• 09/12/2019

Clarice em nova reedição

, Clarice em nova reedição. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/12/09/clarice-em-nova-reedicao/. Acesso em: 14 outubro 2024.

Em 2020, Clarice Lispector faria cem anos. Uma série de eventos está programada para celebrar a efeméride. A editora Rocco, responsável pela publicação de sua obra, já deu início às comemorações com a reedição dos três primeiros romances da escritora, escritos na década de 1940, quando Clarice não havia completado ainda 30 anos; são eles: Perto do coração selvagem, O lustre e A cidade sitiada. O restante de sua obra completa será toda reeditada até o fim do ano que vem.

O projeto gráfico é assinado por Victor Burton, premiado designer de livros. As capas são ilustradas por imagens de pinturas de Clarice feitas, a maioria, em 1975. A relação da escritora com as artes plásticas não pretendeu ser mais do que um passatempo ampliador de seus processos criativos; sua produção, apesar disso, soma 22 quadros — dois deles pertencentes ao acervo do Instituto Moreira Salles — e ganhou uma detida reflexão do crítico português Carlos Mendes de Sousa, no livro Clarice Lispector: pinturas, também editado pela Rocco.

As novas edições também trazem posfácios inéditos, escritos por especialistas na obra de Clarice, como Nádia Gotlib, Clarisse Fukelman, Benjamin Moser, Aparecida Maria Nunes, Ricardo Iannace, Marina Colasanti, Eucanaã Ferraz, Teresa Montero, Arnaldo Franco Junior e próprio filho da autora, Paulo Gurgel Valente. O realizador Luiz Fernando Carvalho, que adaptou recentemente para o cinema o livro A Paixão Segundo G.H. (com estreia prevista para o ano que vem), também assina um dos textos.

Essa primeira reedição, em 2019, contempla o primeiro livro, Perto do coração selvagem (1943), que foi um grande sucesso de crítica, tendo recebido muitas avaliações positivas, inclusive a do escritor Antonio Candido, que, à época, saudou a estreia da escritora para o jornal Folha de S.Paulo: “dentro de nossa literatura, é uma performance da melhor qualidade. A autora — ao que parece uma jovem estreante — colocou seriamente o problema do estilo e da expressão”. O lustre (1946), segundo livro, ao contrário, teve recepção acanhada e, com ela, o início da relação conturbada da escritora com as editoras ao longo da carreira. Por fim, A cidade sitiada (1949), escrito em Berna, na Suíça, quando a jovem Clarice acompanhava o marido Maury Gurgel Valente em missão diplomática.

A primeira literatura de Clarice, que agora chega às livrarias de cara nova, dá a ver nos temas, modos de narrar, humor, estilo e inquietações existenciais as mesmas qualidades que — reiteradas por críticos e público — seriam a marca de uma carreira de sucesso trilhada pela grande escritora.

Notas

A conversão pelo ódio

, A conversão pelo ódio. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/12/04/a-conversao-pelo-odio/. Acesso em: 14 outubro 2024.

Caetano Veloso conta que quando mostrou sua canção “Odeio”, que seria incluída no álbum , ainda ao violão, para o amigo e compositor Jorge Mautner, este teria chorado e lhe dito que aquela era a canção de amor mais bonita que já tinha ouvido. O refrão, que repete “odeio você, odeio você, odeio você, odeio”, quando cantado, na região mais grave, sugere, ao invés da agressividade esperada, um sentimento de ternura; “parece um carinho”, explicou ele. O próprio Caetano declarou que quando compôs “Odeio”, de fato, pensava em como amor e ódio podem se converter facilmente um no outro: “quando você tem briga de amor, tem muitas raivas”, comentou em entrevista à revista Rolling Stone, na época do lançamento do álbum, em 2012.

A partir dessa observação, é possível pensar num eixo em que amor e ódio estão localizados em dois extremos de uma única mobilização afetiva. Em outras palavras, o ódio é o amor que recua, apesar de igualmente radical em sua paixão – sendo a indiferença, sim, o seu contrário. O refrão de Caetano tira proveito dessa ambivalência ao sintetizar em um só verso – “odeio você” – tanto a raiva do ódio (dito textualmente) como a ternura do amor (expresso na melodia e no “grão” da voz do cantor). O efeito, conforme as palavras do compositor, é poder “dizer o amor como ‘odeio’”.

Esse é o tema do conto “O búfalo”, de Clarice Lispector, de quem, a propósito, Caetano era leitor desde a adolescência, quando os primeiros textos da escritora foram publicados na revista Senhor. A história, incluída no livro Laços de família, começa inadvertidamente, como se os fatos já estivessem em andamento: “Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa”. Aos poucos, ficamos sabendo que a protagonista fora ao Jardim Zoológico para aprender com os animais a odiar, e tinha a intenção de matar. Sobre o motivo da insólita missão temos dois vagos indícios esparsos no texto. O primeiro, quando a narradora descreve brevemente a postura submissa da mulher frente ao namorado ou marido: “tudo estava preso no seu peito. No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão […]”. O segundo, quando, num rápido flashback, ela finalmente toma coragem para dizer a ele que o odiava – “‘Eu te odeio’, disse muito apressada”; no entanto, “não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra”?

A briga do casal desencadeou o ímpeto assassino da mulher. Teria ido ela extravasar tiranamente nos bichos a raiva contida a que não conseguia dar vazão em seu relacionamento amoroso? Não sabemos tampouco por qual motivo ela acredita que a lição de ódio poderia ser aprendida com os animais; por sabê-los só instinto? Seja como for, ela percorre as jaulas uma a uma e, a cada tentativa, se frustra: os leões se lambiam e se amavam lassos; a girafa, tal qual o que é “grande e leve e sem culpa”, era tola e inocente; o “hipopótamo úmido” transmitia um “amor humilde em se manter apenas carne”; na jaula dos macacos, uma mãe dava de mamar ao filho e um macaco velho com catarata a mirava com doçura – a mulher, contrariada, desvia o olhar e foge. O bestiário ainda continua com o elefante, doce, de força esmagadora, mas que não esmaga; o camelo paciente de “cílios empoeirados”, e do quati o olhar infantil e indagador.

Até que a espiral de gradis faz a mulher perder o centro; já não sabe se está fora ou dentro das jaulas. Troca então de posição com o animal e passa de sujeito a objeto: “a testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava”. Em concerto com o comportamento animal, o movimento da natureza só lhe inspirava noções de gratuidade e doação: “tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho”; “por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto […]”. Em volta, tudo se opunha, portanto, a seu desejo de vingança.

Inconformada, caminha a esmo. Quando percebe, está no parque de diversões do Jardim Zoológico, na fila da montanha-russa, atrás de alguns casais de namorados. Chega sua vez e ela ocupa sozinha a cadeira. A situação ordinária deflagra uma relação insuspeita com a moralidade cristã: “parecia estar sentada numa Igreja”. Com a partida do trem, a personagem vive uma experiência física libertadora e sensorialmente vertiginosa (acompanhada formalmente, no texto, pela sequência de orações coordenadas que enumeram, com repetições, reminiscências, gritos e situações):

[…] de repente foi aquele voo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava no nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo automaticamente alegre – o grito das namoradas! – seu olhar ferido pela grande surpresa, a ofensa, ‘faziam dela o que queriam’, a grande ofensa – o grito das namoradas! – a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando, faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta.

Ao rodar no trem da montanha-russa, ela se torna mecânica como a máquina; despersonaliza-se. E perde a referência do chão. Sobre esse aspecto, é oportuno um comentário do escritor italiano Giulio Carlo Argan, no livro História da arte como história da cidade. Ao criticar a obsessão de arquitetos e urbanistas por uma cidade do futuro construída para que a vida ocorresse sobre superfícies elevadas, observa que a relação das pessoas com o espaço e entre si pressupõe o nível do chão como referência humanística. É somente a partir de um plano comum, argumenta, que cada homem ou mulher, no ato de girar em torno do próprio eixo, pode localizar-se, ao mesmo tempo, no centro do mundo e na periferia de seus semelhantes; estes, por sua vez, também centros de si mesmos e periferia dos outros.

A desumanização da personagem provocada pela experiência na montanha-russa pode ser igualmente entendida pela dilaceração do corpo – “foi aquele voo de vísceras”. A fragmentação da imagem do corpo humano – característica de movimentos vanguardistas do início do século XX, como o cubismo e o surrealismo – é expressão de recusa da visão elevada sobre o humano a favor de um baixo materialismo que aceita as forças obscuras da natureza. É o que Georges Bataille qualificou de “mal”, no conhecido livro A literatura e o mal, isto é, a ideia de uma vida desmedida, que se quer intensa e que, por isso, deve ser vivida na transgressão do bem e da moral associados à sua conservação.

Não por acaso, ao fim da experiência violenta na montanha-russa – que a expôs toda! – a personagem é devolvida à terra e à moralidade do chão humanista. Pálida, “fraca e difamada”, como se tivesse sido “jogada fora de uma Igreja”, ela ajeita “as saias com recato”, sem olhar para ninguém, como uma pária. Algo resta, no entanto, que fermenta dentro dela: “o céu lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil”. É justamente na terra difícil – para a qual estende as mãos como um “aleijado pedindo” (ainda mutilada, portanto) – que ela seguirá, transformada pelo mal e por seu aprendizado de ódio junto aos animais. Afinal, revela-se o elo entre amor e ódio:

Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa, a vontade de matar […] não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo, à promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio? o ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? onde aprender a odiar para não morrer de amor?

Na hiper-moral conquistada pela personagem, amor e ódio se igualam em intensidade e se tornam indissociáveis. Até então, ela só sabia suportar, “ter a doçura da infelicidade”. O ódio que tanto almejava era o mesmo que servia de matéria-prima para o seu perdão. Entre rompantes de ação e esmorecimento – o que demonstrava sua desorientação – encosta o rosto quente na fria e enferrujada barra de ferro da grade. O choque de temperatura e as texturas lhe provocam a sensação de ser odiada. Há um renascimento simbólico – “abriu os olhos devagar”, “certa paz enfim”, “de pessoa recém-morta”.

Por fim, chega à jaula do búfalo negro. Fixa o olhar nele – o animal a mira de volta. Atenta aos mínimos movimentos daquele “corpo enegrecido de tranquila raiva”, percebe que está sendo notada e queda absorta. Uma “coisa branca” se alastra por dentro dela – substância que se assemelha à “massa branca” vital comida por G.H. e expelida da barata como fruto maduro do horror, no livro A paixão segundo G.H.. “A morte zumbia nos seus ouvidos” como um sopro aliciador do mal – metáfora da vida vivida no risco. A partir de então, a personagem alcança uma espécie de pureza primordial. Com o rosto “coberto de mortal brancura”, sente dolorosamente o “primeiro fio de sangue negro” escorrer dentro de si: o ódio, enfim. O búfalo está de costas. Ela apanha uma pedra no chão e arremessa para dentro da jaula. Ele se volta para ela e, imóvel, a encara. É quando a mulher declara sua sentença:

Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.

A busca da personagem encontra seu termo no paroxismo: não o “puro amor”, incondicional, da natureza, que faz nascer “entre os trilhos ervas de um verde leve”, mas o amor entre a gente, que, para se realizar plenamente, exige seu revés: o ódio – de acordo com Freud, o afeto humano elementar, a partir do qual o amor se erige como constructo. O ódio também está na base da teoria política de Thomas Hobbes, no Leviatã, quando define a soberania. Segundo sua máxima, o homem, lobo do homem, teme a morte violenta e, por isso, o instinto de autopreservação, subsidiado pelo ódio ao outro, funda o estado regulador da vida coletiva. O amor próprio dá rigor à relação entre iguais. Contudo, é diante do búfalo – numa espécie de solenidade tauromáquica –, e não de outra pessoa, que a personagem se sente, ameaçada e ameaçadora, “presa ao mútuo assassinato”. Esse é o instante em que o ódio irrompe como impulso de autodefesa e ela sente raiva do que pode destruí-la. Ficamos sabendo aqui o motivo para a lição de ódio ter sido buscada no Jardim Zoológico. Se não se pode dar o nome de ódio para o que no animal é meramente instinto, é no chamado instinto animal do homem que reside o ódio. E o conto termina assim: a mulher cai no chão em lenta vertigem. Não se sabe se por morte ou desmaio. Mas não foi a morte – real ou metafórica – o norte desta história de amor?

Notas