Em casa com Clarice

Gurgel Valente, Paulo. Em casa com Clarice. IMS Clarice Lispector, 2021. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2021/11/11/em-casa-com-clarice/. Acesso em: 12 dezembro 2024.

Acredito que Clarice e eu compartilhávamos uma sensação comum: os objetos não são inanimados, ao contrário, têm uma vida secreta.

Não sei se o leitor já fez a experiência de, à noite, desligar as luzes de sua sala e, aos poucos, observar que seus olhos se adaptam ao es- curo e finalmente você consegue perceber a presença viva das coisas.

Mais de um conto de fadas ou de ficção já mostrou que numa loja de brinquedos à noite eles tomavam vida, ou mesmo as estátuas e pinturas de um museu se transformam, e de dia voltam para suas funções realistas. Talvez o Pinóquio de Gepeto seja um dos primeiros.

Os quadros e objetos de Clarice eram seu setting, o cenário de sua vida que fazia de sua casa um lugar aconchegante e reconhecível, seu ninho de onde voava e para onde voltava.

Da “fase italiana”, referente ao período em que Clarice e Maury chegaram a Nápoles em 1944, ele como vice-cônsul no sul de uma Itália que começava a ser libertada, há os quadros nus de Savelli e Fazzini, e especialmente a Anunciação de Savelli, quadro várias vezes citado e descrito em crônicas de Clarice, de um colorido a toda prova e até hoje impressionante, como em “Anunciação”, publicada em 21 de dezembro de 1968:

Tenho em casa uma pintura do italiano Savelli — depois compreendi muito bem quando soube que ele fora convidado para fazer vitrais no Vaticano.

Por mais que olhe o quadro não me canso dele. Pelo contrário, ele me renova.

Nele, Maria está sentada perto de uma janela e vê-se pelo volume de seu ventre que está grávida. O arcanjo, de pé ao seu lado, olha-a. E ela, como se mal suportasse o que lhe fora anunciado como destino seu e destino para a humanidade futura através dela, Maria aperta a garganta com a mão, em surpresa e angústia.

O anjo, que veio pela janela, é quase humano: só suas longas asas é que lembram que ele pode se transladar sem ser pelos pés. As asas são muito humanas: carnudas, e seu rosto é o rosto de um homem. (CR, pp. 179-180)

E, num dos quadros de Savelli (1942), lê-se a dedicatória “a la Signora Valente, comme cordiale ricordo”.

Anunciação, 1944, óleo sobre papel, de Angelo Savelli.

Esses quadros aparentemente foram comprados para uma primeira coleção do casal, também com finalidade decorativa e de recordações.

Dessa “fase italiana”, o destaque é seu retrato por Giorgio de Chirico, cuja descrição deixamos para a própria Clarice em carta às suas irmãs, Elisa e Tania, datada de Roma, 9 de maio de 1945:

Minhas queridas:

[…] Hoje de tarde posei a última vez para De Chirico (pronuncia-se De Quírico). Ele é famoso no mundo inteiro. Tem quadros em quase todos os museus: certamente vocês já viram reproduções dos quadros dele. O meu é pequeno; está ótimo, uma beleza, com expressão e tudo. Ele cobra muito caro como é natural, mas cobrou menos. E enquanto ele estava pintando apareceu um comprador. Ele naturalmente não vendeu… Mas veio com uma história de fazer dois quadrinhos para eu escolher. De outra vez que eu estiver em Roma, se o excelentíssimo marido permitir posarei então para ele mesmo, quer dizer, para o quadro ficar dele (ele venderia então). O meu retrato é só da cabeça, pescoço e um pouquinho de ombros. Tudo diminuído. Posei com aque- le vestido de veludo azul da Mayflower, lembra-se Tania? Quando tirar a fotografia do quadro, mandarei. Mas não se poderá talvez ver bem por causa das cores que não saem.

[…] Eu estava posando para De Chirico quando o jornaleiro gritou: É finita la guerra! Eu também dei um grito, o pintor parou, comentou-se a falta estranha de alegria da gente e continuou-se.

Daqui a pouco eu perguntei se ele gostava de ter discípulos. Ele disse que sim e que pretendia ter quando a guerra acabasse… Eu disse: mas a guerra acabou! Em parte, a frase dele vinha do hábito de se repeti-la, e em parte do fato de não ter mesmo a impressão exata de um alívio. (CA, pp. 167-168)

Outra referência ao mesmo episódio aparecerá no depoimento sonoro que concedeu ao Museu de Imagem e do Som do Rio de Janeiro, em 1976:

Eu estava em Roma e um amigo meu disse que o De Chirico na certa gostaria de me pintar. Aí, perguntou e ele disse que só me vendo. Aí me viu e disse: “Eu vou pintar o seu retrato”. Em três sessões ele fez e disse assim: “Eu poderia continuar pintando interminavelmente esse retrato, mas tenho medo de estragar tudo”. (OE, p. 165) 

De Chirico não precisa de apresentações, já que é um dos maiores nomes do surrealismo na sua época; visitei sua casa-museu na piazza di Spagna, em Roma, onde Clarice posou para o retrato.

Clarice Lispector, circa 1945, óleo sobre cartão, de Giorgio de Chirico.

Não mais da “fase italiana”, mas ainda no grupo de retratos de Clarice, está o de Jeronymo Ribeiro — a princípio retratista desconhecido. Há um carvão sobre papel de 1942, época das primeiras publicações de Clarice: contos em revistas e o romance de estreia, Perto do coração selvagem. Considero o retrato muito fiel, até mesmo comparando com fotografias do período.

Retrato da senhorita Clarice Lispector, 1942, carvão sobre papel, de Jeronymo Ribeiro.

Um pouco posterior é o retrato feito pelo poeta e diplomata Ribeiro Couto num pequeno caderno de anotações da própria Clarice em 1944. O encontro ocorreu em Lisboa, onde Clarice parara a caminho de Nápoles. No dia 2 de agosto, ela registra a conversa com Couto a respeito do breve retrato a lápis sobre o papel pautado:

Disse que era difícil me desenhar. Tinha alguma coisa que não se pegava, e a doçura. Que eu tinha três coisas: infância, vida profunda e alguma coisa áspera. Disse: animalidade banhada de luar. Queixo saudável.1

Retrato de Clarice Lispector feito à lápis por Ribeiro Couto em uma das páginas do Caderno de Bordo.

Também notáveis são os retratos do casal Clarice e Maury por Alfredo Ceschiatti, realizados num encontro em Paris em janeiro de 1947. O retrato de Clarice, definido com pouquíssimas linhas, ficou célebre como uma das melhores interpretações. No retrato de Maury, o próprio artista anotou no final “(un dessin mal réussi)”, apesar de ser bem fiel. Ceschiatti ficou mais famoso como escultor, depois de criar vários monumentos em Brasília, e foi amigo do casal.

Retrato de Clarice Lispector, 1947, nanquim sobre papel, de Alfredo Ceschiatti.

Objeto de toda a vida é o galo em porcelana, o que sobrou de um par — registrado como florentino — que tem intensa relação com as histórias de Clarice com galinhas — como o conto “Uma galinha” e o conto/livro infantil A vida íntima de Laura. 

Nesse contexto está a fotografia de um cavalo, com uma história 366 curiosa: Clarice viu na página de turfe do Jornal do Brasil essa foto e imediatamente pediu à redação que a mandassem para ela, e da foto fez um pôster. A imagem transmite uma sensação de liberdade e, como no caso das galinhas, cavalos estão em toda a obra com admiração, tanto em A cidade sitiada como no “Seco estudo de cavalos”, de Onde estivestes de noite, crônica notável.

Fotografia de cavalo colada em eucatex.

Clarice teve grandes amigos artistas, Lúcio Cardoso, Maria Bonomi, Carlos Scliar, Fayga Ostrower e Bruno Giorgi, que muitas vezes a presenteavam no contexto da amizade.

O quadro de Lúcio Cardoso merece uma nota à parte. Lúcio foi possivelmente um dos primeiros amores de Clarice, que não foi em frente; havia uma grande afinidade intelectual entre os dois no início das carreiras de ambos, embora ele fosse mais velho e experiente. Ele ajudou a dar título ao primeiro livro de Clarice, Perto do coração selvagem, tirado de uma frase de James Joyce. Ela recebeu do amigo pelo menos dois quadros: um primeiro que era muito escuro e triste, praticamente todo negro, da fase de seu acidente vascular cerebral, que Clarice pas- sou adiante, e, finalmente, um outro muito luminoso que reflete o mo- mento em que Lúcio estava se recuperando na Associação Brasileira Beneficente de Reabilitação (ABBR). É muito alegre e ficou como recordação desse grande amigo e mentor. Em crônica datada de 11 de janeiro de 1969, Clarice fala do último encontro dos dois:

Algumas pessoas amigas dele estavam na antessala de seu quarto no hospital e a maioria não se sentiu com força de sofrer ainda mais ao vê-lo imóvel, em estado de coma.

Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um personagem de El Greco. Havia a Beleza em seus traços.

Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha adolescência. Naquela época ele me ensinava como se conhecem as pessoas atrás das máscaras, ensinava o melhor modo de olhar a lua. Foi Lúcio que me transformou em “mineira”: ganhei diploma e conheço os maneirismos que amo nos mineiros. (CR, p. 189)

Sem título, circa 1965, tinta hidrocor e pastel sobre papel, de Lúcio Cardoso.

Maria Bonomi foi amiga de toda a vida, além de comadre (Clarice foi madrinha de Cássio, filho de Maria e Antunes Filho), desde que estudante de artes em Washington, DC, quando pediu emprestado a Clarice, então esposa de Maury como secretário da Embaixada, e por sugestão da embaixatriz Alzira Vargas, um vestuário adequado, luvas, vestido longo, sapatos para ir a um jantar na Casa Branca. Daí em diante, por toda a vida trocaram opiniões sobre os respectivos processos criativos, o que, em minha opinião, se consolidou em Água viva, no qual a personagem é uma artista plástica. Em edição especial desse livro, Teresa Montero assina o ensaio “Água viva: antilivro, gravura ou show encantado”, no qual aborda esse diálogo artístico.2

Dream, 1958, xilogravura sobre papel, de Maria Bonomi.

Carlos Scliar foi também grande amigo, ele pracinha na FEB na campanha da Itália conheceu Clarice nessa época, mas já levava Perto do coração selvagem em sua mochila. Lembro também dos dois na passeata dos 100 mil em 1968, há boas fotos ilustrativas desse momento, e também recordo que Clarice passou um final de semana na casa estúdio de Scliar em Cabo Frio. Ambos eram descendentes de judeus russos, perseguidos praticamente na mesma época.

Retrato de Clarice, 1972, guache sobre papel, de Carlos Scliar.

Fayga Ostrower foi outra grande amiga, e havia identificação com sua obra, possivelmente também pelas origens eslavas semelhantes, e Clarice guardou seus quadros recebidos desde a época em que morou em Washington, com destaque para a gravura da mãe abraçando seu bebê com muita ternura (Maternidade, 1950).

Maternidade, 1950, linóleo sobre papel, de Fayga Ostrower.

Bruno Giorgi fazia parte dos artistas da “república do Leme” — quase no mesmo quarteirão moravam Aloisio Magalhães, Burle Marx e Bruno Giorgi, este numa pequena vila que saía da rua Gustavo Sampaio, e na época casado com Mira Engelhardt — o casal era bem amigo e fui algumas vezes à casa de Bruno Giorgi, sem ter a noção da sua importância. As esculturas que Clarice recebeu são versões de tamanho reduzido de monumentos importantes de Brasília.

Uma parte do trabalho de Clarice, muito bem descrito em Clarice jornalista, de Aparecida Nunes, foi entrevistar pessoas notáveis, para quem sempre levava de presente livros seus. Ocorre que alguns dos entrevistados, como Djanira da Motta e Silva e Grauben, retribuíram com quadros. É claro como Clarice nessas entrevistas, quase sempre pela admiração e percepção e interesse pelo “outro”, desenvolvia uma relação afetiva com essas pessoas. No caso de Djanira, o afeto estava definido antes do encontro, e voltava-se tanto para a pessoa quanto para a obra, como se lê nas linhas que iniciam a transcrição da 368 entrevista: “Como não amar Djanira, mesmo sem conhecê-la pessoalmente? Eu já amava o seu trabalho, e quanto — e quanto”.3

Sem título, circa 1967, tinta hidrocor sobre papel, de Djanira da Motta e Silva.

Quanto ao encontro com a pintora Grauben, está retratado em crônica na qual Clarice descreve a tela que trouxe para casa:

Escolhi um quadro que tem tudo da Grauben: um grande pássaro azul entre águia e pavão, uma enorme borboleta, uma flor toda aberta, plantas e todos os pontilhados que ela usa como fundo do quadro e que dão a impressão de uma moita de alegria. (CR, p. 142)

Sem título, 1968, óleo sobre tela, de Grauben.

É fácil ver que o “cenário” de Clarice — a partir do qual criava e, por que não, levitava — foi sendo criado pela sua afetividade, fosse pelos objetos em si ou pelas pessoas neles implicadas, ao longo da vida e da obra, em permanente entrelaçamento.*

Notas

1 A caderneta encontra-se no acervo site claricelispector.ims.com.br com o do Instituto Moreira Salles desde título Caderno de bordo. 2012, e está disponível para leitura no

2 LISPECTOR, Clarice. Água viva inéditos. Organização de Pedro Edição com manuscritos e ensaios Vasquez. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.

3 WILLIAMS, Claire (org.). Entrevistas — Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 198.

* Agradeço a colaboração de Teresa Montero, autora da biografia Clarice Lispector — Eu sou uma pergunta (Rio de Janeiro, Rocco, 2021).