, Ulisses, um pouco neurótico. IMS Clarice Lispector, 2017. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2017/09/06/ulisses-um-pouco-neurotico/. Acesso em: 22 dezembro 2024.
Ulisses não é apenas o grande personagem mítico que, usando de uma ideia ardilosa, pôs ponto final aos dez anos da guerra de Tróia, que movia tanto homens quanto deuses. Ao presentear o povo troiano com um cavalo de madeira lotado de soldados gregos, Ulisses, ou Odisseu na referência grega, pode então voltar para casa.
Esse retorno configura uma das obras fundamentais da literatura e está registrada em Odisseia, de Homero. A partir de então, inaugura-se toda uma legião de Ulisses (reais e simbólicos) no mundo literário. A começar pelo óbvio: título do romance de James Joyce – autor irlandês com quem Clarice foi comparada algumas muitas vezes –, Ulisses narra um curto intervalo da vida do agente Leopold Bloom em uma espécie de Odisséia condensada.
Outro Ulisses está presente em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. No romance, Clarice faz desse personagem professor universitário de filosofia e condutor de Lóri na aprendizagem do prazer e da autonomia amorosa/sexual.
Mais prosaico, embora literário, Ulisses foi o último cão de Clarice Lispector, um vira-lata que roubava guimbas de cigarros e filava coca-cola e uísque das visitas. De tão excêntrico – “e um pouco neurótico, ao que consta” –, Ulisses ganhou uma robusta nota no famigerado O Pasquim.
O animal, que atendia também pelos nomes de Vicissitude, Pitulcha e Pornósio, foi comprado quando os dois filhos da autora, Pedro e Paulo, já haviam se tornado adultos e saído de casa: “eu precisava amar uma criatura viva que me fizesse companhia”, teria dito a uma entrevistadora (segundo consta na biografia Clarice, escrita por Benjamin Moser).
Se para um cachorro, “estar com o dono significa estar com Deus”, para alguns donos não é muito diferente. Aliás, é difícil escrever sobre essa categoria – animais – sem escorregar na pieguice. Talvez o poeta russo Maiakovski tenha conseguido ao escrever a estrofe a seguir tão pungente quanto afetuosa:
Pois, tomai-me para guarda dos bichos.
Gosto deles.
Basta-me ver um desses cães vadios,
como aquele de junto à padaria,
um verdadeiro vira-lata!
e no entanto,
por ele,
arrancaria meu próprio fígado: Toma, querido,
sem cerimônia, come!
Em Um sopro de vida, publicado no ano seguinte à morte de Clarice, a personagem principal, Angela Pralini, discorre longamente sobre Ulisses, o cão:
“Eu sei falar uma língua que só o meu cachorro, o prezado Ulisses, meu caro senhor, entende. É assim: dacoleba, tutiban, ziticoba, letuban. Joju leba, leba jan? Tutiban leba, lebajan. Atotoquina, zefiram. Jetobabe? Jetoban. Isso quer dizer uma coisa que nem o imperador da China entenderia?”.
E ainda: “Eu e meu cachorro Ulisses somos vira-latas. Ah que chuva boa está caindo. É maná do céu e só Ulisses sabe disso. Ulisses bebe cerveja gelada tão bonitinho. Um dia desses vai acontecer: meu cachorro vai abrir a boca e falar. Será a glória.”
Clarice resolve a questão da não linguagem do animal de forma não menos criativa. No livro infantil Quase de verdade é o próprio Ulisses o narrador da trama que envolve galinhas tolas e uma figueira orgulhosa.
Fincada no bairro Leme, onde Clarice morou por mais de uma década, está sua recém-inaugurada estátua de bronze, que hoje atrai centenas de visitantes, fazendo inveja ao quase vizinho Drummond, a algumas quadras dali, na orla de Copacabana. Ao lado da plácida figura da autora, está eternizado Ulisses.
Dedicado e atento à dona, o vira-lata observa Clarice numa mistura de fascínio e ingenuidade, modo como nós, leitores, nos portamos diante de sua obra.
Se Ulisses falasse – e mais, se lesse poesia –, talvez dissesse à dona, humana, os versos que Maiakovski dedicou ao cão vadio.
*Elizama Almeida é doutoranda do programa Materialidades da Literatura/ Universidade de Coimbra, pesquisadora da lacuna e trabalha no Instituto Moreira Salles.