• 25/09/2025

Clarice Lispector e a invenção da judeidade

Família Lispector: ao centro, Clarice com (em sentido horário) a mãe, Mania, a irmã mais velha Elisa, a irmã do meio Tânia e o pai Pedro.

Bernardo Fuks, Betty. Clarice Lispector e a invenção da judeidade. IMS Clarice Lispector, 2025. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2025/09/25/clarice-lispector-e-a-invencao-da-judeidade/. Acesso em: 05 dezembro 2025.

Benjamin Moser, um dos mais importante biógrafos de Clarice Lispector, declarou numa entrevista que uma de suas ambições ao escrever Why This World, publicado nos Estados Unidos e traduzido como Clarice, uma Biografia, era o de promover um espaço ao questionamento de um tema muito pouco trabalhado por críticos literários, comentadores e  biógrafos – a “judeidade” da escritora. 1 Isso porque a grande maioria deles se limita à refletir sobre o tema da brasilidade, “como se fosse preciso escolher, entre ser judia e ser brasileira”. É verdade que o fato de Clarice jamais ter sido explicitamente judia, ao longo de sua obra, dificulta  tais reflexões, porém essa falta é justamente o que Moser considera como algo bastante judaico pois, em geral, os “grandes escritores judeus costumam não falar abertamente, ou só raras vezes, do judaísmo”. 2 Sobre isso, ele nos oferece como exemplo as obras de dois escritores de origem judaicas, Marcel Proust e Franz Kafka. 

O que marca a presença judaica, na literatura escrita em línguas não-judaicas? Pergunta-se Bertha Waldman em “Por  linhas  tortas:  o  judaísmo  em  Clarice  Lispector”. Para responder à questão, a autora toma como ponto de referencia as considerações do filósofo alemão Franz  Rozenzweig: 

Um livro  judeu, não  aquele que trata de   “coisas   judias”  pois se assim o fosse os protestantes que recorrem ao Antigo Testamento estariam  escrevendo livros judaicos (…).  Para o escritor judeu as velhas  palavras  judias  voltam  para  dizer  o  novo,  pois  elas  carregam  uma  eterna  juventude  e  são  capazes  de  renovar  o    mundo,   desde   que   se   lhes   abra   uma   brecha   de   atuação. 3

Ou seja, a enunciação do escritor de origem judaica deve estar ligada ao trabalho de sacar  da memória coletiva, um dizer singular capaz de se sobrepor ao dito. Waldman também faz notar, como Moser,  que  o leitor de  Franz  Kafka não encontra  temas judaicos em suas obras. E  se referindo à  uma passagem extraída de um dos diários desse escritor tcheco que escrevia em alemão, a autora faz notar que nenhum código judaico – fundamentos e signos religiosos, vestuários ou cenas ritualísticas –, por si só, teria a capacidade de fazer emergir o judaísmo na obra de um autor judeu. Para Kafka, “seria preciso, extrair os elementos internos [do texto] para deixar emergir um feixe de sentidos que apontem para uma questão que não se encontra manifesta na obra mas que se impõe de algum modo ao leitor”. 4

As questões assim colocadas por Moser e Waldman, são bastantes úteis ao objetivo desse ensaio: procurar encontrar nas entrelinhas, nas margens e nos brancos do texto de Clarice Lispector, o modo como ela foi inventando sua judeidade e o que essa experiencia contribuiu à criação de uma escrita singular advinda de diferentes lugares culturais.   

Antes de prosseguir gostaria de introduzir a distinção estabelecida pelo escritor Albert Memmi. Em seu livro O homem dominado, dos termos “judaísmo”, (conjunto das tradições culturais e religiosas); “judaicidade” (conjunto de pessoas judias dispersas  pelo mundo); e “judeidade” (maneira pela qual um judeu subjetiva e objetiva o fato de ser judeu).5 De acordo com essa distinção, entendo por judeidade um projeto que ultrapassa a simples observância dos preceitos religiosos judaicos, escapa as contingencias do mero nascimento e determina a inserção do sujeito no futuro. Nesse sentido recorro também a definição de Jacques Derrida do termo judeidade: uma expressão que funda o ato de tornar-se outro. Trata-se de uma categoria impossível de ser enclausurada sob pena de impedir o seu próprio por-vir. Rodrigo Ielpo, refletindo sobre o modo como os romancistas George Perec e Patrick Modiano inventam suas judeidades, faz notar justamente que em Derrida a “judeidade” possui um caráter criativo. “O por-vir que constituirá sua rede de significações dependerá, de uma experiência de invenção, ao mesmo tempo profética, desde que não seja cognoscível enquanto tal, e poética”. 6

Afirmativa que ecoa o texto “Abrão, o outro”, no qual Derrida, revisitando a obra Reflexões sobre a questão judaica (1954) desconstrói a lógica simplista do autor, J. P. Sartre, em determinar o perfil do que viria a ser o judeu “autêntico” e o judeu “inautêntico” nos seguintes termos para ambos: “Sou um judeu sabendo e querendo dizer o que pareço dizer”.7 Para o filósofo da desconstrução, essa solução, por princípio, é absolutamente equivocada, dado que na falta de uma essência, a partir da qual se nomeia o “ser judeu”, o fazer (o ato) se antecipa a qualquer saber. Derrida não se limita a desconstruir a lógica sartriana e, em nome da memória de um povo em exílio, autoriza a si mesmo dizer: “sou judeu, mas não pretendo saber o que é”. O movimento afetivo que subjaz a esse testemunho é radical: “dizer-se judeu é aceitar uma vertigem, um indecidível, o risco de uma denominação para além de qualquer identidade”.8 Esse seria o princípio inventivo da “judeidade”.  

Um ano antes de sua morte, Clarice Lispector escreve num artigo para o Jornal O Globo: “Eu sou judia você sabe. Mas não acredito nessa besteira do povo judeu ser o povo eleito de Deus (…). Eu, enfim, sou brasileira, pronto e pronto. 9 Esse duplo pertencimento não foi uma tarefa fácil de  cumprir para a desafiadora escritora de “Pertencer”. “Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, de algum modo eu devia estar sentindo que não pertenço a nada e a ninguém”.10 Ser judia, ser brasileira e, ao mesmo tempo carregar, desde o berço, o sentimento de estar também fora de qualquer comunidade. Como interpretar esse paradoxo?  

Vejamos. Numa carta às suas duas irmãs, Elisa e Tânia, logo depois de confessar o tédio que experimentava na tranquila capital da Suíça, Berna, Clarice escreve: “É engraçado que pensando bem não há um verdadeiro lugar para se viver. Tudo é terra dos outros, onde os outros estão contentes. É tão esquisito estar em Berna e é tão chato esse domingo. Parece com domingo em São Cristóvão [Rio de Janeiro]”.11 Um sentimento de estrangeireidade pulsava dentro dela e registrados nas inúmeras e centenas de vezes que os termos “estranho”, “estrangeira” e “estrangeireidade” aparecem em seus contos e romances.12 Antônio Callado, certa vez, fez um comentário percuciente, a partir do contato íntimo com sua amiga, sobre a inquietante estranheza (Unheimlich)  que os textos claricianos produziam no leitor. “Clarice era uma estrangeira da terra. Ela dava a impressão, de andar no mundo como quem desembarca de noitinha numa cidade desconhecida onde há uma greve geral de transporte”.13 Por sua vez, Carlos Drumond de Andrade poetizou, no dia da morte de sua grande amiga, o mistério de sua condição de estrangeira:   

Clarice, veio de um mistério, partiu para outro

Ficamos sem saber a essência do mistério 

Ou o mistério não era essencial,

Era Clarice viajando nele (…) 14

Elisa Lispector, a irmã mais velha de Clarice, em seu romance autobiográfico No Exílio: Romance, dá a conhecer como foi a vinda da família, fugida dos progroms (termo que designa a destruição maciça dos judeus) que tiveram lugar em 1917 na Rússia, para o nordeste brasileiro. A obra de Elisa, conforme as observações de Moser, ecoa o estribilho Fun vonen is a yid? (De onde vem o judeu?), um modo particular dos judeus em  perguntar, em ídiche, a um patrício sobre sua origem. Língua de fusão, uma língua românica hebraizada da Lotaríngia, o médio alto alemão, bem como várias línguas eslavas o caráter extremamente híbrido do ídiche fica evidenciado no seguinte exemplo proposto por Max Weinreich: “Nokkn bentshn hot der zeyde gekoyfte a seyfer é uma frase em ídiche que significa: “Após a bênção que se seguiu à refeição, o avô comprou um livro religioso.” Nesta simples frase, a palavra seyfer vem do hebraico, a palavra bentshn, vem do românico, as palavras nokkn, hot, der, gekoyft, são de origem germânica; finalmente, zeyde é uma palavra eslava”.15 O ídiche era muito falado nos “pequenas povoados” (shtetlakh, em iídiche), em geral habitado por judeus em condição de pobreza e opressão, estabelecidos nas zonas rurais do leste.

Os avós paternos das irmãs Lispector viviam num desses povoados e os avós maternos numa cidade próxima. Eles se comunicavam com seus filhos e com os membros da comunidade, na língua errante e pouco falavam no idioma do  país, o russo. Os pais de Clarice, quando chegaram ao Brasil, deram continuidade à tradição de falar ídiche entre si. Sobre isso, há um dado importante relatado pessoalmente pela própria Elisa Lispector à Claire Varin, uma das mais conhecidas estudiosas da obra clariciana. Quando criança, sua irmã entendia o ídiche falado pelos pais em casa e ouvia, ao mesmo tempo, o ídiche e o português. “Vivo “de ouvido”, vivo de ter ouvido falar” eis o que chama atenção de Varin num manuscrito clariciano que encontrou em meio a outros documentos. É interessante destacar sua conclusão a respeito dessa frase: Lispector tinha a um “bilinguismo oculto”, fruto de suas experiências auditivas desde a infância. O ídiche foi a língua materna decisiva no domínio das inúmeras línguas que ela falava.16 Além de ter escutado a língua errante entre os familiares, pais e tios,  Clarice estudou no Colégio Hebreu Ídiche (Recife) 17, onde provavelmente teria tido aulas de ídiche, e talvez até mesmo do hebraico, uma vez que as escolas da comunidade judia eram naquela época, no mínimo, bilingues. Porém, é na língua da diáspora brasileira, o português, que Clarice encontra o lugar de sua língua: a escrita.  

O caso dos judeus como minoria à parte de uma sociedade de iguais, remonta ao exílio multimilenar – babilônio no século VI a.C., romano, e finalmente, pós-romano –, que lançou o judeu na experiência da Diáspora, palavra de origem grega que significa “estar disperso entre os povos, “estar fora de”, ou melhor, “não pertencer a”.18 Uma palavra que contém a ideia da experiência de ruptura, que toca os fundamentos da existência do povo judeu. Em O indestrutível, Maurice Blanchot insiste: “Que significa ser judeu? Por que isso existe? Isso existe para que exista a ideia de êxodo e a ideia de exílio como movimento justo; isso existe através do exílio e por essa iniciativa que é o êxodo, para que a experiência de estrangeiridade se afirme entre nós numa relação irredutível; isso existe para que, pela autoridade dessa experiência, aprendamos a falar.” 19

Eu nasci para escrever. A palavra é o meu domínio sobre o mundo”. Adestrei-me desde os 7 anos de idade para que um dia eu tivesse a língua  em meu poder. E no entanto cada vez que vou escrever é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estreia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que chamo de viver e escrever.20

Maldição e benção, a escrita mantem Clarice viva.  

À insistência de Blanchot em que o Judeu existe para que se aprenda a falar, há que se somar, então,   à obstinação de Derrida em afirmar que dentro da perspectiva de um certo judaísmo, o ato de apender a escrever revela-se como nascimento e paixão pela escritura, amor e sofrimento da Letra. Conforme faz notar num ensaio que dedicou a interpretar as judeidades de Edmond Jabés, poeta judeu expulso do Egito e exilado na França onde passa a escrever em francês, “o Judeu é dilacerado e está, antes de tudo entre duas dimensões da letra, a alegoria e a literalidade”21 –, ambas se dando no recurso à língua de um outro lugar, do estrangeiro. Sendo o ato de escrever uma forma de exilar-se de si, de ir ao encontro da “terra estrangeira interior22, entende-se o porquê de Clarice em afirmar que viver e escrever é um ato de renovação de si.  

A letra ocupa um lugar central no judaísmo, a começar pela estranha e assombrosa ideia da grafia do nome de Deus, o tetragrama IHVH, um escrito que não se lê. Um deus pura letra que não pode exercer a função de semelhante no espelho porque alteridade radical. A proibição do segundo mandamento de erigir imagem esculpida, de nada que possa representá-Lo (Êxodo,20:4) impôs e impõe a Ausência no espirito humano que não se cansa de procurar organizar-se no sentido das imagens e da presença figurada. Nesse sentido, a leitura do grafo que marca a linguagem, IHVH, provocou na cultura um retraimento do visível ao legível-audível, obrigando ao povo judeu o esforço de manter-se voltado ao Incognoscível e escutar o Silêncio. Blanchot, não hesitou em dizer que quando se pensa nesse Deus inabordável e transcendental, distante e absolutamente Estrangeiro, em geral marca-se apenas sua Ausência absoluta, deixando de lado o fato de que Sua revelação é acompanhada da “manifestação da palavra como lugar onde os homens se relacionam com aquele que exclui toda a relação: o infinitamente Distante (…)”.23  

As palavras do poeta judeu Edmond Jabès ajudam a ilustrar essa proposição.  

A seu povo, Deus manda escutar: ‘Escuta, Israel.’ Mas escutar o quê? Escuta as palavras do teu Deus; mas Deus está ausente e suas palavras sem voz, pela distância cortada de seus sons. Escuta o silêncio, pois é nesse silêncio que Deus fala à sua criatura […]. O interdito original confere à não-representação seu caráter sagrado. A língua de Deus é a língua da ausência.24

De fato, escutar é um dos sentidos que ocupam um lugar de destaque na liturgia judaica. O texto é lido em voz alta, e o que, no Ocidente, entende-se por escritura na expressão Sagradas Escrituras em hebraico se diz mikra, leitura. Os  que fundaram o cânone judaico passaram na tradição a leitura-escritura da Palavra não como desvelamento, mas como criação de sentido.25 Nessa passagem do ver à escrita o leitor escuta a errância das letras que se combinam infinitamente diante do silêncio de IHVH. 

A escrita de Clarice é decerto tributária dessa tradição, mas isso não significa uma simples submissão ao passado. A determinação que vem de fora – escutar o Silêncio – só se realizará na invenção poética da autora. Lembremo-nos dos versos de Goethe citado por Freud em Totem e Tabu: “Aquilo que herdastes de teus ancestrais, conquista-o para torná-lo teu”.26 A invenção poética da autora traduz  o processo de invenção de sua judeidade: Clarice dramatiza no presente sua própria história como ficção, por exemplo, em Um sopro de vida. E claro, Ângela a personagem desse “livro silencioso”, é quem protagoniza a judeidade de Clarice. 

Eu inventei Deus – e não acredito n’Ele. É como se eu escrevesse um poema sobre o nada e me visse de repente encarando frente a frente o próprio nada. Deus é uma palavra?  Se for estou cheio dele:  milhares de palavras metidas dentro de um jarro fechado e que às vezes eu abro – e me deslumbro. Deus-palavra é deslumbrador.27 

“Eu sou judia, você sabe… Eu enfim sou brasileira, pronto e pronto”. Se por um lado o vazio no centro do judaísmo é a presença silenciosa e vertiginosa que alimenta a escrita de Clarice, por outro ser brasileira foi uma escolha que determinou, como dizem muitos de seus comentadores, a reinvenção da literatura brasileira. Benjamim Moser, seu biógrafo americano citado no início desse ensaio   reconheceu que Clarice é a maior escritora moderna do Brasil sem ser, num certo sentido, uma escritora brasileira. Um paradoxo captado pelo poeta Lêdo Ivo: “Essa prosa fronteiriça migratória e emigratória, não nos remete a nenhum de nossos antecessores preclaros. Dir-se-ia que brasileira naturalizada, naturalizou uma língua”.28 Veremos mais detalhadamente, mais adiante, que em Clarice, judeidade e brasilidade são experiencias estrangeiras ao seu próprio eu. Seus escritos são a prova viva do famoso aforisma freudiano: “o eu não é senhor de sua própria casa”. 

É possível que nossa autora tenha sido marcada não apenas pelo peso da perseguição antissemita que levou sua família ao desterro e  ao exílio, mas igualmente pela presença da figura do estrangeiro no Antigo Testamento. “E te lembrarás de que foste escravo no Egito. Eis por que te ordeno respeitar o estrangeiro” (Deuteronômio, 24:17). A própria Aliança, o pacto entre os hebreus e IHVH que lhes assegura uma identidade, comporta a ideia de estranhamento (Unheimliche – o conhecido/desconhecido) que incomoda e dilui as certezas do mesmo. Estruturalmente, algumas das narrativas da Bíblia hebraica dão a impressão de que o nomadismo, tão característico da sociologia bíblica, bem como da ética da Torá, não é outra coisa senão a expressão permanente de uma marca identificatória e de seu múltiplo e infinito devir. Aquilo que chama atenção no Livro não é apenas a precedência de uma experiência nômade sobre a da sedentarização, mas sobretudo o prolongamento da errância pelo deserto e a retomada de um êxodo sempre refeito. E é essa mobilidade inesgotável do nomadismo e da errância inscrita na história do povo judeu que aparecem nas personagens femininas de Clarice. 

 Joana, personagem do Coração Selvagem, inaugura., com a viagem a que se lança no final do romance, a busca inquietante que as demais personagens empreenderão, cada uma a sua maneira. Virgínia, personagem principal do Lustre, abandonará o lugar onde nasceu para enfrentar a cidade grande. Lucrécia, personagem de A Cidade Sitiada , é movida pelo desejo de abandonar o subúrbio de São Geraldo. (…) Macabéa, de A hora da Estrela, é alagoana e vem tentar a vida no Rio de Janeiro. A procura de inserção num lugar é própria às personagens e à autora.29

Cada uma dessas mulheres encena, também, o permanente exílio de si em Clarice, o  que o passo que lhe permite ir ao encontro do  desconhecido, num verdadeiro aprendizado de alteridade. A invenção da judeidade em Clarice se confundiria, então, com a própria lógica bíblica de eleição da estranheza – “tornar-se judeu” – intrínseca à Aliança de Deus com seu povo. Abrão, o patriarca hebreu inaugura uma noção do exílio que não está referida à punição, como a de Adão e Eva, Torre de Babel, ou a de Édipo, mas que é partida do “ser em face de si mesmo”, partida de “alguém que, munido de sua experiência da liberdade e da oposição, integra-a algo que a ultrapassa. A Abraão, Deus não diz somente ‘Vai’, mas ‘Vai por ti’” (Gênesis, 12.1.1).30   

E Clarice vai! E vai no sentido inverso da multidão: “Ela era um exemplo brutal da singularidade da pessoa humana”, escreveu Otto Lara Resende, quando Clarice faleceu.31 

Ora, o avô paterno das meninas Lispector, Schmuel Lispector, era um grande leitor e intérprete do Antigo Testamento e dos grandes livros sagrados que dele se originaram – Midrash e Talmud.32 Por conta dessa paixão pela Escritura, ele alçou o status de um homem sábio e santo; o que lhe valeu atrair em torno dele muitos estudiosos dos textos sagrados. Schmuel transmitiu ao seu filho Pinkhas (Pedro), o costume de ler o Tanakh, os 5 primeiros livros do Antigo Testamento, diariamente e é provável que Clarice e suas irmãs tenham ouvido do pai muito das histórias que povoam esses livros. Pedro deixou a Europa levando consigo, mesmo que tenha sido apena simbolicamente, a “pátria portátil dos judeus”, o Livro dos livros. De modo geral, pode-se dizer que a relação do povo judeu com o Deus da intolerável ausência se estruturou em torno Torá (Pentateuco) ou Revelação – um código falado e escrito de comunicação dos homens entre si e do homem com o divino. Esse livro e a tradição constituíram, ao longo dos séculos, a um só tempo, o eixo estruturante da religião, da ética e da política do povo judeu, bem como o espaço no qual os judeus desenvolveram uma práxis singular de interpretação que se revelou capaz de sustentar a transmissão do judaísmo e reconfigurações das  “judeidades” emergentes. 

Nômades, como as letras hebraicas que se aglomeram no branco de um pergaminho ancestral, os doutores da Lei e os comentadores do Texto ousaram dizer sempre mais do que no Livro aparecia manifesto, tornando-o, desde tempos imemoriais, um território que se prestou ao amplo acolhimento das subjetividades emergentes. Assim, vagando pelo mundo através dos séculos e das gerações, com letras e palavras transbordantes de sentidos, o povo judeu soube fazer da interpretação uma prática de deixar às letras a possibilidade de serem letras e de aproveitar os brancos do Texto como uma reserva de sentido sempre disponível para o leitor/intérprete. Esta incessantemente reencetada missão de ler as letras, multiplicar as combinações entre elas, reescrevendo-as num movimento contínuo de construções significantes singulares acerca da origem, do valor e do sentido da vida e da morte, acabou – conforme afirmaram algumas vezes Sigmund Freud e Jacques Lacan – por designar o judeu como aquele que sabe ler. E se é verdade que a religião começa onde se para de ler33, é forçoso dizer que há no judaísmo um ateísmo por se extrair: ele exige do intérprete da Escrituras, o compromisso de dessacralizá-la fazendo-a nascer de novo, recriando-a, inventando-a como no dia da criação.

Pode-se dizer que o talmudista é, por princípio, um “traidor” de toda e qualquer “leitura” imutável, isto é, religiosa – que impeça a produção de pensamentos. Ele se pergunta sobre o que lê e, por esta via, extrai dizeres outros, nunca os mesmos. Trata-se, como faz notar Henri Atlan, de garantir a lei antiidolátrica do segundo mandamento e o ateísmo da escritura. A luta contra a idolatria evita a ilusão da posse do sentido. O Texto é inconquistável e inapreensível. Dito de outra forma: “Os paradoxos da linguagem e de suas significações são de tal ordem que um discurso sobre Deus que não seja idólatra, que se abstenha de apreender ou conquistar seu Nome, é, inevitavelmente, um discurso ateu”.34 

Comporta a escrita de Clarice esse ateísmo marcado pela ausência de sentido?  

A realidade é a matéria-prima, a linguagem é o modo como vou busca-la _  e como não a acho. Mas é do buscar e do não achar que nasce o que eu não conhecia, e que instantaneamente reconheço. A linguagem é o meu esforço humano. Por destino tenho de ir buscar e por destino volto de mãos vazias. Mas _ volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso da minha linguagem. Só quando falha a construção é que obtenho o que ela não conseguiu.35 

Clarice expressa, nessa passagem da obra Paixão Segundo de G H, o fracasso da linguagem em nomear o inominável. Fracasso que paradoxalmente a reconcilia com a vida na palavra por vir, o outro que decidirá, o que “judeu”, “judaísmo” e “judeidade” terão significado. Mesmo porque a escrita de Clarice e advém da “terra de asilo interior”, nas palavras de Freud, que o sujeito contém em si mesmo.36 

Retomando, então, a ideia do filosofo Rozenzwaig de que a presença do judaísmo no livro de um autor só pode ser reconhecido como marcado pelo judaísmo, se as velhas palavras judias voltam para dizer o novo, e renovar o mundo, é possível reconhecer na escritura de Clarice a envergadura de uma autora que ao reescrever os traços da herança arcaica, valendo-se da Escritura que é marcada pela memoria de um povo em exílio, soube transformá-la numa ficção moderna. Nessa mesma linha  Sigmund Freud, ao retornar ao Antigo Testamento, para escrever O homem Moisés e o monoteísmo,  constrói uma “ficção teórica”, uma escrita que se assemelha a uma obra de imaginação sem desobedecer os critérios de cientificidade. E se Freud na leitura do Êxodos procedeu como um velho talmudista, isto é, multiplicou as combinações entre a letras desse livro, cortou palavras e frase e buscou nas margens e nos brancos dos textos dos historiadores e egiptólogos significantes que pudessem iluminar sua hipótese de Moisés ter sido um egípcio para sustentar a tese de que a identidade de um povo advém do Outro, do estrangeiro em relação ao si mesmo; Clarice Lispector em A hora da estrela, toma como referência os Livros dos Macabeus e transforma o herói, Judas Macabeu, numa anti-heroína nordestina destinada a passar despercebida porque “ninguém lhe responde ao sorriso porque nem ao menos a olham”.37 Pode-se dizer que como Freud, Clarice se valeu da modalidade de leitura milenar do Texto, uma démarche interpretativa singular cujo percurso consiste em buscar o que se encontra fora do texto e assim ir além da linha da escrita. Diferentemente de uma exegese, a interpretação talmúdica implica em criação e transformação, jamais decifração pela operação de uma chave simbólica eu venha substituir um versículo por algo mais inteligível. Trata-se de um trabalho semelhante ao que em psicanálise se atribui ao “trabalho do sonho”: processo de elaboração onde a atividade de um pensamento sem qualidades não é nem pensar, nem calcular, nem, de um modo geral, julgar, mas unicamente transformar. Um trabalho por-vir, isto é, “profético, (…). E poético”, parodiando Derrida citado no início desse ensaio.  

Macabéa, a protagonista do livro A hora da estrela, é um nome que consta na tradição folclórica da literatura de cordel nordestina. Entretanto, a autora a associa aos Livros dos Macabeus, dois livros apócrifos da Bíblia hebraica porque escritos em grego, embora provavelmente o primeiro tenha sido originalmente escrito em hebraico. O tema dessas duas obras gira em torno da resistência à opressão do outro poderoso. Resumidamente, o primeiro volume narra a perseguição do rei grego, no ano de 175 a. C, aos judeus: proibiu-os de praticar rituais de sua fé, de se dedicarem à leitura da Torá e lhes  impôs a crença no deus Zeus Olímpico. Enquanto parte do povo se rendeu à conversão, Matatias, o velho sacerdote do Templo, e seus cinco filhos continuaram fiéis a lei de Moisés. Judas Macabeu, um dos filhos de Matatias se tornou herói, ao assumir a rebelião contra os gregos após a morte do pai.  Devolve ao povo submisso a permissão de seguir a lei de Moisés e o Templo de Jerusalém, confiscado pelos gregos adoradores do deus pagão. Mas como todo herói, o destino trágico se cumpre: passado alguns anos da vitória que deu origem a festa judaica de Chanuka (Festa das Luzes), Judas Macabeu é morto em combate com o exercito do novo rei que colocou o povo judeu, mais uma vez, no lugar do  diferente, o inimigo a ser destruído. 

O Texto demanda interpretação do que lá não está. Clarice, tomada pelas urgências sócio-políticas de seu tempo – a extrema injustiça social para os nordestinos, os excluídos do progresso brasileiro –, retorna as letras do pergaminho ancestral. Seguiu as letras da história contada nos Livros dos Macabeus, obedecendo ao processo de historicização do judaísmo, isto é, fazendo coexistir o passado com o presente como virtualidade. Sendo virtual, o passado apresenta-se como um conjunto de singularidades que nada designa nem significa, até que aconteça uma atualização significante que demande interpretação. Macabéa, a jovem mulher extremamente pobre que sai de Alagoas, em busca melhores condições de vida, para uma metrópole do sudeste. Como ela, outras Macabéas padecem com a miséria e abandono em terra estrangeira e, por conta disso, aceitam todo o sofrimento que lhe é imposto pelo outro, porque não conhecem outra realidade possível. “Nas ruas do Rio de Janeiro, [relata Rodrigo, o narrador do romance] peguei no ar o sentimento e perdição no rosto de uma moça nordestina. Sem falar que eu menino me criei no nordeste”.38  

Macabéa, observa Nelson Vieira em “A expressão judaica na obra de Clarice Lispector”, sobrevive resistindo como os filhos de Matatias na sua teimosia em persistir na obediência à lei de Moisés. Ao contrário de seu namorado, que também é nordestino, Olímpico de Jesus, uma alusão ao nome de Zeus Olímpico, Macabéa não se deixa seduzir pela corrupção capitalista que graça na antiga capital do Brasil. Ela é “firme em oposição à falsidade do mundo. Sua fé intuitiva e teimosia se opõem às almas perdidas que encontra nas ruas do Rio”.39 Uma outra personagem da narrativa, Dona Carlota, a cartomante meretriz que ludibria a ingênua Macabéa lhe prever um futuro brilhante: casaria com Hans, o estrangeiro rico de nome alemão, que é dono da Mercedes – o carro do chanceler do Terceiro porta, como lembra Pedro Gurgel Valente, filho de Clarice, no posfácio de A obra da estrela. É nesse ponto que a lógica ficcional de Clarice enlaça o sofrimento de dois povos, acostumados a receber o ódio do outro que se constitui como idêntico a si mesmo. O destino da moça anônima do nordeste não deixa dúvidas: ele é tão trágico quanto a de Judas Macabeu. O carro amarelo “enorme como um transatlântico” atropela, na calçada Macabéa, a judia-nordestina clariciana. 

Aí Macabéa disse uma frase que nenhum dos transeuntes entendeu. Disse bem pronunciado e claro: – Quanto ao futuro. Terá tido ela saudades do futuro? Macabeia morreu . Vencera o Príncipe das Trevas.40 

Dois meses antes de morrer, Clarice dá provas da impossibilidade de se dissociar os significantes  judeidade e brasilidade. A hora da estrela é uma homenagem prestada às duas culturas e, ao mesmo tempo, o  reconhecimento de que se a história que ela escreve não existe, passará a existir: “Esta história acontece em estado de emergência de calamidade pública”. E o que fazer? 

É quando entro em contato com forças interiores minhas, encontro através de mim o vosso Deus. Para que escrevo? E eu sei? Sei não. Sim, às vezes penso, diz o narrador Rodrigo/Clarice da trama, que não sou eu, pareço pertencer a uma galáxia longínqua de tão estranho que sou em mim. Sou eu? Espanto-me com o meu encontro.41  

  1. Este ensaio foi publicado originalmente no livro Lispectator, organizado por Marco Antonio Coutinho Jorge e Tarcisio Greggio e editado pela 7 Letras. []
  2. Benjamin Moser, Entrevista Aspectos judaicos de Clarisse. Museublog, arte. Cultura. 24.09.2009. https://museujudaicorj.blogspot.com/2009/10/aspectos-judaicos-de-clarice-lispector.html (Acesso, 14 de fevereiro de 2024) []
  3. Berta Waldman, “Por  linhas  tortas:  o  judaísmo  em  Clarice  Lispector”, in.  Arquivo  Maaravi:  Revista  Digital  de  Estudos  Judaicos  da  UFMG.  Belo  Horizonte,  v.  5,  n.  8,  mar.  2011. p.1 []
  4.  Berta Waldman, Por linhas toras: o judaísmo em Clarice Lispctor. In. Arquivo Maariv: Reista Digital de estudos Judaicos da UFMG.  Belo. Horionte, v. 5 n.8. []
  5. Albert Memmi, O homem dominado. Lisboa: Seara Nova, 1975. p.43-44.[]
  6. Rodrigo Ielpo, “Judeidade e a criação da memória potencial em Georges Perec e Patrick Modiano. Scripta Uniandrade, v. 16, n3 (2018) p 326 – 342. Curitiba.  2018. []
  7. J. Derrida, “Abraham l’autre”. In: Cohen J. Zagury-Orly. Judéités p. 36.[]
  8. Idem, ibidem. 37.[]
  9. Citado por Nelson Vieira. A. expressão judaica na obra de Clarice Lispector. Remate dos males, Campinas.[]
  10.  Clarice Lispector, “Pertencer”, in A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p.110.[]
  11. Citado de Olga Borelli, Clarice Lispector: Esboço para um Possível Retrato. Rio  de Janeiro: Nova Fronteira, 1981, p. 111. Carta de 5.05.1944.[]
  12. Sobre o uso desses significantes ver Yudith Rosembaum, “O infamiliar” in  Clarice Lispector IMS, 2024. https://site.claricelispector.ims.com.br/2024/02/22/o-infamiliar/ []
  13. Apud,  Nadia B. Gotlib, Clarice Lispector: Uma vida que se Conta, 2009, p. 52.[]
  14. Carlos Drumond de Andrade, “Visão de Clarice Lispector”, in: Discurso de Primavera e Algumas Sombras.  Companhia das Letras, 2014, p. 77.[]
  15.  Max Weinreich, apud Marc-Alan Ouaknin e Dory Rotnemer, A bíblia do humor judaico, p.25-6.[]
  16.  Claire Varin, entrevista concedida ao jornalista Ubiratan Brasil. Jornal de Poesias. http://www.jornaldepoesia.jor.br/ubrasil1.html (acesso em 20.02.2024). []
  17.  Pedro Gurgel Valente.  Posfácio da obra A hora da Estrela. Rio de Janeiro: Editora Rocco. 2019, p. 85.[]
  18.  Suzana Rotker, Isaac Choctan & Elisa Lerner, Los transgressores de la literatura venezuelana, p.21.[]
  19.  Maurice Blanchot, “L’indestructible”, in L’entretien infini. p.183.[]
  20.  Clarice Lispector. “As três experiências”.  Jornal do Brasil. 11 maio de 1968. https://cronicabrasileira.org.br/cronicas/5887/as-tres-experiencias []
  21.  J. Derrida, “Edmond Jabes et  la question du livre”. In: Ecriture e la différence. Paris:  Seuil, 1967, p. 112”[]
  22.  Expressão que Freud utiliza para designar o inconsciente.[]
  23.  Maurice Blanchot, op. cit., p.187. Sobre a questão da Escuta do Silêncio no Judaísmo  encontra-se mais aprofundada no  capítulo IV do meu livro Freud e a judeidade, a vocação do exílio. Rio de Janeiro: Zahar, 2000 (99-114) []
  24.  Edmond Jabés, “Judaïsme et écriture” in Marie Moscoici & Jean Michel-Rey (orgs). L ‘ecrit du temp. Paris: Minuit, 1984. p. 8. Tradução livre. []
  25.  O tema da leitura-escritura no judaísmo encontra-se bem mais ampliado no capítulo V, Interpretação: errância e nomadismo da letra, do meu livro Freud e a judeidade, op. Cit. 9[]
  26.  Goethe, Fausto, parte I, cena 1, apud S. Freud, “Tótem y Tabú”, AE, vol.13, p.159. [“Totem e Tabu”, in ESB, vol.13] []
  27.  Clarice Lispector, Um sopro de vida (Pulsações). Editora Nova Fronteira. 1978. 126[]
  28.  Ledo Ivo, Citado por Benjamim Moser, op. Cit.  p. 24[]
  29.  Berta Waldman. O Estrangeiro em Clarice Lispector. In: Entre passos e rastros. São Paulo: Persspetiva. 2002, p. 18.[]
  30.  Sobre a relação das semelhanças e diferenças do mito de Édipo com os mitos bíblicos, cf. Bernard D. Hercenberg, op. cit., p. 149-94.[]
  31.  Otto Lara Rezende citado por B. Moser, op.cit. p. 540.[]
  32.  Midrash e Talmud. Conjuntos  da produção literária do Texto bíblico.[]
  33.  J.-P. Winter, “Transmisión y Talmude”, Bulletin interne de l’EFP, v. II, juin 1979.[]
  34.  Henri Atlan, “Niveaux de signification et atheísme de l’écriture”, in La Bible au présent, p.86.[]
  35.  Clarice Lispector. A paixão Segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 176.[]
  36.  Lydia Flem, O homem Freud, o romance do inconsciente, p.105.[]
  37.  Clarice Lispector, idem, p. 13.[]
  38.  Clarice Lispector, A Hora da estrela. Rio de Janeiro: 2020, p. 10.[]
  39.  Nelson H, Vieira. In: Clarice Lispector: Remates de Males: Revista do Departamento de Teoria Literária. Campinas: Universidade Estadual de Campinas, 1989, pp 207-209.[]
  40.  Clarice Lispector, idem, p. 77.[]
  41. Idem, p. 32.[]

Notas