De uma leitura, a felicidade secreta

TO GO WITH AFP STORY BY MARIE-PIERRE FEREY French essayist, novelist and dramatist Helene Cixous poses in her home in Paris on September 12, 2013. Cambodian actors will be performing in Khmer language a second installment of "The Terrible but Unfinished Story of Norodom Sihanouk, King of Cambodia" written by Cixous and Ariane Mnouchkine. AFP PHOTO / FRED DUFOUR (Photo credit should read FRED DUFOUR/AFP via Getty Images)

Gert Bange, Patrick. De uma leitura, a felicidade secreta. IMS Clarice Lispector, 2023. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2023/09/22/de-uma-leitura-a-felicidade-secreta/. Acesso em: 19 novembro 2024.

Em um livro pequeno, vasto e reluzente chamado Three steps on the ladder of writing, de Hélène Cixous (1993), que se pode traduzir por Três degraus na escada da escrita, a autora inventa uma escada. Ela começa escrevendo assim:1

Deixemo-nos ir à escola da escrita, onde passaremos três dias letivos nos iniciando na estranha ciência da escrita, que é uma ciência de despedidas. De reencontros.
Começa com: H
É isso que é escrever.
Eu falo com vocês hoje (hoje 24 de abril de 1990, hoje 24 de junho de 1990) em duas línguas. De um dia para outro, de uma página para outra, escrever muda as línguas. Eu pensei alguns mistérios na língua francesa que não posso pensar em inglês.
Essa perda e esse ganho são escrever também. Eu desenhei o H. Vocês o terão reconhecido dependendo de em qual língua vocês estão imersos. É isso que é escrever:
I
uma língua, I outra língua, e entre as duas, a linha que as faz vibrar; escrever forma uma passagem entre dois litorais. (CIXOUS, 1993, p. 32)

Nesse livro, Cixous é levada a três escolas por escritores que ama: a Escola dos Mortos, a dos Sonhos e a das Raízes. Um dos livros que transportam Cixous para a Escola dos Sonhos é o segundo romance publicado de Clarice Lispector, O lustre, de 1946 (1999).

Cixous se aproxima com paciência de O lustre. Ela não leu o livro inteiro, não o devorou, quando o menciona pela primeira vez, dizendo: “Eis um livro que ‘eu leio’, mas não acabei de ler” (CIXOUS, 1993, p. 58). “Eu leio”, escrito entre aspas, anuncia a problemática que pode ser assim enunciada: quando “eu leio”, o que é mesmo que lê, o que está sendo lido? A Escola dos Sonhos é esse lugar para onde descemos para sermos dançados, deixando o texto guiar. 

Cixous vai formando uma cena de leitura, marcando o que escapa. Por exemplo, o nome do livro não é evocado sem antes Cixous falar de dois lapsos freudianos. Ela esquece de trazer dois textos para a aula, A interpretação dos sonhos, de Freud, e a prosa e correspondência completas de Mandelstam. Esse esquecimento não é tomado como fora da economia da aula, mas incluída em seu texto, com a delicadeza de um “talvez”: “Talvez na Escola dos Sonhos também trabalhemos com a falta, a ausência, e a omissão” (CIXOUS, 1993, p. 58). Isso começa a configurar a leitura que Cixous faz das escritas que levam à Escola dos Sonhos: como ela dirá adiante, são aquelas que trabalham com momentos de não leitura, espaços vazios que vão compondo o tecido da leitura, e com o esquecimento, motor secreto de uma escrita que nos dirige. Ela diz:

Eis um livro que “eu leio” mas não acabei de ler. Não me esforço nem para lê-lo, nem para deixar de lê-lo. Eu o deixo ser, ele fica no quarto onde estou, frequentemente não o leio e nessas horas ele reluz obscuramente. É uma forma de ler. (É assim que chegamos à Escola dos Sonhos, fazendo um vasto desvio). (CIXOUS, 1993, p. 58)

Esse modo de ler, perpassado por uma paciência distraída, ritmo espontâneo de chegada ao livro, mostra o nascimento de uma leitura inaugural de um dos livros de Clarice. A leitura está nascendo agora mesmo. E Cixous não retira essa cena da economia da leitura, dando a ver uma espécie de jogo de sedução entre a leitora e o livro. 

O jogo se dá por uma dança com a espera, com a promessa, através de uma presença que pode se oferecer eroticamente, às vezes, quem sabe, como uma distância. Embora lá, pacientemente o livro aguarda as mãos da leitora. Ela, por sua vez, vai escrevendo, narrando não a história de dentro do livro (que aliás ela logo dirá que não conta propriamente uma história), mas os movimentos em torno dele. Esse “vasto desvio” que já é leitura. 

Esse modo fresco de ler O lustre ressoa uma outra leitura de Cixous, sobre um breve conto de Clarice, chamado “Felicidade clandestina” (1981). Trata-se daquela história da menina magra que passa por uma “tortura chinesa” (LISPECTOR, 1981, p. 8) à espera de um livro, nas mãos de uma menina gorda e sádica, até que uma mãe boa, estranhando aquela visita diária, percebe o que está acontecendo e dá o livro à menina magra “pelo tempo que eu [ela] quisesse”, ao que a narradora diz: “Entendem? Valia mais do que me dar o livro: ‘pelo tempo que eu quisesse’ é tudo que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer” (LISPECTOR, 1981, p. 8-10). Cito o conto:

Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar em casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. (LISPECTOR, 1981, p. 10, grifo nosso)

Com esse conto, Cixous escreve, no ensaio “Extrema fidelidade”:

[…] onde a felicidade não pode ser senão clandestina, será sempre clandestina, a felicidade é para si mesma seu próprio segredo, é preciso saber que não se pode ter senão se se tem um saber-ter que não destrói, que não possui, preserva.
O segredo é: lembrar-se a cada instante da graça que é ter.
Guardar no ter a leveza arquejante do esperar ter. Ter justo após não ter tido. Ter sempre em si a emoção de por pouco não tido. Pois ter é sempre um milagre. (CIXOUS, 2017, p. 148)

     Cixous reencena esse modo de ter um livro e o modo como a menina do conto se aproxima do livro, o modo como ela sabe tê-lo, como ela sabe inventar um modo de prolongar o ter o livro com o jeito com que Cixous se aproxima de O lustre, como ela também inventa um modo de prolongar essa aproximação, inventando uma cadência de aproximação que não acaba rapidamente com a entrada no livro, como a menina magra do conto de Clarice. Ela está aproveitando, com prazer, esse desvio, que já é seu modo de ler e de ter o livro de Clarice. Assim, Cixous se aproxima de O lustre cifrando esse modo de ter, transformando-o em um pão com manteiga ressoado, recitado, ressuscitado no ato de leitura. 

Fazendo da aproximação de O lustre uma felicidade também clandestina, Cixous passa para o dentro do livro. (Abria-o). Não começa pelo começo, começa por uma cena em que Virgínia, a personagem principal, se olha ao espelho pensando em “Sair dos limites de minha [sua] vida” (LISPECTOR, 1999, p. 65). Fecha o livro, fala de outros autores. Volta. Lê outra cena, com um sonho de Virgínia. Fecha-o de novo. Cixous cita sem pressa as passagens, deixa o texto se dizer, respirar, ser escutado. Escutemos, com ela, o começo do livro: 

Ela seria fluida durante toda a vida. Porém o que dominara seus contornos e os atraíra a um centro, o que a iluminara contra o mundo e lhe dera íntimo poder fora o segredo. Nunca saberia pensar nele em termos claros temendo invadir e dissolver a sua imagem. No entanto ele formara no seu interior um núcleo longínquo e vivo e jamais perdera a magia – sustentava-a na sua vaguidão insolúvel como a única realidade que para ela sempre deveria ser a perdida. (LISPECTOR, 1999, p. 9)

O livro começa, por assim dizer, dentro. E dentro de um segredo, ou seja, isso que não é acessível plenamente pela via da comunicação. O medo que existe é o da dissolução de uma imagem, sustentada pelo segredo inacessível e mágico. O que está lá, no segredo, é o que, desde já, deveria estar perdido. Acompanho Cixous, ao ler essas primeiras linhas que escreve sobre gostar de livros assim:

Essa é primeira frase do livro. Gosto de livros que começam assim. Ele começa dentro, no corpo.
Esses são livros que podem ser lidos. São livros reais. Você abre o livro e você já atravessou a fronteira. Você está no texto. Você está no mundo do texto. Você já está no outro mundo. Já há o brilho do outro país. Já estamos lá, com múltiplos sinais. Ainda assim, não entendemos nada. É assim que entramos num livro. Estamos cegos e ignorantes e gradualmente as coisas começam a se tornar mais claras. (CIXOUS, 1993, p. 82)

Então, cegos e ignorantes, somos lançados na primeira cena do romance. Nela, Virgínia, a personagem principal, e Daniel, seu irmão, avistam um chapéu num rio. Diante dele, eles supõem um afogamento e guardam o segredo entre si. Ao longo do livro, o chapéu retornará como um dos componentes da infância de Virgínia.2 Desde a primeira cena até a última, um chapéu aparece, intermitentemente. A cena continua assim:

– Olhe!
Daniel voltara a cabeça rapidamente – preso a uma pedra estava um chapéu molhado, pesado e escuro de água. O rio correndo arrastava-o com brutalidade e ele resistia. Até que perdendo a última força foi levado pela correnteza ligeira e em saltos sumiu entre espumas quase alegre. Eles hesitavam surpresos.
– Não podemos contar a ninguém, sussurrou finalmente Virgínia, a voz distante e vertiginosa.
– Sim… – mesmo Daniel se assustara e concordava… as águas continuavam correndo. – Nem que nos perguntem sobre o afog…
– Sim! quase gritou Virgínia… calaram-se com força, os olhos engrandecidos e ferozes.
– Virgínia…, disse o irmão devagar numa crueza que deixava seu rosto cheio de ângulos, vou jurar.
– Sim… meu Deus, mas sempre se jura…
Daniel pensava olhando-a e ela não movia o rosto à espera de que ele encontrasse nela a resposta.
– Por exemplo… que tudo o que a gente é… vire nada… se a gente falar disso a alguém. (LISPECTOR, 1999, p. 9-10) 

Esse é o pacto inicial entre os irmãos. Depois dele, a entrada, inclusive a nossa entrada como leitores na cena do suposto afogamento, está barrada. Cixous escreve o seguinte a propósito dos segredos iniciais do romance: “Espero que isso soe misterioso para vocês. Somos imediatamente arrastados para o centro onde está o segredo. Você quer saber qual é o segredo? Você não pode, porque é um segredo” (CIXOUS, 1993, p. 84-85). Cixous fecha o livro, não quer devorá-lo, quer que ele dure, que o querer da leitura dure. Assim, ela escuta a espera do livro que tem nas mãos:

Há algo extraordinário em nossa relação com os livros. O livro é a Porta – o Sonho do outro que não nos escapa – que nos sonha e nos espera. […] É assim que O lustre espera por mim, e eu não tenho pressa. Ele me dá tempo. (CIXOUS, 1993, p. 58)

Depois e antes de ler Clarice, Cixous já está lendo Clarice. Ela sabe, como a menina magra, tornar o livro desassombrado de sequer ter um início ou um fim, lendo-o como um lugar, aberto a todos os experimentos de escrita: “Escrever cedendo ao que se escreve: é isso o que acontece em O lustre. Esse livro não tem nem início, nem fim. É um lugar” (CIXOUS, 1993, p. 100).  E diz também:

O lustre dá tempo porque ele mesmo é forjado do tempo, ele é tão rico, grosso, tão bem manuseado [so well-thumbed] que é pura substância escrita. Não conta uma história. Ele nos faz sentir, provar, tocar a vida. Está lá como uma pessoa imóvel, eterna, completa, cuja característica infalível é produzir algo continuamente estranho: paciência, apesar de, ou com o desejo. Não terminei de ler O lustre. Estou no processo de lê-lo, e esse “no processo de” inclui passagens de não-leitura através das quais o livro continua a emitir seus raios. (CIXOUS, 1993, p. 58)

Eu achava que tinha em minha biblioteca três livros que não tinham início nem fim: Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, as Mil e uma noites e as Passagens, de Walter Benjamin. Vejo, agora, que O lustre também: sem início nem fim, um lugar, podemos ir até ele, voltar até ele, já com ele, com o que ele não cessa de nos dar como modo de leitura: ler sem que o livro cesse de emitir seus raios.

  1. Esta e as próximas passagens citadas desse livro foram traduzidas por mim.[]
  2. Proponho uma leitura do chapéu em O lustre na tese Um bolinho, um chapéu: passagem secreta entre Marcel Proust e Clarice Lispector.[]

Notas

Referências

CIXOUS, Hélène. Three steps on the ladder of writing. Trad. Sarah Cornell; Susan Sellers. New York: Columbia University Press, 1993.

______. “Extrema fidelidade”. In: A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina: contos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.

______. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.