Rosas, sempre, para Clarice

Colasanti, Marina. Rosas, sempre, para Clarice. IMS Clarice Lispector, 2025. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2025/05/29/rosas-sempre-para-clarice/. Acesso em: 15 junho 2025.

O dia em que conheci Clarice não foi o mesmo em que ela me conheceu. Eu, toda adoração, observando-a, ela, sem motivo algum para pousar o olhar em mim. 1

Saindo juntos da redação do Jornal do Brasil, o jornalista Yllen Kerr, grande amigo meu, disse que estava indo visitar Clarice e perguntou se eu queria ir. Queria muito, muitíssimo! Desde o primeiro número da revista Senhor, lia vorazmente seus contos, havia lido Laços de família em puro encantamento, e naquele mesmo ano tinha ido a uma noite de autógrafos dela. Sim, eu queria. E lá fomos, rumo ao Leme.

Ela não veio nos receber à porta. Ou estava acabando de se aprontar ou conservava hábitos de Itamaraty. A sala em penumbra, aceso somente um abajur ao lado do sofá. Foi nessa penumbra que ela fez sua entrada.

Achei-a deslumbrante, pareceu-me até mais alta do que realmente era. O rosto exótico e maquilado – nos anos a seguir nunca a veria sem maquilagem –, as maçãs altas conduzindo o olhar para o corte eslavo dos olhos. Estava vestida de escuro, em tom quente, usava um vestido ou uma malha de mangas compridas. Lembro-me das mangas compridas porque faziam sobressair as mãos elásticas, tão claras na semiescuridão, e as pulseiras gêmeas, escravas, de cobre martelado que usava nos dois pulsos.

Eu em silêncio respeitoso, a conversa entre Clarice e Yllen começou. Não parecia confortável, meio que emperrava, havia ocos, como se os dois dançassem coreografia não ensaiada. Clarice interrompia as frases deixando-as terminar em reticências, e seu interlocutor ficava em suspenso, sem saber se devia dar-lhe tempo para continuar ou se cabia-lhe engrenar a próxima fala.

Não demoramos muito. O tempo de uma visita convencional, não o tempo de dois amigos que se entregam despreocupados à conversa. Tomamos alguma coisa ou não tomamos nada, e saímos. Mas o encontro marcou-se em mim fundamente. Guardei a imagem dela naquela tarde como quem guarda um retrato, sem saber que essa imagem estava próxima, tão próxima a mudar.

Em setembro de 1966, aconteceu o incêndio no apartamento, ateado por Clarice ao adormecer fumando na cama. Incêndio que, sem querer pôr em risco os filhos, tentou apagar com as mãos e que teria efeitos desastrosos em sua saúde.

Assim que soube, mandei duas dúzias de rosas para o hospital, consciente de que, mesmo se as recebesse, não saberia quem as mandava. Sofri por ela enquanto nos chegava a ameaça de que lhe amputassem a mão direita. Revia as mãos pálidas sobre a roupa escura, emolduradas pelas pulseiras de cobre, não me parecia possível que isso acontecesse. Felizmente, não aconteceu.

Passado um ano, quando já havia feito várias operações na mão e na perna, de onde era retirado tecido para os enxertos, Clarice foi convidada por Alberto Dines, então editor-chefe do Jornal do Brasil, para escrever crônicas semanais para o Caderno B. Dines já havia convidado Clarice anteriormente, quando diretor do Diário da Noite, para escrever a coluna que Ilka Soares assinaria. 2 Dessa vez, entretanto, assinaria com o próprio nome e administraria o espaço como melhor lhe aprouvesse, da mesma forma que havia feito em Children’s Corner, na revista Senhor. Uma mudança que, ao longo de sete anos, daria grande impulso ao reconhecimento da sua escrita e do seu nome.

Quando ela finalmente veio à redação do JB, onde eu era subeditora, surpreendeu-me ver que havia aproveitado tantas intervenções para fazer um lifting, forma de manter intacta sua beleza e combater a deformação da mão. Seja pelo respeito que inspirava, seja por seu ar inegavelmente estrangeiro, embora ela se quisesse tão brasileira, seja por sua feminilidade, ficou subentendido que, a partir daquele dia, eu a atenderia, eu faria as comunicações necessárias, eu cuidaria dos seus textos. Começou aí a tessitura da nossa relação.

Infinitas vezes Clarice me recomendaria para não perder seus textos. Dizia não ter cópia porque “o carbono frrrranze”, e puxava o erre devido à língua presa – fenômeno desmentido pelo foniatra e escritor Pedro Bloch, que o atribuía à imitação infantil da fala dos pais. Muito certa, Clarice, na sua dificuldade com o carbono. A mão direita queimada não lhe permitia encaixá-lo a contento entre as duas folhas, única forma de obter cópias na era pré-computador. Mas a frase acabou virando seu apelido. Quando ela ligava para a redação, quem atendesse chamava: “Marina, pra você, é o carbono frrranze!”, e eu ia, encantada por cuidar dela.

Eram telefonemas meramente profissionais, ou não. Várias vezes me pediu para instruir os revisores a não mudar sua pontuação: “Minha pontuação é minha respiração”, dizia. E uma vez ligou para perguntar se eu sabia onde se compravam mocassins bonitos.

Cedo, passou a mandar as crônicas por uma funcionária, encarregada de fazer, a cada vez, a mesma recomendação, que eu não perdesse os textos, porque Clarice não tinha cópia. Para que se convencesse da total segurança, tive de conduzi-la atrás da mesa do editor e mostrar-lhe a caixa onde eram recebidos os textos já revisados – embora houvesse tão pouco a revisar –, prontos para descerem à oficina.

Eram, de fato, preciosos. Também nisso Clarice tinha razão. Lendo seus próximos livros, quantas vezes reconheci textos que conhecia tão bem, de que me sentia íntima. Tudo o que escrevia, fosse no papel pautado do jornal, fosse anotado em guardanapo ou em entrada de cinema, era água da mesma fonte e em algum momento encontraria seu lugar.

Nunca nos encontramos fora da redação.

Até que um novo fator veio estreitar nossos laços e imprimiu outro cunho à relação.

Em 1971, Affonso e eu nos casamos. Affonso conhecia Clarice desde 1963, quando, em função de um ensaio sobre A maçã no escuro escrito quando ainda estudante, fora convidado a apresentá-la em sua noite de autógrafos em Belo Horizonte.

Passamos a frequentar a casa dela, a mesma sala aonde eu havia ido para nosso primeiro encontro, agora bem iluminada. Nossas conversas fluíam fáceis, em plena intimidade, ao contrário daquela que eu guardava na memória. Falávamos de tudo e de nada, do que ela estava fazendo, dos amigos, da vida da cidade, até de comida. Conversas despreocupadas, nada intelectuais, que nos levavam a rir com frequência. Lembro que havia sempre um ou outro livro esquecido em cima de poltrona ou mesa, embora nas entrevistas ela se esquivasse de dar opiniões literárias dizendo que não estava lendo nada.

Outra presença havia-se agregado, Ulisses, o cão. Em várias ocasiões Clarice declarou que seu nome não era referente nem a Homero nem a Joyce, e no depoimento do MIS [Museu da Imagem e do Som] disse que o havia nomeado a partir de um estudante de Filosofia apaixonado por ela quando ainda casada, na Suíça. Embora tenha virado estátua, 3 Ulisses não era nem simpático nem bonito. Tinha atitudes antissociais, não admitia carícias de visitantes, rosnava. Mas há que reconhecer sua fidelidade à dona.

Em 1973, logo após Alberto Dines ser demitido do Jornal do Brasil, Clarice também o foi. Nascimento Brito nunca havia gostado de suas crônicas. Talvez por isso, não houve encontro marcado, nenhum telefonema, nenhum ademane. Foi dispensada por um bilhete, forma extremamente grosseira, sobretudo considerando seu prestígio como escritora.

Fiel a Alberto Dines, eu também fui demitida.

E, no mesmo ano, ao publicar A vida íntima de Laura, Clarice o dedicou, entre outras crianças, a nossa filha Fabiana.

Deve ter sido por essa época que aconteceu o episódio do jantar. Affonso e eu gostávamos de receber os amigos e o fazíamos com frequência. Um dia, para minha grande surpresa, Nélida me traz um recado, Clarice estava magoada porque nunca a havíamos convidado. Respondi que o convite só não havia sido feito porque imaginávamos que Clarice, refratária a esse tipo de acontecimento, não o desejasse. Imediatamente prontifiquei-me para oferecer-lhe um jantar.

– Ela janta muito cedo… acrescentou Nélida, como se fosse um impedimento.

– Problema nenhum, faço o jantar à hora que ela quiser.

A hora, ficou estabelecido para os amigos comuns que convidei, seria 18h30. Realmente, cedo demais para cariocas. Ninguém se atrase, por favor, recomendei. Ninguém se atrasou. Clarice foi a última a chegar. E que bonita estava! Devia ser inverno, porque por cima da roupa vestia uma espécie de capote preto e branco, zebrado, que lembro ter elogiado. E que sorridente! Exalava felicidade, por sentir-se bonita, por ter-se permitido estar ali.

Eu, ocupada, porque nesses jantares era a cozinheira-mor, subindo e descendo escada, não flagrei o momento em que o sorriso se apagou. Subi entre os aperitivos disposta a também tomar um gole de vinho, e ela veio ao meu encontro já sem a luz com que havia chegado, para dizer que estava com muita dor de cabeça, queria ir embora.

O jantar seria logo servido, mas percebi num estalo que algum encanto havia se partido e ela não esperaria. Discretamente chamei Affonso e pedi que levasse Clarice para casa, estava com dor de cabeça. Sem entender, ele ofereceu aspirina, disse que a dor logo passaria. Fiz um sinal significativo, e os dois saíram. Clarice não se despediu de ninguém. Os amigos, todos íntimos, ficaram esperando a volta de Affonso e o jantar.

Ela havia vindo em busca de leveza, tomar um drinque e rir como os outros, ser despreocupada por algumas horas. Mas, em algum momento, produzira-se um desencaixe, ela não era como os outros, e, pelo menos naquela noite, a leveza lhe era vetada. Melhor, então, voltar para casa, onde não precisava ser como ninguém, onde podia ser ela mesma.

Um pouco antes ou um pouco depois disso, contamos a Clarice que havíamos ido a uma cartomante e estávamos encantados com suas previsões – que mais adiante se concretizariam. Foi como ligá-la na tomada! De imediato pôs-se toda elétrica, queria porque queria que a levássemos. Quanto mais cedo, melhor.

O segredo mais denso, aquilo que não se pode provar e de que os mais sensatos desconfiam, era seu pleno território.

A cartomante, de nome Nadir, morava no Méier. Dias depois, consulta marcada, lá fomos os três no Fusca de Affonso, costeando a via férrea e vendo o trem passar. Conversamos muito na ida, uma certa excitação pelo mergulho no inesperado ia conosco.

A casa tinha um avarandado com vasos de antúrios, o piso, daqueles azulejos estampados de antigamente. Houve um hiato de apresentações, mínima conversa, o cafezinho já estava pronto na garrafa térmica. E as duas entraram. Demoraram o tempo necessário para vasculhar o futuro ditado pelas cartas. Afinal a porta se abriu. Clarice trazia semblante pensativo.

E assim se manteve na viagem de volta. O clima no Fusca havia-se tornado diferente, agora o mistério tomava carona conosco. Clarice não nos contou nem vírgula do que Nadir havia previsto. Mas é certo que gostou, porque continuou a interrogar suas cartas até o fim da vida, e fez de Nadir sua personagem em A hora da estrela.

Em 1973, Affonso tornou-se diretor do Departamento de Letras da PUC. E em 1975 convidou Clarice para o II Encontro Nacional de Professores de Literatura na PUC-Rio. Há fotos do auditório nesse encontro, Clarice ao centro, Nélida [Piñon] e eu de cada lado, as três compenetradas. O que não está na foto é a reação dela, relatada mais tarde por Nélida, e por ela mesma num telefonema de Affonso.

As discussões da mesa eram eminentemente teóricas, um duelo de conhecimentos e citações estava em curso entre dois doutos em literatura. No intervalo que se seguiu ao cruzar de espadas, Clarice se levanta e se vai. Segundo o que Nélida me contou, e que Clarice repetiu quase com as mesmas palavras a Affonso, as apresentações da mesa resultavam incompreensíveis para ela e haviam-lhe dado uma fome tremenda. Iria para casa comer galinha assada. Foi o que fez. 4

Dois anos se passaram, e em abril estávamos juntos novamente, dessa vez em Brasília. Ela havia ido receber o prêmio da Fundação Cultural do Distrito Federal pelo conjunto da obra, e Affonso receberia outro prêmio. 5 Lembro que me pareceu muito diferente da mulher ainda sólida que havia matado a incompreensão teórica comendo galinha. Sentada a meu lado na área ajardinada do hotel estava uma senhora frágil, necessitando de amparo e solicitando à acompanhante o xale branco para proteger-se do frio inexistente. Impressionou-me sua delicadeza física, como se qualquer sopro a pudesse derrubar ou ferir.

Na hora de receber o prêmio, disse a célebre frase: “Eu não mereço este prêmio. Este é um prêmio para profissionais e eu não sou uma profissional. Profissional escreve todos os dias, porque precisa. Eu escrevo quando quero, porque me dá prazer”. Modesta e altiva a um só tempo, a frase não correspondia à verdade. Clarice precisava mais da escrita do que muitos profissionais, precisava dela para se encontrar, precisava dela como do ar que respirava, precisava dela para viver. E, quando achava que a tinha perdido, ligava em desespero para os amigos.

Em outubro de 1976, convidada por João Salgueiro, então diretor do MIS, a dar um depoimento, concordou. Mas pediu que Affonso e eu fôssemos, junto com João, seus entrevistadores. Tinha pavor a situações pomposas, a perguntas pretensamente inteligentes, e sabia que conosco estaria livre de ambas.

Por alguma razão que agora não lembro, não fomos buscá-la em casa, marcamos encontro na Praça XV, diante do MIS. Vi-a chegar alegre, recuperada. E elegante, vestia um casaco de camurça ou que parecia camurça. Trocamos dois minutos de conversa sem que ela nos fizesse qualquer recomendação sobre o que perguntar ou não perguntar, e fomos caminhando até o Museu.

O depoimento durou cerca de duas horas. 6 Começamos com a biografia, ela lembrando de Recife e falando da pobreza familiar, da doença da mãe, da infância. Depois fomos pulando, um tema puxando o outro. Clarice, muito à vontade, falou de seus romances, do seu processo de escrita, de solidão, se disse “uma tímida arrojada”, falou de sua intimidade com galinhas, concordou quando a comparei a felinos, contou outra vez a história que havia vivido das pombas brancas, pediu cigarro e Coca-Cola, perdeu o fio do pensamento mais de uma vez, não por esquecimento, mas por estar solta, confiante.

Quando saímos do MIS, levávamos os três alma lavada, havia sido uma tarde memorável.

Um ano depois, fomos ao nosso último encontro. Como havia sido no primeiro, só eu a olhei. Dessa vez, porque ela estava de olhos fechados, sedada, morrendo lentamente no Hospital da Lagoa. Pareceu-me uma passarinha, debaixo do lençol, embora o inchaço. Ficamos só alguns minutos, o tempo de algumas perguntas aos enfermeiros. E de fazer uma despedida da qual ela já não podia participar.

Rio de Janeiro, agosto de 2020.

  1. Depoimento enviado a Nádia Battella Gotlib em 11 de agosto de 2020 e publicado no livro Clarice na memória dos outros, em 2024. Agradecemos à editora Autêntica a autorização para reproduzi-lo no site de Clarice Lispector.[]
  2. A coluna “Só para mulheres” assinada por Ilka Soares e escrita, na verdade, por Clarice Lispector, no jornal Diário da Noite, durou exatamente 11 meses, pois foi publicada de 19 de abril de 1960 a 29 de março de 1961, num total de 287 colaborações semanais.[]
  3. Refere-se à escultura em bronze com réplica de Clarice Lispector e seu cão Ulisses instalada na ponta da praia do Leme, no Rio de Janeiro, criada por Edgar Duvivier e inaugurada em 15 de maio de 2016.[]
  4. Clarice Lispector compareceu ao II Encontro Nacional de Professores de Literatura, que aconteceu de 30 de julho a 3 de agosto de 1975, no auditório do Rio Data Centro, RDC, evento coordenado por Affonso Romano de Sant’Anna, então diretor do Departamento de Letras e Artes, hoje Departamento de Letras da PUC-RJ. Clarice Lispector, sentada entre Nélida Piñon e Marina Colasanti, saiu abruptamente do auditório por não suportar mais ouvir os palestrantes Luiz Costa Lima e José Guilherme Merquior discutirem questões de teoria literária[]
  5. Clarice Lispector recebeu o Prêmio Vladimir Murtinho em 23 de abril de 1976, por ocasião do Décimo Encontro de Escritores, realizado na Escola Parque de Brasília, localizada nas quadras 307/308 Sul.[]
  6. A entrevista concedida por Clarice Lispector ao MIS em 20 de outubro de 1976 teve uma primeira publicação em 1991: FUNDAÇÃO MUSEU DA IMAGEM E DO SOM. Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Fundação Museu da Imagem e do Som, MIS-RJ, 1991. Coleção Depoimentos 7, entrevista concedida a Affonso Romano de Sant’Anna, Marina Colasanti e João Salgueiro; foi publicada também em: LISPECTOR, Clarice. Outros escritos. Organização de Teresa Montero e Lícia Manzo. Rio de Janeiro: Rocco, 2005. p. 135-171; e em: SANT’ANNA; COLASANTI. Com Clarice, p. 201-250. Em Com Clarice, os autores relatam, com detalhes, não só alguns dos episódios escritos especialmente para serem aqui publicados, mas também outros, relacionados com as lembranças dos tempos de convivência com Clarice Lispector, além de uma crônica de Marina Colasanti e três artigos de Affonso Romano de Sant’Anna sobre a escritora.[]

Notas