• Literatura Infantil
  • 1974

A vida íntima de Laura

A produção literária de Clarice Lispector endereçada a crianças marca-se pelo não-didatismo, pelo trabalho com a linguagem e por perspectivas inusitadas do narrar. Em A vida íntima de Laura (1974), terceira obra para crianças publicada pela autora, desde o início estabelece-se um diálogo produtivo entre narrador(a) e leitor, a partir de procedimentos que beiram a intimidade e recortam a maneira de ler/entender a história. O narrador (aliás Clarice Lispector) aciona, já na abertura textual, a possibilidade de revelar segredos e desvendar domesticidades e essências. Paralelamente, enfatiza a ligação afetiva com o leitor, por intermédio de aproximações (“Dou-lhe um beijo na testa se adivinhar.”, “Peço a você o favor de gostar logo de Laura…”). A protagonista Laura é uma galinha, apresentada sem auras de idealização: “Laura tem o pescoço mais feio que já vi no mundo”, “Laura é bastante burra”, “nunca vi ninguém mais sem jeito que essa galinha”. Bicho doméstico, comum, comum, distante da heroicidade e próximo do afeto das crianças, protagoniza a trama e lembra outras galinhas, e também ovos, constantes na ficção de Clarice Lispector, motivos para reflexão sobre a condição humana. O enredo é feito de pequenos episódios, que articulam o nascimento de Hermany, filho de Laura e Luís, seu marido; a tentativa de roubo de Laura por um ladrão de galinhas; a quase morte da protagonista e, finalmente, seu encontro com Xext, habitante de Júpiter, que pergunta a Laura como “eram os humanos por dentro”. Enfatize-se que Laura tem medo da morte, tema quase proibido na literatura para crianças, e que na narrativa aparece tratado de forma direta. Contudo, mais uma vez, no conjunto de obras para crianças da autora, não são os fatos que importam, mas a descrição e a reflexão propostas pelo narrador. Nessa narrativa desordenada, o tom de brincadeira, contínuo, torna ainda mais estreita a ligação daquele que narra com o leitor. Não se faz uso de expedientes de desvalorização da criança leitora, diminuindo a ação de pensar, e sim ativa-se a possibilidade de explorar elementos comumente despercebidos no cotidiano e retirar deles observações . As aventuras de Laura são construídas por explorações de linguagem, pistas de sentido, revelações de vida. E, nessa aventura, a cada momento o leitor encontra-se acompanhado pelo narrador, que frisa a preocupação com intimidades, com os “humanos por dentro”, a partir da fixação de Laura.

Por Rosa Gens