• Romance
  • 1964

A paixão segundo G.H.

Nas linhas que antecedem a abertura deste romance, Clarice Lispector dirige-se a seus “possíveis leitores” dizendo que aquele livro é “como um livro qualquer”, mas que ficaria “contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada”. Se considerássemos apenas o fio do enredo e somente ele, A paixão segundo G.H. talvez fosse mesmo um livro qualquer. Mas, um passo para dentro do romance, e encontramos uma narração em primeira pessoa, G.H., em absoluto estado de concentração e dilatação interior, após a travessia do que se tornaria para ela uma experiência limite. Depois de despedir a empregada, G.H. inicia uma faxina no quarto de serviço. Mal começa a limpeza, vê uma barata. Enojada do inseto, ela decide esmagá-lo contra a porta do armário. O momento decisivo do enredo e do discurso culmina quando G.H. devora a massa pastosa e branca da barata morta. Esse gesto desencadeia a desmontagem humana da personagem e lhe impõe uma (in)compreensão súbita dessa “construção difícil que é viver”.
Talvez a partir desse momento seja possível entender por que Clarice se faria contente com certo tipo de leitor. Trata-se de um livro em que tudo concorre para uma experiência de choque, para uma vivência limite centrada no encontro de G.H. com o inseto. É preciso, então, que esse possível leitor “de alma já formada”, de mão dada com a protagonista, assuma com ela todos os riscos dessa catábase, desse movimento de descida aos infernos que poucos, muito poucos, são capazes de suportar. Descer ao “inferno de vida crua” com o medo de quem sabe estar “indo em direção não da loucura, mas de uma verdade”: eis a danação e o deserto de G.H., a origem do desmoronamento de tudo aquilo a sempre estivera habituada. O cotidiano organizável, as certezas tranquilizadoras, a civilidade e a suposta humanidade, tudo desmorona gradual e penosamente no gesto ritualístico de devoração da barata morta. G.H. atravessa a si mesma e ao seu oposto, o mundo e o avesso do mundo, consciente da impossibilidade de narrar o que vivera, de tornar comunicável aquela “luta primária pela vida”.

No romance, o funcionamento da escrita surge também como experiência de concentração e intensidade. A linguagem transborda, excede e se estilhaça, corta, hesita e irrompe o silêncio, salta feito um tigre no peito do leitor, sussurra, desprende-se dos sentidos convencionais e, a um só tempo, revela-se abundante e insuficiente para cumprir os passos da paixão de G.H. Nessa operação meticulosa da escrita, que extrai o máximo de rendimento de um enredo banal, Clarice realiza o que para muitos será o seu maior empreendimento literário.

Por Martha Alkmin