• Crônicas
  • 1978

Para não esquecer

“Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais.”. Esta frase, do livro Água viva, é provocativa em diferentes sentidos. Percebe-se uma autora consciente de seu lugar diferenciado na literatura brasileira e consciente, também, do perigo das categorizações, seja a adesão a rótulos binários (masculino/feminino), seja tomar de forma estanque o gênero literário. E é exatamente este último aspecto, ou seja, a flexibilização do gênero literário, fundamental para captar o espírito da obra Para não esquecer. Não se pode chamá-lo de livro de crônicas, pois ele é mais do que isso. Traz 108 textos pequenos, médios e, aqui e ali, extensos; traz contos, crônicas, aforismos, pensatas, pequenas piadas – todos enumerados e apresentados de forma aparentemente aleatória, propondo uma aproximação diferente da matéria narrada.

Podem-se destacar pelo menos dois aspectos na composição do livro. Primeiro, a questão da representação. Aqui, Lispector cria um diálogo permanente com as artes visuais e com a própria obra dela; apresenta-se através da figura do pintor, da imagem do espelho, da referência a Paul Klee, da remissão ao instantâneo fotográfico e através de títulos como “Abstrato e figurativo”, Escrevendo”, “Desenhando um menino”, “Esboço de um guarda-roupa”, “Estilo”, “A escritora” e “A explicação inútil”. Neste último, tenta traçar a genealogia dos contos de Laços de família, como uma resposta precária, incompleta, de um processo complexo que envolve escolhas técnicas, recordações e até mesmo a descoberta, na leitura em voz alta por outra pessoa, de que no instante da leitura é que nasce o seu conto. Neste lote, pode-se incluir o famoso texto “Brasília” (“Os ratos adoram a cidade. Qual será a comida deles? Ah, já sei: eles comem carne humana.”), em que confronta o projeto arquitetônico de Oscar Niemeyer à vida habitável, à cidade (des)humana, contestando um modelo urbano dominado pelo automóvel e pelo esteticismo. Um segundo aspecto, a que se pode chamar genericamente de encontros, inclui momentos de perfeita sintonia com sentimentos íntimos e com a evocação de seres e lugares cuja presença volta com intensidade (“O chá”; “Silent night, holy night”). E mais não se diz, porque cada leitor pode fazer seu arranjo (por tema, por linguagem) com a multiplicidades possíveis de entradas que o livro permite.

Por Clarisse Fukelman