). Chega a pensar na “vingança dos fracos” e quer “estragar a reputação de Deus”, até que, em profunda análise pessoal, intui o que estaria na crueldade do gesto de Deus: “Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato” (p. 51). Ela e o seu contrário terminam por se igualar como existências congêneres, um par similar ao de G.H. e o seu avesso.
Já “Mineirinho” não apresenta uma saída reconciliadora pela reflexão. O acontecimento que provoca a crônica é o assassinato pela polícia de um bandido no Rio de Janeiro, com treze tiros. Declinando cada um dos tiros, a cronista chega ao último identificada corporalmente ao criminoso: “O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro” (p. 253). Mineirinho, a minoridade social de um Brasil desigual, surge como o duplo estranhado da cronista, silenciado para não destruir os alicerces do sistema e da casa psíquica de cada um de nós: “Tudo o que nele foi violência é em nós furtivo, e um evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos. Para que a casa não estremeça” (p. 254). Em Mineirinho pulsa a figura do desamparo, “filho de quem o pai não tomou conta” (p. 254), e a infamiliaridade que tal condição provoca apenas denuncia que “a grama de radium”, que nele foi pisada, habita-nos igualmente: “Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara” (p. 246).
*
Gema do ovo, rosa, massa branca da barata, pigmeia, radium, geleia viva como placenta… A cadeia significante das imagens que se tornam infamiliares em Clarice (entre muitas outras) mostra a complexidade e vulnerabilidade do processo de construção do sujeito no mundo. Ao menor passo, tropeça-se em espelhamentos, identificações, confrontos, distrações, contemplações. É sempre por um triz que a vida clandestina, abafada pelas errâncias do desejo e seus desvios, pode eclodir como presença incômoda e reveladora.
Para finalizar, importa reconhecer que o “infamiliar” clariciano atinge em cheio a matéria verbal que o faz existir, sendo impossível separar conteúdo e forma. A desfamiliarização dos códigos de linguagem é fundamental enquanto operadora do estranhamento, próximo, em certo sentido, ao fenômeno de Ostranenie estudado por Chklovski em seu ensaio “A arte como procedimento”16, de 1917, contemporâneo ao de Freud. Nele, o formalista russo trabalha a singularização do objeto artístico quando retirado de seu contexto habitual, suspendendo seu sentido corriqueiro. O efeito estético, portanto, é fruto da desautomatização da percepção, afastando o objeto de suas determinações utilitárias. É nesse sentido que o “infamiliar” de Clarice parece concretizar as proposições de Chklovski, uma vez que a autora sabe que precisa torcer a língua a ponto de desmontar as amarras que impedem a busca do irrepresentável, do indizível e do selvagem coração da vida. Por isso, suas criações apelam aos paradoxos (“Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo”), aos oxímoros, (“calma ferocidade”), às reversibilidades de sentido (“O que é uma janela senão o ar emoldurado por esquadrias?”), às adjetivações inesperadas (“alegria difícil”, “náusea doce”), às reflexividades pronominais (“A vida se me é”) etc. Sem tais procedimentos, a escrita não teria a potência de ser aquilo mesmo que suas palavras expressam.
É nas margens da língua familiar, portanto, que Clarice fabrica sua linguagem “infamiliar”, desanestesiando os sentidos gastos e criando brechas criativas no mundo demasiadamente habituado.
* Fotografia: Barra Funda – Esquinas, fachadas e interiores. Dulce Soares. São Paulo, SP, 1977. Acervo Dulce Soares. Instituto Moreira Salles.
- Segundo o arquivo da editora Rocco: [recurso eletrônico] / Clarice Lispector. 1. ed. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [recurso digital] Romances, contos e crônicas em pdf. Acessível em Romances contos crônicas e cartas v.2.pdf[↩]
- Ibid.[↩]
- Só em francês pelo menos três traduções diferentes: “L’inquiétant étrangeté”(Galimard), “L’inquietant familier”(Payot) ou simplesmente “ “L’inquiétant (PUF); em espanhol, “Lo siniestro”(Biblioteca Nueva) ou “Lo ominoso”(Amorrortu); em italiano, “Il perturbante”(Boringhieri); em inglês, “The uncanny”(Standart Edition) […]” (p. 8). Ver a respeito “Freud e o infamiliar”, de Gilson Ianni e Pedro Heliodoro Tavares. Em O infamiliar. [Das Unheimliche]. Ed. bilingue. (Trad. Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares). Seguido de O homem da areia, de E.T.A. Hoffmann (Trad. Romero Freitas) 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. Obras incompletas de Sigmund Freud; 8. As citações serão seguidas apenas do número da página.[↩]
- A esse respeito, remeto o(a) leitor(a) ao ensaio “O infamiliar animismo de Clarice Lispector”, de Alexandre Nodari, em que o autor mostra as diferenças entre o infamiliar clariciano e o freudiano. Para o ensaísta, Lispector atribuiria uma sobrenatureza às coisas, às pessoas, aos bichos e às plantas, decorrendo dessa visão monista do mundo a sua infamiliaridade, não sendo propriamente a volta do recalcado, mas a percepção da verdade do mundo tal como é: “No monismo clariciano […] o sobrenatural não está sobre o natural, não o transcende, mas constitui sua própria natureza, dando-se a ver com o encontro que infamiliariza o familiar, que indomestica o domesticado, que estranha o naturalizado” (Em Um século de Clarice Lispector. Ensaios críticos. Org. Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosenbaum. São Paulo: Fósforo, 2021, p. 40-41[↩]
- Em “Uma dificuldade no caminho da psicanálise” (1917). Edição Standard das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Editora, v. XVII, p. 178, 1976.[↩]
- LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991. As citações virão apenas com o número da página.[↩]
- A potência do olhar na literatura clariciana é um dos tópicos mais comentados de sua obra, desde Leitura de Clarice Lispector, de Benedito Nunes (1973), e A poética do olhar, de Regina Pontieri (1999), até o presente, mostrando que essa linha de força continua a produzir novas interpretações.[↩]
- LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina (1971). 8. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.[↩]
- LISPECTOR, Clarice. A paixão segundo G.H. 13. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.[↩]
- Ver a respeito WALDMAN, Berta. Clarice Lispector. A paixão segundo C.L. São Paulo: Escuta, 1992. p. 75.[↩]
- “O retorno da fragmentação corporal sob a forma da imagem exterior é revivido como angústia da castração” (Rocha e Iannini, op. cit., p. 195).[↩]
- Remetendo ao perspectivismo desenvolvido pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, Nodari afirma: “Trata-se, portanto, de uma concepção não só animista, como também perspectivista, em que tudo que existe (espécie viva, objeto etc.) não só é dotado de visão, agência, subjetividade, ponto de vista, como também, atrelado a isso, um mundo ou natureza próprios”. É assim que G.H. vê a barata e é também olhada por ela (Nodari, op. cit., p. 43).[↩]
- É pela imagem paranomástica “crosta/ostra”, no conto “Amor”, que o narrador sintetiza a ruptura que Ana vivencia: “Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra” (Op cit, p. 38).[↩]
- Felicidade clandestina, cit.[↩]
- A legião estrangeira. Parte II: Fundo de gaveta. Rio de Janeiro: Edição do autor, 1964.[↩]
- CHKLOVSKI, Victor. A arte como procedimento. Em Luiz Costa Lima. Teoria da Literatura em suas fontes. Porto Alegre: Globo, 1976. p. 39-76.[↩]