De: Clarice Lispector
Para: Tania Kaufmann

Berna, 21 abril 1946


Minha florzinha,

Fiquei tão contente por você ter recebido notícias de William! Uma separação assim serve tantas vezes para mostrar tantas coisas. Estou muito contente, meu amorzinho. Não sei em que data você botou a carta no correio porque o carimbo estava apagado. Mas pela data que você anotou me parece que demorou muito. Fiquei sabendo por pessoas que às vezes a carta demora 8 dias (uma vez até 6) e às vezes inexplicavelmente mais de um mês. É preciso indagar os dias de avião e talvez colocar a carta na NAB, não sei. Querida, pergunto-lhe antes de tudo o seguinte: 1 – Como vai a sua garganta? Como vai o seu estado geral? 2 – Como vai o resfriado na Marcia? Como vai ela nos estudos? Está impaciente?… Eu queria receber cartinhas dela, já…

Querida, estou bem de saúde. Aqui o clima é bom, dizem que cansa um pouco porque é alto. O tempo é seco, tem um ventinho frio constante. A água é muito calcárea e corta a pele, estou usando no rosto só creme. Na cidade propriamente tem pouca coisa a ver ou fazer. Maury ao que parece vai comprar um carro. A despesa é grande mas talvez bem utilizada porque a gente fica com liberdade de passear e os trens também são caros. E depois a gente pode levar o carro para o Brasil. Eu infelizmente sou um espírito cansado e “blasé”; pouca coisa me entusiasma, eu bebi demais na literatura. Mas como deixar por exemplo de ler e escrever por um tempo? No caminho em que eu entrei eu tenho que aprofundar ao máximo até meus defeitos, quanto mais tempo passar mais enfronhada eu deverei estar no que eu faço – só assim conseguirei um arremedo de perfeição. Só tenho na verdade interesse e esperança em certas pessoas, em conhecer certas pessoas. O mundo me parece uma coisa vasta demais e sem síntese possível. Até Dilermando ficou em Nápoles, haveria enormes dificuldades de transporte do coitadinho. Não posso ver um cão na rua, nem gosto de olhar. Você não sabe que revelação foi para mim ter um cão, ver e sentir a matéria de que é feito um cão. É a coisa mais doce que eu já vi, o cão é de uma paciência para com a natureza impotente dele e para com a natureza incompreensível dos outros… E com os pequenos meios que ele tem, com uma burrice cheia de doçura, ele arranja modo de compreender a gente de um modo direto. Sobretudo Dilermando era uma coisa minha que eu não tinha que repartir com ninguém. Nunca vi carta mais estúpida. Eu estou muito bem de espírito também. Estou muito animada para o trabalho, estou gostando muito de trabalhar. Berna é simpática e mais tarde iremos a Paris. Fiquei tão arrependida porque a gente não tirou mais retratos. Querida, se você quer fazer regime pelo amor de Deus cuide de não se enfraquecer. Vá a um médico para saber que espécie de coisas você deve deixar de lado, mas alimente-se bem, você não é um passarinho, é uma mulher linda. E, querida, não ponha pó de arroz em baixo dos olhos, isso é inteiramente contra qualquer processo de maquiagem (estou rindo). Meu amor, seja bem feliz, não seja inquieta, seja tranquila e boa consigo mesma. Desenvolva as qualidades de Marcinha, que é uma uva. Tania, que notícias você me dá de meu livro? Saiu alguma crítica depois que fui embora? Me informe, querida, preciso saber. Receba o meu amor e a felicidade que eu quero lhe dar.

Clarice


Como vai Marcia com o resfriado, e se a penicilina adiantou. Quero saber como vai você, Elisa, com o trabalho. Quero saber como está você, Tania, com a saúde e disposição. Como vai William com o trabalho, se está dando frutos a viagem. Como eu nunca sei ao certo como vocês estão, acho que vou inaugurar um sistema de dizer coisas às cegas. Assim digo hoje:

A maior parte de nossos males são imaginários. São Francisco de Sales.
(Isso eu repito a mim mesma.)

E depois disso continuo minha carta. E na verdade minha carta inteira é uma pergunta: como estão vocês. E é uma palavra: felicidades. Temos ido como sempre ao cinema e saio meio tonta do cinema, de tal forma estou sempre disposta a perder a consciência das coisas e a me entregar à inconsciência. Seria muito bom um emprego de ir todos os dias ao cinema e depois não dizer se gostou ou não gostou. Quanto ao mais, nada propriamente. Sou como o papagaio da anedota: não falo, mas penso muito, presto muita atenção. Hoje é domingo, e não sei porque, todo domingo é pé de cachimbo. As bernenses até ficam engraçadinhas no verão. No inverno, parece, a cidade é de monstros, todos vestem milhares de roupas grossas, e meionas. Uma das coisas mais horríveis do vestuário das bernenses, no verão ou inverno, é o chapéu. São os chapéus mais esquisitos, mais altos, enormes, grossos e de forma estranha que tenho visto. E dentro do chapelão uma cara séria, sem vaidade, e muitas vezes com papo no pescoço; nas jovens, o papo é bem ligeiro ainda e dá até certa graça, o pescoço parece redondo e como elas são brancas, pode-se dizer: são pescoços redondos e brancos. – Vocês nunca experimentaram o que é receber cartas quando se está fora, sobretudo fora como eu, inteiramente fora: pergunta-se sem esperança mas cheia de esperança e quase certeza: há cartas para mim? E se respondem: chegou, esta – então eu fico boba de surpresa e de reconhecimento. – Que é que há sobre O lustre? Espero sempre notícias.

Tenho pedido muito aos acontecimentos que eles me sejam favoráveis. Porque com a saída do 1o secretário, vem outro a substituí-lo. E se por acaso viesse um casado que tivesse uma mulher simpática que pudesse ser minha amiga, abreviaria muito minha permanência em Berna. Mas isso é dificílimo. Provavelmente o que virá trará uma amiga para d. Noemia.

Bom queridas, o que faltou dizer é que eu penso muito em vocês. Mas isso não se diz; se pensa. E outras coisas mais. Espero que esta carta vazia de domingo-bernense, escrita sob o signo de Hulda Pulfer, encontre vocês com saúde, com tranquilidade, com esperança, com bem-estar, com sentimento de doçura de viver, com bom humor, com plenitude, com alegria em Marcia, com alegria nos domingos e nos dias da semana em si mesmas. Deus abençoe esse meu desejo. Um abraço grande.

Clarice

Tania querida, passei um telegrama no dia 19. Querida, tenho medo que o texto tenha chegado errado porque eu o deveria ter escrito à máquina sendo em português. Estava escrito: felicidade sempre. Isso era o que estava escrito. E o que não estava escrito eram abraços, amor, desejo de saúde para você – e outras coisas que não estavam escritas nem eu sei descrever.

Tania, já se acabou o dinheiro do correio? Peça + a dr. Mozart. Não precisa dizer para quê, diga que é para pagar Lux-Jornal e bobagens. Mande recortes querida.