, "Em nome de meu pai". IMS Clarice Lispector, 2025. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2025/02/13/em-nome-de-meu-pai/. Acesso em: 31 março 2025.
Clarice Lispector escreveu deliberadamente textos políticos. Para citar alguns, “Carta ao Ministro da Educação”, em que defende o acesso de estudantes às vagas na universidade pública; “A matança de seres humanos: os índios”, no qual repudia o assassinato de indígenas para a exploração de recursos naturais e advoga pela demarcação de seus territórios; “Mineirinho”, em que censura a ação da polícia ao assassinar um criminoso com treze tiros. Clarice também participou de algumas reuniões contra a ditadura e esteve presente em manifestações, incluindo a Passeata dos Cem Mil, registradas em fotografias onde aparece em meio à multidão em frente à Câmara dos Vereadores, na Cinelândia, Rio de Janeiro, ou ao lado de Carlos Scliar, Glauce Rocha, Oscar Niemeyer, Milton Nascimento, entre outras figuras públicas da cultura.
Apesar disso, foi acusada de alienada pela patrulha do Pasquim, tabloide formado por homens ilustrados da zona sul carioca, mais especificamente pelo cartunista Henfil. A querela teve repercussão negativa e o cartunista, com raciocínio caricaturesco, se defendeu: “Eu a coloquei no Cemitério dos Mortos-Vivos porque ela se coloca dentro de uma redoma de Pequeno Príncipe, para ficar num mundo de flores e de passarinhos, enquanto Cristo está sendo pregado na cruz. Num momento como o de hoje, só tenho uma palavra a dizer de uma pessoa que continua falando de flores: é alienada”. O enterro da escritora promovido pelo cartunista em sua coluna chamada “Cemitério dos Mortos-Vivos” aconteceu em 1972, portanto, poucos anos depois dos textos políticos publicados por Clarice durante o AI-5 e da Passeata dos Cem Mil. Teresa Montero mostra na biografia de Clarice, À procura da própria coisa, que a escritora era fichada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de espionagem do governo ditatorial.
Mas fato é que a ligação de Clarice com a política não se dá na superfície da vida pública, tampouco nos textos que abordam diretamente a questão. Isso se deve a uma compreensão da escritora sobre a fratura entre arte e política, abordada em dois textos irmãos, “Literatura e justiça” e “O que eu queria ter sido”, nos quais constata com lucidez desconcertante a inutilidade de sua literatura como instrumento político. No primeiro, ela diz:
[…] minha tolerância em relação a mim, como pessoa que escreve, é perdoar eu não saber como me aproximar de um modo “literário” (isto é, transformado na veemência da arte) da “coisa social”. Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir “arte”, senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo simplório de me aproximar do fato social: eu queria era “fazer” alguma coisa, como se escrever não fosse fazer.
Clarice diz que gostaria de se “aproximar de um modo ‘literário’ (isto é, transformado na veemência da arte) da ‘coisa social’”. Dissocia portanto duas dimensões, para ela inconciliáveis: a arte e o social. Diz desejar que sua literatura pudesse alcançar uma expressão – uma “veemência” – tal que a aproximasse da verdade com que sentiu a “coisa social”, anterior, inclusive, à verdade com que sentiu a arte. Declara o fracasso de sua literatura como instrumento político, que julga inócuo para a produção de mudanças efetivas na realidade social; mas vacila também quanto à força estético-formal de sua literatura no trato com o social, pois, segundo ela, a expressão de sua escrita está aquém à da “coisa social”. Em outras palavras, teria desejado provocar no leitor um arrebatamento semelhante ao que sentiu diante da injustiça flagrante de famílias miseráveis vivendo em barracos de madeira flutuando precariamente sobre gravetos no mangue de sua cidade, o Recife; mas declara-se incapaz de dar forma a esse sentimento. Uma vez apartadas a literatura e a “coisa social”, confessa sentir-se envergonhada por não fazer nada. Aqui, não fala mais de literatura e não aborda mais o desejo de uma escrita veemente, mas o desejo de ação política.
No segundo texto, intitulado “O que eu gostaria de ter sido”, Clarice aborda novamente o sentimento de injustiça que a assaltou quando visitou os mocambos de Recife e como, diante de tamanha injustiça, assumia consigo o compromisso de defender os direitos das pessoas – “o que eu via me fazia como que me prometer que não deixaria aquilo continuar. Eu queria agir.” Observa ainda nesse texto que quando menina é como se tivesse diante de si dois caminhos a seguir, duas vocações, e questiona-se: “Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha?”
Importante notar que em ambos os textos, a palavra luta aparece reiteradamente. Ela diz “beleza profunda da luta”, em que curiosamente o atributo da beleza, tão confrontado quanto afeito à obra de arte, é transposto para qualificar a luta e não a literatura – mais um indício da co-moção de Clarice tanto pela “coisa social” como pela arte. E ela termina o texto mostrando-se inconformada com a ineficácia da literatura no campo das transformações sociais: “o que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. […] Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco.”
Tornam-se manifestos os dois espantos da menina Clarice: a verdade da “coisa social” e a verdade da arte. Duas verdades como dois caminhos divergentes a seguir: um coletivo, outro individual; um exterior, outro interior; um concreto, outro abstrato; um regido pelo consciente, outro pelo inconsciente; um político, outro artístico; um da ação, outro da imaginação; um real, outro ficcional. Duas verdades que criam uma tensão sem trégua em sua obra, cujo ponto máximo será a história – decididamente “exterior e explícita” – de Macabéa, em A hora da estrela, publicada por Clarice pouco antes de morrer.
A luta, cujo germe é a revolta, será o guia do sentimento de justiça em Clarice. Antes de escolher a verdade da arte e se tornar escritora, entre os dois caminhos que a comoviam, seguiu o da luta e ingressou na Faculdade Nacional de Direito; ela diz em entrevista: “minha ideia era estudar advocacia para reformar as penitenciárias”. Durante a graduação, publicou, na revista da faculdade, um ensaio chamado “Observações sobre o direito de punir”. Nele, traça uma gênese do surgimento do direito, cuja conclusão será a de que a lei nasce da revolta e garante institucionalmente sua perpetuação:
De início, não existiam direitos, mas poderes. Desde que o homem pôde vingar a ofensa a ele dirigida e verificou que tal vingança o satisfazia e atemorizava a reincidência, só deixou de exercer sua força perante uma força maior. […] Os fracos uniram-se; e é então que começa propriamente o plano […] os fracos, os primeiros ladinos e sofistas, os primeiros inteligentes da história da humanidade, procuraram submeter aquelas relações até então naturais, biológicas e necessárias ao domínio do pensamento. Surgiu, como defesa, a ideia de que apesar de não terem força, tinham direitos. […] E no espírito do homem foi se formando a correspondente daquela revolta.
O direito, em forma de lei, é assim o “correspondente daquela revolta” original dos mais fracos contra os mais fortes. A revolta, como o próprio prefixo da palavra sugere, está no início e no fim do direito, não cessa de voltar, revoltar, é matéria-prima e obra em progresso – acender o fogo no fogo, para, uma vez conquistado, não deixar que se apague. Cabe observar na história contada por Clarice a ocorrência de uma mudança significativa entre o ponto um, quando a revolta é individual (ou transindividual), o fermento do direito, e o ponto dois, quando é fixada na forma impessoal da lei, garantidora do direito à luta, que passa então a ser política. Entre uma e outra, muda-se o status da revolta, de individual para coletiva.
No entanto, pondera Clarice, o capricho dos juízes pode se infiltrar na aplicação impessoal da lei, tornando-a disfuncional. É aqui que a cobra morde o rabo. Porque, se a lei é impessoal, a aplicação da lei, que está em poder de pessoas designadas para tal, não o é. Sendo assim, a revolta – poderíamos chamar também com Thoreau de “desobediência civil” – é a força motriz da justiça, isto é, renova, numa dinâmica que vai do individual ao coletivo e do coletivo ao individual, sucessivamente, a saúde de um sistema político. Tal dimensão individual da revolta – contra uma justiça personalista que oprime, pune, mantém privilégios de certos estratos sociais, em suma, elimina a possibilidade de luta – está entranhada, como veremos, na obra de Clarice.
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Vejamos a revolta individual (ou sua aniquilação) em duas personagens de Clarice insuspeitadamente parecidas. A primeira, Joana, do romance de estreia, Perto do coração selvagem, escrito quando a autora tinha 20 anos, e a segunda, Macabéa, de A hora da estrela, último livro publicado em vida. Entre o primeiro e o segundo livro, se passou toda a vida adulta da autora e, com ela, um certo desengano vai ganhando espaço.
Em Perto do coração selvagem, a personagem Joana, após a morte do pai, passa a viver com a tia. Certo dia, quando a acompanhava no mercado, ao sair da loja, coloca um livro debaixo do braço e sai sem pagar. A tia empalidece e na sequência travam o seguinte diálogo:
– Você sabe o que fez?
– Sei… Eu roubei o livro.
– Você acha que se pode roubar?
– Bem… talvez não.
– Por que então…?
– Eu posso.
– Você?! – gritou a tia.
– Sim, roubei porque quis. Só roubarei quando quiser. Não faz mal nenhum.
– Deus me ajude, quando faz mal, Joana?
– Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste.
A mulher olhou-a desamparada:
– Minha filha, você é quase uma mocinha, pouco falta para ser gente… Daqui a dias terá que abaixar o vestido… Eu lhe imploro: prometa que não faz mais isso, prometa, prometa em nome do pai.
Joana olhou-a com curiosidade:
– Mas se eu estou dizendo que posso tudo, que… – Eram inúteis as explicações. – Sim, prometo. Em nome de meu pai.
A revolta aqui é um experimento juvenil, mero exercício petulante de desobediência, mas gostaria de guardar dela a potência, uma vez que o poder de dizer não à lei equivale a dizer sim a si mesmo – uma autoafirmação. Nesse sentido, veremos mais à frente o quanto Joana é diferente de Macabéa, embora ambas compartilhem algumas semelhanças de personalidade.
Aproveito um detalhe do diálogo citado acima para fazer uma breve digressão e tratar da importância do pai de Clarice para sua noção de justiça ligada ao valor da pessoa humana.
Proveniente da doutrina cristã, a fórmula “em nome do pai”, que aparece no texto, por coincidência, serviu ao psicanalista Jacques Lacan para forjar sua metáfora da lei – “o nome do pai”, cujo som, em francês, le nom du père, soa também como “o não do pai”. Para o psicanalista francês, é esse não dos adultos que instaura na criança o supereu com o qual seu eu terá que negociar durante a vida social. No diálogo criado por Clarice, o supereu, encarnado na figura da tia, seguidora das convenções, diz que não se pode roubar, mas o eu indômito de Joana discorda e rouba porque pode e não tem medo. Uma vez constatado pela menina que a tia nunca entenderia seus argumentos, cinicamente acata sua súplica e promete não roubar mais, “em nome de meu pai”. O pai morto de Joana, ao contrário da tia, não representou para a personagem a figura impositiva da lei; quando era vivo, Joana, ao recitar-lhe versinhos, recebia como resposta sins: “lindas, pequena, lindas. Como é que se faz uma poesia tão bonita?”. Desse modo, quando promete não mais roubar em “nome de meu pai”, embora pareça ceder ao pedido da tia, negaceia e mantém-se leal à filiação paterna, no avesso da metáfora lacaniana, ou seja, singularizando a figura de seu pai.
O pai de Clarice foi um imigrante ucraniano, com pendor para as artes, a matemática e as coisas do espírito, mas, quando jovem, por ser judeu, foi rejeitado nas universidades onde pretendeu estudar. Após uma viagem de imigração que durou meses – Clarice nasceu em trânsito, numa vila chamada Chechelnyk –, tendo sofrido no caminho ataques violentos de grupos antissemitas, quando chegou ao Brasil, trabalhou em uma fábrica de sabão e como mascate. Conforme Clarice escreveu na crônica “Persona”, o maior elogio atribuído por seu pai a alguém era dizer que ele ou ela eram “uma pessoa”; “até hoje digo, como se fosse o máximo que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada por ter desde cedo me ensinado a distinguir entre os que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas.” Pedro Lispector morreu quando Clarice tinha 18 anos. Em carta ao amigo Fernando Sabino, confidenciou que certa vez o pai lhe havia dito: “se eu escrevesse, escreveria um livro sobre um homem que viu que se tinha perdido”; e ela arremata: “não posso pensar nisso sem que sinta uma dor física insuportável”.
Uma existência que não foi o que se desejou ser devido às contingências da vida, no caso, ser judeu, na Ucrânia, em tempos de perseguição a seu povo, para alguém como Clarice, que perscruta a “matéria vida” com tanta acuidade, que dedicou toda sua literatura a tentar se aproximar de seu mistério, essa é a maior injustiça: um ser humano impedido, pelas condições sociais e materiais, de ser o que se quer. Essa visão de Clarice coincide com a de outra judia, Hannah Arendt, que persegue o valor da singularidade do ser humano a partir da ideia de natalidade (ideia, aliás, alçada à importância filosófica pelo cristianismo). Assim diz Arendt em A condição humana:
[…] o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade.
O que condições sociais e materiais adversas podem reprimir é justamente a ação de uma pessoa, ação necessariamente política, isto é, o florescimento da revolta e da possibilidade de luta. No caso de uma sociedade injusta, o não da lei caprichosa é um não à ação política dos desassistidos. Macabéa, por exemplo, personagem de A hora da estrela, teve a vida assaltada pela máquina do sistema econômico e político. Vamos relembrar sua história, narrada por outro personagem, Rodrigo S.M. (na verdade Clarice Lispector); é assim, com seu nome próprio entre parênteses que a escritora apresenta seu personagem-autor-narrador, confundindo-se com ele.
Rodrigo S.M. é um intelectual de classe média ou classe média alta (embora diga que não pertence a classe nenhuma) e conta a história de uma nordestina (como ele) cujo “sentimento de perdição no rosto” pegou no ar de relance em uma rua do Rio de Janeiro. Faz questão de frisar que ela é uma criação ficcional sua, ainda que se pareça com tantas nordestinas reais “que andam por aí aos montes”. Desde aí já há uma intenção da escritora de embaralhar ficção e realidade, dizendo uma coisa e desmentindo-a logo a seguir. Macabéa é uma personagem perturbadora. Ela é sonhadora, poética, sensual; no entanto, essas qualidades, nela, não germinam. Como Clarice disse em entrevista, Macabéa tem “uma inocência pisada”. O narrador, a certa altura, diz que a personagem “tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha”. Maltratada pelo autor, ainda que este oscile entre o ódio e o amor por sua criação, Macabéa é massacrada pela cidade grande e humilhada pelas pessoas próximas. A nada reage.
Joana, de Perto do coração selvagem, também é sonhadora, poética e sensual. É como se a matéria de que as duas foram feitas fosse a mesma – expressa na pujante “vida interior” –, mas, em Joana, essa matéria original tenha sido “passível de aperfeiçoamento”, cujo fruto será uma mulher reflexiva, confiante e ativa; assim termina o livro de estreia de Clarice, com Joana pensando sobre si, após desilusões na vida: “nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”. O tema do aperfeiçoamento e do aprendizado perpassa muitos livros de Clarice; e, para ela, isso significa a autodescoberta do mal, da desobediência, da insubmissão, da afirmação dos desejos. Em outras palavras, a revolta contra a lei.
Já em Macabéa, é como se esse mesma matéria de que foram feitas tenha se atrofiado – como seus “ovários murchos como um cogumelo cozido” – e produzido o fruto disforme “do cruzamento de ‘o quê’ com ‘o quê’.” Macabéa, ao fim do livro, após uma curta vida de autômata, é atropelada: “e enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a – e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho”. Não é por acaso que o cavalo aparece no fim tanto do primeiro como do último livro. Joana toma emprestada as qualidades de vigor e beleza do cavalo novo, enquanto – o mesmo cavalo? – ri de escárnio da morte de Macabéa; lhe é negado como figura redentora, de renascimento. E por que Macabéa e Joana, embora feitas da mesma matéria, se tornam uma o avesso da outra?
A primeira frase de A hora da estrela é: “o mundo começou com um sim”. Esse foi o primeiro “sim” de Macabéa, seu nascimento. Afinal, foi concebida. Com esse sim da natalidade, a personagem traz o germe da “capacidade de iniciar algo novo, de agir”, usando as palavras de Hannah Arendt. Mas – e aí está a consternação do livro – Macabéa, entre o primeiro sim, o do nascimento, e o segundo, o de sua morte, foi cravejada – como o foi o criminoso Mineirinho por treze balas – por nãos: não tinha pai, não tinha mãe, não era bonita, não era inteligente, não era atraente, não era amada. Ao contrário, só recebia destratos da tia, da amiga do trabalho Glória, do namorado Olímpico e da cidade grande e impessoal. Macabéa foi assinalada pela insígnia do não.
O que a escrita de Clarice faz em A hora da estrela é instalar uma inexorabilidade quanto ao destino de Macabéa, fundada na desigualdade imobilizante da sociedade brasileira, de matriz escravocrata e atravessada por um sistema econômico desigual e massacrante para os mais pobres. Macabéa não tem “o direito ao grito” – esse é um dos títulos possíveis para o livro, dentre os treze que lista Clarice. Uma vida nascida do sim, contudo espoliada por nãos. Qualquer desejo de Macabéa, desde sempre, foi repreendido e dele se fez escárnio. Mesmo os que se permitia alimentar não eram dela, mas ouvidos nas propagandas do rádio, do cinema, das vitrines das lojas. Ou seja, o que poderia ter de mais vital, seus desejos, mesmo deles foi alienada pelo mercado; “como uma cadela vadia era teleguiada”, joguete de uma lógica que a desindividualizava, tornando-a mais uma na massa servil – “nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável”.
Clarice, em seu texto impiedoso e sarcástico, emula a opressão do sistema e seus nãos, retirando inclusive frases do senso comum das madames, como por exemplo: “ela quis mais porque é mesmo uma verdade que quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é?”. Sua escrita, em A hora da estrela, procura exacerbar um discurso que já existe difuso em certos estratos da sociedade, deflagrando, a partir de sua superexposição, e sem juízo de valor, o sadismo, a opressão e o racismo das classes médias e altas.
Exceção feita ao entrelugar ocupado por Rodrigo S.M., que, apesar de se identificar e se compadecer da vida daquela miserável, não abre mão de seu conforto e tampouco nada poderá fazer para salvá-la. Ele passa grande parte do livro sem saber como será o fim de Macabéa, se ela morrerá ou não, preocupado em fazê-la viver, mas sem ter as rédeas de seu destino. No texto, a realidade fala mais alto que a ficção. O criador ter de matar sua criatura é o atestado da impotência de uma classe média apática, mas também a confissão do crime de classe, uma vez que não fazer nada (ou “apenas escrever não é fazer”) corresponde a se tornar cúmplice da necropolítica; não matou, mas deixou matar. Um dos títulos alternativos de A hora da estrela é precisamente A culpa é minha.
Enquanto a luta política é, para as pessoas injustiçadas, uma exigência, porque dela dependem a vida e a morte, para a classe média intelectual, representada por Rodrigo S.M., é uma escolha (entre a luta ou o pagamento do serviço privado de segurança, de educação, de saúde etc.) da qual Clarice diz se envergonhar de nada fazer. A vergonha por não fazer nada em “Literatura e justiça”, se torna culpa em A hora da estrela. Culpa, mas também identificação com Macabéa; ele é capaz de na mesma página dizer consternado que acaba de “morrer com a moça” e, supreendentemente, perceber que não estava tão morto assim, pois se despede do leitor com as seguintes palavras:
E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.
A novela se inicia com um sim e acaba com um sim. O sim final reúne em único termo dois sentidos opostos: a morte apoteótica de Macabéa, atropelada por um carro de luxo, e a vida do narrador intelectual, expressa no gozo hedonista do carpe diem: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos”.
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Em 2023, a escritora Conceição Evaristo publicou o livro Macabéa: Flor de Mulungu, composto por um conto e ilustrações (de Luciana Nabuco), no qual a narradora, identificando-se com a personagem, salva sua vida: “Macabéa ia se parir. Flor de Mulungu tinha a potência da vida. Força motriz de um povo que resilientemente vai emoldurando o seu grito”. A palavra grito aqui faz ressoar um dos títulos alternativos, como já vimos, da novela de Clarice, neste caso, negado à Macabéa, e agora reivindicado por Evaristo. A escolha da autora mineira nos devolve a questão colocada no início deste texto: a relação entre literatura e política.
Salvar ou não a vida de uma personagem na ficção, está claro, não é o mesmo que salvá-la na vida real. Mas a intenção de Evaristo parece sugerir algo mais: que a rasura da história original, contada por Rodrigo S.M., autor que, embora movido por um desejo ávido e um tanto frustrado de identificação com a personagem, vive no conforto burguês de sua casa, pudesse, pela apropriação da voz narrativa, promover efeitos de realidade. Quanto a isso, é exemplar o título de um de seus mais comentados contos, “A gente combinamos de não morrer”, publicado no livro Olhos d’água. Também Macabéa, Flor de Mulungu é parte de um projeto de escrita que de certa forma desdiz as formulações de Clarice em “Literatura e justiça”, ou seja, é marcado pela porosidade entre ficção e realidade, individualidade e coletividade, pólos que coexistem no conceito de escrevivência. Cito Evaristo:
Escrevivência pode ser como se o sujeito da escrita estivesse escrevendo a si próprio, sendo ele a realidade ficcional, a própria inventiva de sua escrita, e muitas vezes o é. Mas, ao escrever a si próprio, seu gesto se amplia e, sem sair de si, colhe vidas, histórias do entorno. E por isso é uma escrita que não se esgota em si, mas, aprofunda, amplia, abarca a história de uma coletividade.
A escrita de Clarice Lispector na voz de Rodrigo S.M. parte de um lugar diverso. Há também porosidade entre ficção e realidade, mas as duas dimensões se embaralham no texto e, supostamente, dali não saem. Mas é o trânsito entre o individual e o coletivo, ou entre a obra e seu impacto no leitor, que marca, para Clarice, o impedimento da literatura como instrumento político, pois a escritora escreve a partir de um lugar isolado, sem lastro de pertença a uma coletividade, esta substituída pela ideia do consumidor-cidadão, peça da engrenagem do sistema econômico capitalista e da democracia minimalista. Uma vez que a luta só pode ser coletiva, a sensação de impotência do narrador é inevitável.
Evaristo, ao contrário, escreve a partir da experiência de alguém que teve a sociedade e o aparato estatal e policial contra ela: é negra, viveu em favela, foi empregada doméstica. Assim como a maior parte da população afrodiaspórica brasileira, socializou-se em modos de vida herdados da ascendência africana, em enclaves de resistência contracoloniais fundados em laços de pertencimento afetivo e político, levados a cabo, por exemplo, nos quilombos, terreiros e favelas (chamadas não por acaso de comunidades). Assim, salvar Macabéa na ficção guarda relação com a afirmação de sua própria existência e de tantas mulheres negras escritoras, que hoje, como resultado de uma luta empreendida ao longo de muitas décadas, gozam de uma abertura mais sistemática no mercado editorial para contar sobre si próprias histórias antes expropriadas por escritores das classes dominantes.
A apropriação da narração sobre si teve um marco paradigmático na literatura brasileira, com a publicação, em 1960, do livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, traduzido para 14 idiomas. Há uma foto em que Carolina e Clarice aparecem lado a lado. Na ocasião, autografavam seus respectivos livros em um evento literário. Carolina teria dito a Clarice que ela escrevia de forma elegante, e Clarice, que Carolina escrevia com verdade. De algum modo, a verdade para Clarice pode ser traduzida por seu próprio desejo de escrever com a veemência da “coisa social”. Tal veemência pode ser entendida como escrita pregnante de realidade; feita de palavras, a um só tempo, extraídas da matéria do chão, das coisas, dos corpos, com toda sua aspereza, como se nelas trouxessem estilhaços de vida capazes de ferir o leitor, e encantadas, capazes de fazer ressoar a propriedade física de seus sons na caixa toráxica, (re)criando o concreto do mundo, isto é, dando forma estética à revolta, à “beleza da luta”. É como Clarice quando diz que o natural é sobrenatural, que é “inteiramente mágico o fato de uma escura e seca semente conter em si uma planta verde brilhante.” Ou como canta Chico César na canção “Béradêro”, palavras que “são sons, são sons de sim, são sons, são sons de sim, são sons…” Palavras são sementes que podem germinar.
Mas se Carolina em sua época foi uma desbravadora solitária, representante do valor de exceção da mulher negra e pobre que conseguiu escrever a contrapelo da cidade, hoje, o fato de Evaristo e outras mulheres negras, assim como escritores e escritoras de representatividades silenciadas historicamente, poderem escrever, isso se deve menos à própria literatura do que à luta dos movimentos sociais negros por políticas públicas de Estado que criassem condições para singularidades artísticas florescerem no seio da coletividade. Políticas públicas postas em prática em anos mais ou menos recentes, de todo modo, mais de trinta anos após a publicação de A hora da estrela. O que nos mostra que tais mudanças, ainda que sofram demasiada resistência das classes dominantes, acontecem como indispensáveis suturas na malha social brasileira. Para listar algumas: bolsa família, cotas raciais nas universidades públicas, Prouni, criação de institutos federais, aumento substancial do número de universidades federais e a lei 10.639/03, que regulamenta o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio. Essas políticas tiveram e têm impacto efetivo na vida das pessoas; são elas que efetivamente salvam Macabéas, dentro e fora da ficção, como parece ter sido o desejo, fora de alcance, do intelectual Rodrigo S.M..
Desse modo, o fato de Evaristo poder salvar a vida de sua Macabéa é a evidência, agora sim, de um escrever que é como fazer, pois o ato da escrita ou de se fazer ouvir literariamente foi conquistado no bojo da revolta coletiva e individual, da potência transformadora da natalidade, propulsora de sins, e dela é inseparável. Mas podemos também pensar na própria vida de Clarice, aos 18 anos, imigrante, pobre e orfã, vendo-se na imagem de seu pai, “um homem que viu que se tinha perdido”, impedido de ser o que desejou ser pelo estigma de ser judeu. Afinal, ela poderia ter se tornado Macabéa. Ainda podemos ouvir ressoar as palavras de Rodrigo S.M. (na verdade Clarice Lispector): “quando penso que eu podia ter nascido ela [Macabéa] — e por que não? — estremeço. E parece-me covarde fuga de eu não ser, sinto culpa como disse num dos títulos”. A pergunta não é retórica: como não associar a “laranjada aguada e pão amanhecido”, que Tânia, irmã de Clarice, disse ter sido a refeição da família nos dias de maior pobreza, com “o cachorro quente e refrigerante”, base da alimentação de Macabéa?
Clarice escreveu sua história na idade madura (tinha 56 anos), período em que ainda se ressentia da acusação de ser uma escritora alienada. Já distante da pobreza da infância, vivendo em seu apartamento de classe média alta no Leme e tendo apenas a escrita como instrumento de ação no mundo, sentia-se impotente politicamente. A tentativa malograda do autor de salvar Macabéa parece ser resultado da descrença niilista da escritora na possibilidade de atingir a alteridade radical que almejava no contexto de uma sociedade rachada por extrema injustiça. Sozinha com sua escrita, e a partir da compreensão de que a luta política se faz coletivamente, não viu saída ética outra para sua literatura senão matar sua personagem — “a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela”.
Se Clarice, como vimos no texto “O que eu queria ter sido”, tendo desejado ser uma lutadora, julga que “é pouco, é muito pouco” ser alguém “que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima”, na mesma chave, como bem discorda José Miguel Wisnik, no podcast Clarice Lispector: visões do esplendor, é preciso entender que
essa escritora tão interiorizante, tão voltada para questões que a gente diria da subjetividade, na verdade, faz o que a literatura faz quando é potente, que é na mesma dimensão do subjetivo ter uma sondagem ontológica do mundo onde o social aparece com toda a força.
Clarice, de algum modo, fez usufruto em sua escrita do direito ao grito, cuja expressividade tem origem na veemência da realidade, aquela mesma de que se queixou não ter alcançado, mas que A hora da estrela, tal o desconcerto, a crueldade e a carga de indignação que suscita, dá testemunho contrário. A arte pode não ser ação, mas é objeto com potencial político quando através de um aprendizado ético do leitor logra ações consequentes e prenhes de efeitos de realidade. No mais, para Clarice, a verdadeira criadora de Macabéa, “qualquer gato, qualquer cachorro vale mais do que a literatura”.