A volta à origem como promessa de futuro

Brites, Mell. A volta à origem como promessa de futuro. IMS Clarice Lispector, 2023. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2023/07/13/crianca-e-origem/. Acesso em: 22 novembro 2024.

Andrea Azulay nasceu em 1964, na cidade do Rio de Janeiro, formou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica e trabalha como corretora de imóveis na mesma cidade. Filha de Jacob David Azulay, psicanalista de Clarice Lispector, Andrea conviveu com a escritora na infância, quando tinha entre dez e doze anos. Nessa época, a garota se destacava nas aulas de língua portuguesa da escola – prova disso é que chegou a obter o segundo lugar em um concurso literário – e seu pai parecia nutrir o sonho de que se tornasse escritora. 

Benjamin Moser, biógrafo de Clarice Lispector, relembra que Jacob David Azulay, depois de duas décadas conduzindo o processo de análise da autora em sessões diárias que iam de segunda a sexta-feira, disse a ela que não mais poderia atendê-la: “Eu estava esgotado […] Clarice me exauriu mais que todos os meus clientes juntos. Os resultados eram mínimos. Eu estava muito cansado com ela e comigo. O esforço que eu fazia com ela e ela comigo era muito grande para o pouco que a gente colhia” (MOSER, 2009, p. 557). A relação transferencial psicanalista-paciente transformou-se, então, em algo próximo a uma amizade, e assim a escritora começou a frequentar a casa dos Azulay, acordo que fizeram para que não perdessem o contato – e acima de tudo para que a autora, que vivia uma fase em que se encontrava bastante fragilizada, pudesse ainda contar com algum apoio daquele que tinha sido seu grande alicerce emocional durante tantos anos. Incentivada por Jacob, Clarice passou então a ler os textos que Andrea escrevia e, segundo Lícia Manzo, autora de Era uma vez eu: a não ficção na obra de Clarice Lispector, ela imediatamente se encantou por aquela escrita pura, livre, inocente e por isso, a seu ver, extraordinária (MANZO, 1997, p. 164). Questionada pelo psicanalista se sua filha poderia se tornar escritora, Clarice teria respondido: “Ela já é uma escritora” (Ibid.).

A própria Andrea, entretanto, traz outras perspectivas para a própria história e a sua relação com a palavra:

Meu pai foi psicanalista da Clarice por mais de vinte anos. Quando tive contato com ela, a relação entre eles já era menos ortodoxa, quase uma espécie de aconselhamento. Quando fiquei adulta, meu pai me contou que ela era uma pessoa extremamente sofrida e perturbada emocionalmente. Mas brilhante, não é mesmo? Por volta dos dez anos de idade, com minhas redações escolares, fui convidada a fazer um programa de entrevistas com outras crianças de minha escola, que também se destacavam, num canal de cultura. Não lembro detalhes do programa. Com doze anos, ganhei o segundo lugar num concurso de comentários sobre um livro chamado O pássaro e a barragem […]. Concorreram vários alunos de várias escolas. Escrevia bem… nada de absurdamente fantástico como foi interpretado por meu pai. Prova disso é que não sou autora de livro algum. Fiz faculdade de Direito na PUC e realmente me destaquei… Mas não me destaquei nem me destacaria em literatura, como meu pai sonhara. O que ocorreu foi que ele mostrou meu livro de redações para a Clarice e perguntou se eu poderia vir a ser uma escritora. Ela disse que eu já era uma escritora. Mas vamos filtrar tudo isso com a ideia de que Clarice idealizava muito meu pai, pelo simples (ou não tão simples) fato de que ela tinha uma forte dependência emocional em relação a ele. Bem, tive alguns encontros com a Clarice e troquei correspondência com ela […]. Ela também compilou umas redações minhas num livrinho de dez cópias. […] Mas isso tudo pra mim resultou numa sensação desconfortável. Uma pressão de que eu teria com certeza que brilhar profissionalmente. E não foi o que aconteceu. […]. Parei totalmente de escrever por volta dos doze anos, quando meu pai me obrigou a ler um conto pra família inteira. Era muita pressão. Mas não culpo meu pai: eram ‘coisas da época’. Enfim, não me aprimorei. (AZULAY, 2023)

Na visão daquela que se tornou por fim corretora de imóveis, o seu talento era acima de tudo a projeção de seu pai e também de Clarice, que viam nos seus textos os próprios desejos e fantasias. Se Jacob lia nas suas palavras bem escolhidas e concatenadas o futuro de uma autora brilhante, Clarice talvez se reconectasse por meio daquelas mesmas linhas com o seu passado como escritora estreante. Mas fosse ou não um talento precoce, as duas passaram a se encontrar, trocar correspondência, e em 1975 a autora ajudou Andrea a transformar seus poemas e historietas em um livro caseiro, como ela própria relembra em seu depoimento. Intitulado Meus primeiros contos, o volume consiste em uma reunião de treze textos de Azulay escritos com sua caligrafia em folhas pautadas, além de uma apresentação de Clarice, também escrita a mão, e de ilustrações de Sérgio Rubens Matta, artista plástico que conheceu a autora em 1974 e nesse mesmo ano ilustrou seu livro infantil A vida íntima de Laura. Em um dos contos se lê:

O sonho
O sonho é uma montanha que o pensamento há de escalar. 
Não há sonho sem pensamento, não há primavera sem flor.
O sonho é a semente da flor.
A semente que faz brotar o amor.
Sonho é o deslizamento do nosso momento.
Não há sonho sem pensamento.
Não há primavera sem flor.
Por isto ofereço esse sonho, mãe, com todo o amor.

(AZULAY, material não editado)

Na coletânea, há outros textos como esse, escritos em versos, às vezes rimados, com ritmo marcado, e também narrativas em prosa. Os temas giram em torno da beleza da natureza (os pássaros, o mar, as flores), da força do amor e do amor à mãe. Aparentemente de inspiração romântica difusa, tanto pelos motivos quanto pela forma que busca emular, suas histórias se apresentam como uma saudação à vida e aos elementos naturais que estão presentes no cotidiano. É curioso que a menina tenha escrito um texto chamado “A rosa branca” – também título de uma narrativa de Clarice: 

Num dia uma semente se rompeu, e dela, uma rosa branca nasceu.
Seja ela como for,
Combate o ódio e a dor.
Ha, flor! Você é meu símbolo do amor!
Ela é uma flor que trouxe a bonança,
A flor que traz esperança.
Esta, é uma rosa branca
Uma rosa branca e franca
A flor que traz esperança,
Uma rosa criança,
Uma rosa branca,
A ROSA BRANCA

(AZULAY, material não editado)

Como se nota, para a garota de dez ou onze anos, cuja experiência literária é ainda incipiente, escrever significa expressar seus “nobres” sentimentos diante do encanto do que é vivo. A “Rosa branca” de Clarice, por sua vez, é descrita por um narrador que, diante do encontro com a flor, opõe a existência sublime desta à sua precária natureza humana: “Pétala alta: que extrema superfície. Catedral de vidro, superfície da superfície, inatingível pela voz. Pelo teu talo duas vozes à terceira e à quinta e à nona se unem – crianças sábias abrem bocas de manhã e entoam espírito, espírito, superfície, espírito, superfície intocável de uma rosa. Estendo a mão esquerda que é mais fraca, mão escura que logo recolho sorrindo de pudor. Não te posso tocar. Teu novo entendimento de gelo e glória meu rude pensamento quer cantar.” (LISPECTOR, 1999a, p. 66)

Ainda que nitidamente distantes na forma e no conteúdo, considerando até mesmo o apelo sensual que carrega a rosa de Clarice, há algo que parece unir os dois universos. Andrea canta a força da natureza tanto quanto Clarice, e as duas autoras/ narradoras, dadas as particularidades de uma criança em seus primeiros exercícios com a palavra e de uma mulher madura cujo ofício de escrever está já consolidado, se posicionam em relação aos seres da natureza como se estivessem diante do sublime: “Alço-me até atingir minha própria aparência. Empalideço nessa região assustada e fina, quase alcanço tua superfície divina…” (Ibid.), diz o texto de Clarice. Nesse sentido, a autora que esteve sempre à procura da aproximação e da revelação do sagrado, e que o buscava na massa informe da barata, na perfeição do ovo, nas coisas inanimadas, nos animais que “apenas são” e no coração selvagem do humano soterrado pela racionalidade possivelmente enxergava no texto de Andrea alguma ressonância. Em outra historieta intitulada “Obrigado Deus”, a menina diz: “Obrigado por ter nos dado a chance de procurarmos o amor que existe. Enfim por termos descoberto a coisa mais linda que fizestes. A natureza, o nascimento, enfim o mundo” (AZULAY, material não editado). Azulay, com sua juventude, espontaneidade e desprendimento para escrever, parecia significar ela própria um contato com esse terreno primordial, quase divino, que Clarice incessantemente procurava.  

Em cartas, ela dava à garota conselhos sobre sua escrita, sobre a profissão de escritor e, como não poderia deixar de ser, sobre a vida de modo geral:

À bela princesa Andrea de Azulay,

[…] Você precisa saber que já é uma escritora. Mas nem ligue, faça de conta que nem é. Eu lhe desejo que você seja conhecida e admirada só por um grupo delicado embora grande de pessoas espalhadas pelo mundo. Desejo-lhe que nunca atinja a cruel popularidade porque esta é ruim e invade a intimidade sagrada do coração da gente. Escreva sobre ovo que dá certo. Dá certo também escrever sobre estrela. E sobre a quentura que os bichos dão a gente. Cerque-se da proteção divina e humana, tenha sempre pai e mãe – escreva o que quiser sem ligar para ninguém. Você me entendeu? (apud MANZO, 1997, p. 165).

Em outra, diz:

Andrea de Azulay, que é minha filha espiritual,

[…] Sugestões para escrever: você não precisa de nada, já sabe quase tudo. Mas vou lhe dar umas ideias: – Não descuide da pontuação. Pontuação é a respiração da frase. Uma vírgula pode cortar o fôlego. É melhor não abusar de vírgulas. O ponto de interrogação e o de exclamação use-os quando precisar: são válidos. Cuidado com reticências: só as empregue em caso raro. Como depois de um suspiro. Quanto ao ponto e vírgula, ele é um osso atravessado na garganta da frase. Uma amiga minha, com quem falei a respeito da pontuação, acrescentou que ponto e vírgula é o soluço da frase. O travessão é muito bom para a gente se apoiar nele. Agora esqueça tudo que eu disse. […]

Quando você fizer sucesso fique contentinha mas não contentona. É preciso ter sempre uma simples humildade, tanto na vida quanto na literatura (Ibid., p. 169).

É curioso perceber que o modo carinhoso como Clarice se comunicava com Andrea remete às narradoras encontradas em seus livros infantis. Em A mulher que matou os peixes, de 1968, se lê: “Essa mulher que matou os peixes infelizmente sou eu. Mas juro a vocês que foi sem querer. […] Dou minha palavra de honra que sou pessoa de confiança e meu coração é doce: perto de mim nunca deixo criança nem bicho sofrer.” (LISPECTOR, 1983a, p. 3); “Se vocês gostam de escrever ou desenhar ou dançar ou cantar, façam porque é ótimo: enquanto a gente brinca assim, não se sente sozinha, e fica de coração quente” (Ibid., p.12).

Nesse livro, o segundo que lançou mirando o público infantil, a narradora em primeira pessoa se coloca como mãe e escritora, se nomeia Clarice e busca convencer os leitores de que matou os dois peixes de seus filhos por acidente, tomada pelo excesso de trabalho. Em meio aos seus relatos sobre os animais com os quais se relacionou ao longo da vida, ela traz à tona temas como perda, saudade, vingança, e em tom de diálogo divide com a criança suas reflexões. A partir da sua posição de experiência, a narradora aconselha o leitor, mas – e essa é possivelmente a marca mais significativa de sua obra para a infância – considera-o um interlocutor tão capaz quanto qualquer adulto. Marisa Lajolo e Regina Zilberman, em Literatura infantil brasileira: história e histórias, afirmam que entre as décadas de 1960 e 1970 os textos para a infância vinham, finalmente, se desprendendo do moralismo e pedagogismo excessivos que até então haviam dominado a literatura para crianças no país, e é justamente nesse período que Clarice Lispector, por meio de suas narradoras, trava com os leitores uma relação horizontalizada, em que não esconde as próprias limitações (LAJOLO; ZILBERMAN, 1985). Sem traços de condescendência, então, A mulher que matou os peixes trata de temas considerados tabus, ao mesmo tempo que acolhe o interlocutor em suas dificuldades.

Ainda no mesmo livro lemos: “Mas se eu jurar por Deus que tudo o que contei neste livro é verdade, vocês acreditam? Pois juro por Deus que tudo o que contei é a pura verdade e aconteceu mesmo. Eu tenho respeito por meninos e meninas e por isso não engano nenhum deles” (LISPECTOR, 1983a, p. 28). Depreende-se, então, não só que crianças e adultos são considerados igualmente capazes, mas também que as primeiras detêm qualidades próprias que se mostram valiosas para a narradora, como sua capacidade de serem verdadeiras. Outra característica que ganha destaque é a vocação das crianças para fabular: “Puxa […], acabo de cheirar uma ideia tão boa que até parece ideia de menino!” (LISPECTOR, 1999b, p. 12). Não à toa, ela diz a Andrea: “Você precisa saber que já é uma escritora. Mas nem ligue, faça de conta que nem é”, ou “você não precisa de nada, já sabe quase tudo”.

Em O mistério do coelho pensante, livro escrito a pedido de Paulo, filho da escritora, e publicado em 1964, o enredo se desenvolve em torno de um coelho aparentemente igual a todos os outros de sua espécie, mas que descobre uma forma de fugir de sua gaiola e assim passa a ir e voltar de sua morada sempre que tem vontade. A narradora, que forja o mesmo tom coloquial e o ambiente de diálogo de A mulher que matou os peixes, deixa aqui o enigma em aberto e entrega-o aos leitores – só eles parecem capazes de resolvê-lo, com o auxílio de sua imaginação. No texto “A brincadeira é”, de Azulay, encontramos o mesmo recurso ao lúdico, quando a garota demonstra consciência da força da invenção em sua vida de menina: “A brincadeira é o meu tempo de criança, que só me trouxe a esperança. É o meu tempo de alegria de amor e fantazia [sic]” (AZULAY, material não editado). 

O exercício de fabulação passa a ganhar tons de nonsense em A vida íntima de Laura, e na obra póstuma Quase de verdade assume o quadro geral da narrativa. Na história de Laura, publicada em 1974 e cuja epígrafe é curiosamente um poema de Andrea, a protagonista é uma galinha e vive como qualquer outra: mora no galinheiro, é casada com o galo Luís e toca seus dias sem grandes sobressaltos; come, bota ovos, cisca. O ritmo da narrativa é, assim como a vida de Laura, bastante pacato, sem a presença de grandes acontecimentos no enredo. O momento fantástico e de maior movimento na história – se dá quando, durante a noite, um extraterrestre aparece no galinheiro para conversar com Laura e lhe garante que não será comida, apesar de já estar ficando velha e de se sentir na mira da dona do galinheiro. Eles têm um diálogo, em seguida o extraterrestre vai embora e a história termina com a frase: “Laura é bem vivinha”. 

Ovos e galinhas se constituem em grandes obsessões da autora e aparecem sob variadas perspectivas ao longo de toda a sua obra. Mas na maioria de seus textos voltados ao público adulto as galinhas, ainda que despertem o fascínio de Clarice, cumprem o seu destino de “galinha de domingo”. É interessante notar, nesse sentido, que só na sua obra infantil outra saída se faz possível, e é no terreno da fantasia, o espaço da infância por excelência, que Laura acaba sendo salva por um extraterrestre. Quase de verdade, de 1978, é ditada desde o início pela lógica nonsense e carnavalesca, em que convivem referências que vão da Bíblia a Monteiro Lobato, de Homero às fábulas de Esopo. Essa história alegórica é narrada por Ulisses, que se apresenta aos leitores como o cachorro de Clarice e cujos latidos serão traduzidos em palavras pela sua dona. De todos os seus livros para crianças, esse é o único que contém um enredo linear e um conflito estabelecido: também em um galinheiro, uma figueira invejosa que vive ali resolve manipular as galinhas para obter lucro com o seu trabalho. Então, com a ajuda de uma bruxa, consegue uma forma de iluminar a si mesma durante a noite, fazendo com que as galinhas pensem que está dia e que, portanto, devem botar ovos. Elas passam a produzir ovos incessantemente, até que descobrem que estão sendo vítimas de um plano maligno, se revoltam, enfrentam a figueira má e a paz retorna ao ambiente.

Mais ou menos fantásticas em seus enredos, essas histórias infantis revelam narradoras que, despidas quase por completo da instância ficcional, em muito se assemelham à autora: são mães, escritoras, assinam “C.L.” ou até mesmo dizem se chamar Clarice. Além disso, por meio da estrutura narrativa em forma de diálogo, se aproximam do leitor e se permitem exercitar a imaginação. Assim, se há nessas narradoras uma postura horizontal em que se pressupõe o respeito às particularidades da infância, nesse mesmo movimento se flagra também o desejo de se tornar um pouco mais criança. Olga Borelli diz, em depoimento a Lícia Manzo: “Clarice ficava encantada com a inocência e inteligência de Andrea. Penso que o contato com crianças e animais de um modo geral a revigorava e enternecia simultaneamente”. (MANZO, 1997, p. 168-9)

A aproximação com a infância, em sua obra e fora dela, foi se tornando cada vez mais constante nos últimos anos de vida da escritora, justamente quando conheceu Andrea, à medida que ela própria envelhecia e se via com limitações tanto físicas como em relação àquilo que buscava através do exercício de escrever. O utópico encontro com o “de dentro”, perseguido desde o seu primeiro livro, parecia ter chegado a um paradoxo, a partir da percepção de que as palavras estariam sempre a serviço da razão e dessa maneira nunca a levariam ao seu objetivo. É nesse período que Clarice diz: “E eu, só me resta latir para Deus” (LISPECTOR, 1991, p. 45) – e também é desse mesmo momento a chegada de Ulisses, o icônico cachorro que narra o último livro infantil que escreveu. “Ulisses se tornaria para Clarice um fiel companheiro de todas as horas, aparecendo em praticamente todos os seus livros dali por diante. Andrea seria também uma referência importante e Clarice chegaria mesmo a usar um de seus poemas como epígrafe num de seus futuros livros”, diz Lícia Manzo (MANZO, 1997, p. 169).Não parece ser coincidência, então, o fato de que foi na última década de sua vida que a autora escreveu a maior parte de seus livros para crianças, assim como os contos para o público adulto em que rememora sua infância no Recife. Rodeada das personagens de seus textos memorialísticos, de seus filhos, Ulisses, galinhas, leitores de sua obra infantil e Andrea Azulay, Clarice talvez se sentisse ao menos tateando aquele terreno inalcançável em que o “só ser” se sobrepunha à razão. E o brilho de Andrea, dessa forma, se mostrava precisamente na sua proximidade com um universo menos dependente da lógica racional e mais afeito à liberdade criativa, menos apegado às regras sociais e mais conectado às necessidades primordiais – assim como os interlocutores crianças de suas histórias infantis. Aquela garota iniciante na carreira significava para a escritora experiente um encontro radical de alteridade. Ao contrário do que pensa Andrea hoje, ao dizer que a simpatia de Clarice por ela não era mais que “uma grande idealização” da escritora pelo seu pai, aquela criança, espontânea e talentosa com as palavras, era para Clarice uma possibilidade preciosa de começar de novo; voltar à sua origem e recuperar o sentido do seu ofício: fabular sem amarras. Afinal, ela própria chegou a dizer que “Antes de aprender a ler eu já fabulava” (MOSER, 2009, p. 104). E para quem, senão para si mesma, estaria desejando “que nunca atinja a cruel popularidade porque esta é ruim e invade a intimidade sagrada do coração da gente”, ou dizendo que “É preciso ter sempre uma simples humildade, tanto na vida quanto na literatura”? Ao afirmar, em crônica publicada no Jornal do Brasil, que “nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais” (LISPECTOR, 1999c, p. 459), a autora reforça o seu compromisso com a origem sagrada, mesmo que inalcançável, e com a própria história. E a relação com Andrea Azulay não significou outra coisa senão os seus votos renovados, talvez pela última vez, com a escrita como modo de vida.

Referências

LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira: história e histórias. São Paulo: Ática, 1985.

LISPECTOR, Clarice. A mulher que matou os peixes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983a.

______. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Rocco, 1999a.

______. O mistério do coelho pensante. Rio de Janeiro: Rocco, 1999b.

______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999c.

______. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1991.

MANZO, Lícia. Era uma vez eu: a não ficção na obra de Clarice Lispector. Curitiba: Secretaria do Estado da Cultura, 1997.

MOSER, Benjamin. Clarice,. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

Notas