Perto de Clarice

IMS, Equipe. Perto de Clarice. IMS Clarice Lispector, 2022. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2022/12/08/perto-de-clarice/. Acesso em: 27 abril 2024.

No dia 10 de dezembro, o IMS Rio celebra o dia do nascimento de Clarice Lispector. Neste ano, iremos apresentar, em única exibição, às 18hs, o filme curta-metragem Perto de Clarice, de João Carlos Horta, de 1982, em nova versão digitalizada, a partir do original em 35mm preservado pelo Centro Técnico Audiovisual (CTAv). 

O filme inicia com a oração fúnebre hebraica e imagens do velório e do enterro de Clarice Lispector, repleto de amigos e familiares, no Cemitério Israelita, um dia após o Shabat do ano de 1977. E termina com Clarice dizendo para a câmera da televisão: “Agora eu morri, vamos ver se eu renasço de novo”. 

Tendo em vista o número expressivo de jovens leitores, traduções em língua estrangeira e estudos dedicados a sua obra, podemos dizer que nesses 45 anos que se seguiram à sua morte, Clarice vem renascendo – “de novo” – muitas vezes. No próximo dia 10, mais uma vez, o Hora de Clarice será celebrado em várias partes do mundo, em sua memória. A escritora completaria 102 anos. 

Durante os doze minutos do curta-metragem, em torno da presença, em imagem e som, de Clarice (em raro registro audiovisual para a TV Cultura meses antes de sua morte) se juntam depoimentos em off de amigos como Hélio Pellegrino, Nélida Piñon e do filho Paulo Gurgel Valente; leituras de trechos de sua obra por Ana Cristina Cesar; tomadas do Leme, bairro onde a autora viveu e morreu no Rio de Janeiro. Esses e outros fotogramas emocionalmente pontuados, aqui e ali, pela música de Chopin e pelo canto de Caetano Veloso. 

Após a exibição do filme, haverá uma conversa entre a escritora Heloisa Buarque de Holanda, que esteve envolvida na realização do filme e é viúva do diretor, e Teresa Montero, autora da mais recente biografia da escritora, À procura da própria coisa (Rocco, 2021), intermediada pelo consultor de literatura do IMS, o poeta Eucanaã Ferraz. 

Notas

Clarice na rede de Princeton

IMS, Equipe. Clarice na rede de Princeton. IMS Clarice Lispector, 2022. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2022/12/08/clarice-na-rede-de-princeton/. Acesso em: 27 abril 2024.

IMS: O que é o Brazil LAB e desde quando existe?

João Biehl: O Brazil LAB é uma iniciativa interdisciplinar da Universidade de Princeton que considera o Brasil um nexo crucial para entendermos as questões mais prementes da atualidade. Sediado no PIIRS (Instituto de Estudos Internacionais e Regionais de Princeton), o LAB reúne professores(as), pesquisadores(as) e estudantes de mais de 20 diferentes departamentos da universidade (das ciências sociais às naturais, das engenharias às artes e humanidades) em interação com dezenas de pesquisadores(as) de instituições acadêmicas de excelência (como o Museu Nacional, a USP e o CEBRAP), assim como também de entidades de pesquisa sem fins lucrativos no Brasil (por exemplo, MapBiomas, Imazon, Igarapé, Serrapilheira e o próprio Instituto Moreira Salles, entre outros).

Os estudos do Brazil LAB se voltam a temas como a mudança climática e os tipping points amazônicos, desigualdades e o legado da escravidão, a fragilidade democrática e as formas emergentes de mobilização social e expressão cultural. De modo iterativo, nossas pesquisas são marcadas pela crítica às hegemonias e pelo cruzamento de múltiplas tradições intelectuais, com atenção especial a perspectivas historicamente marginalizadas na academia. 

IMS: Como surgiu a ideia da nova plataforma e como faz para acessá-la?

João Biehl: O projeto teve início no centenário de Clarice Lispector, em 2020, com uma série de eventos, a começar pelo lançamento da biblioteca sonora Clarice 100 Ears, idealizada pela crítica literária Marília Librandi. 

Marília Librandi: A partir da expressão “escrita de ouvido”, lançamos a pergunta “O que Clarice sussurra ao seu ouvido?”, e criamos esse jogo sonoro, em inglês, entre 100 years/100 ears. A plataforma apresenta artistas, estudiosos e apreciadores da obra clariceana, no Brasil e ao redor do mundo, lendo suas passagens favoritas em múltiplas línguas. A homenagem sonoro-auditiva ao centenário também resultou em um concerto musical, “Agora Clarice”, com Beatriz Azevedo e Moreno Veloso, acompanhados pelos músicos Jaques Morelenbaum ao violoncelo e Marcelo Costa na percussão, e com participação de Maria Bethânia interpretando textos de Clarice. Lançado em vinil, apresenta a canção inédita, “Amar não acaba” inspirada nos textos de Clarice Lispector.

João Biehl: Essa iniciativa conseguiu reunir uma série de pessoas das mais variadas nacionalidades, que registraram em áudio belas leituras de textos da escritora (alguns inclusive traduziram textos para sua língua nativa, como o hindu). Isso nos permitiu estabelecer um maravilhoso acervo que hoje conta com gravações em idiomas como, além do português, inglês, francês, espanhol, alemão, e até mesmo ucraniano, língua materna da escritora. 

O entusiasmo com que o projeto foi recebido por pesquisadores e artistas – escritores, músicos e atores e atrizes – nos fez ver quão importante e bonito seria ampliá-lo ainda mais, fazendo com que pudesse alcançar um número ainda maior de pessoas no Brasil e no exterior. O primeiro a nos presentear com uma linda leitura em vídeo de um texto de Clarice foi Chico Buarque, que através do convite do nosso colega Pedro Meira Monteiro, diretor do Departamento de Espanhol e Português de Princeton, gravou a crônica “As águas do mar”, do livro Onde estivestes de noite, de 1974. Nesse mesmo livro, Clarice publicou uma carta que recebeu de Fernanda Montenegro, o que nos deu a ideia de convidá-la a também realizar uma leitura. Fernanda gostou tanto do convite, que nos pediu alguns meses de prazo, pois queria se dedicar a novos estudos da obra de Clarice, o que mostra a seriedade e a entrega que fazem Fernanda Montenegro ser a artista que é, além de demonstrar uma emocionante devoção e respeito pela literatura clariceana. 

Nos contatos com Fernanda Montenegro, falamos também com Fernanda Torres, que igualmente nos surpreendeu imensamente. Em vez de um pequeno trecho de “O ovo e a galinha”, Fernanda Torres decidiu interpretar todo o texto, lindamente, como se fora uma peça teatral. A partir daí, fomos reunindo homenagens fabulosas de atores como Lázaro Ramos, Rodrigo Santoro, Zezé Motta – que hoje vive no apartamento onde Clarice morou no Rio –, entre tantos outros atores que estão em nossa plataforma clarice.princeton.edu. Ela está aberta a todos que queiram conhecer essa emocionante homenagem, assim como será um imenso prazer receber novas contribuições em nossa biblioteca sonora. As pessoas interessadas em reunir sua voz a esse acervo só precisam acessar a seção 100 Ears e nós entraremos em contato.

IMS: Clarice Lispector é lida nos Estados Unidos? Como é sua recepção junto ao público e aos estudiosos nos EUA e em língua inglesa?

Marília Librandi: Clarice, hoje, faz parte do mainstream dos grandes escritores mundiais celebrados nos Estados Unidos. Resenhas sobre seus livros foram publicadas nos periódicos de maior prestígio, como New York Times e Los Angeles Review of Books, entre muitos outros. Clarice hoje é presença constante também nas pesquisas de doutorado nos Departamentos Literatura Comparada, e de Espanhol e Português, em língua inglesa. Esse ano foi lançado o volume After Clarice: Reading Lispector’s Legacy in the Twenty-First Century, organizado por Adriana X Jacobs e Claire Williams, a partir de colóquio realizado na Universidade de Oxford, na Inglaterra. Meu livro, Writing by Ear. Clarice Lispector and the Aural Novel (2018), acaba de ser considerado um dos seis estudos mais importantes, em língua inglesa, sobre a escuta na literatura de Lispector (cf. Tamara Mitchell, em resenha publicada no Latin American Reseach Review, 2022).A biografia escrita em inglês por por Benjamin Moser, publicada em 2009, e as novas traduções de seu trabalho pela editora New Directions, alcançaram sucesso tanto de crítica quanto de público. As tradutoras Alison Entrekin, Idra Novey, Katrina Dodson, junto com Johnny Lorenz, Stefan Tobler, contribuíram muito para essa expansão. Outros livros em inglês dedicados a Clarice são Examining Whiteness: Reading Clarice Lispector Through Bessie Head and Toni Morrison (2011), de Lucia Villares, Encounter Between Opposites in the Works of Clarice Lispector (2006), de Claire Williams, Closer to the Wild Heart: Essays on Clarice Lispector (2002), coeditado por Claire Williams e Cláudia Pazos Alonso. Todas as outras monografias sobre Clarice em inglês foram publicadas há mais de uma década, entre elas: Passionate Fictions: Gender, Narrative, and Violence in Clarice Lispector (1994), de Marta Peixoto, e Sexuality and Being in the Poststructuralist Universe of Clarice Lispector: The Différance of Desire (2001), de Earl E. Fitz.

IMS: Quem são as pessoas à frente da nova plataforma?

João Biehl: No Brazil LAB, trabalhamos de forma interdisciplinar e intergeracional, com atenção especial para a inclusão de especialistas do Brasil, com os quais mantemos uma relação de reciprocidade e iteração constante. Assim, nesse grande time que reúne professores, pesquisadores e estudantes de diversas áreas e diferentes países, temos a professora Marília Librandi, que deu o pontapé inicial e coordenou o projeto comigo, e três co-organizadores: Miquéias Mügge e Rodrigo Simon, ambos pesquisadores do Brazil LAB, além de Sérgio Bairon, Professor da Escola de Comunicação e Artes da USP. Toda a criação e desenvolvimento do site foi comandada pelo designer Pietro Domiciano. E contamos ainda com o trabalho e entusiasmo de três doutorandos de Princeton, um do Departamento de Antropologia e dois do Departamento de Espanhol e Português: Nikhil Pandhi, Oriele Benavides e Jonathan Romero. A organização geral, conectando todas as áreas, foi de Heloísa Krüger, doutoranda no Departamento de Português e Estudos Brasileiros na Universidade Brown, aqui nos Estados Unidos.

IMS: Poderia citar alguns destaques do conteúdo da nova plataforma?

João Biehl: Ficamos felizes de reunir nessa plataforma um impressionante volume de mais de 300 horas de material sobre Clarice Lispector. Para além das emocionantes interpretações de artistas renomados (tais como Regina Casé, Estêvão Ciavatta, Andréa Beltrão, Mariana Ximenes, Miguel Fallabela) na seção Clarice Convida, ela traz uma empolgante reunião de personalidades das mais diversas áreas em 100 Ears, onde é possível ouvir, por exemplo, textos de Clarice nas vozes de nomes como o artista visual Jaider Esbell, as antropólogas Lilia Schwarcz e Aparecida Vilaça, a atriz Camila Morgado, a escritora Idra Novey, e o economista Paulo Valente Gurgel, filho mais jovem de Clarice. 

Por fim, queria também destacar o trabalho do designer Pietro Domiciano, que para desenvolver a plataforma fez um incansável trabalho em um mergulho profundo na literatura e na arte clariceana. Cada elemento do site foi detalhadamente pensado para que estivesse à altura de sua obra. A começar pelas fontes utilizada nos textos e títulos, passando pelas cores de cada seção (inspiradas pelos tons de seus quadros), até detalhes bastante sutis que remetem a textos específicos, como é o caso da estrela de mil pontas, de A hora da estrela, e os formatos ovalados, em homenagem ao conto “O ovo e a galinha”. Os sons utilizados no site foram pensados levando em conta a máquina de escrever de Clarice, que segundo seu filho Paulo, remetiam também ao barulho da chuva caindo.

IMS: Quais outros eventos o Brazil LAB já organizou em anos anteriores?

João Biehl: Em 2020, em parceria com o Lewis Center, o Brazil LAB organizou o Clarice 100 Year: A Tribute to Her Life and Work. Na ocasião, tivemos a honra de receber, além de Paulo Gurgel Valente em um emocionante depoimento sobre sua mãe, os tradutores Idra Novey (Princeton), Johnny Lorenz (Montclair) e Kadrina Dodson (Columbia) em uma conversa comigo e com Marília Librandi. A vencedora do Prêmio Pulitzer de Literatura Jhumpa Lahiri também nos brindou com a palestra “Uma estrela de cinco pontos para Clarice”. Por fim, tivemos o Now Clarice: A Musical Celebration, concerto de Moreno Veloso e Beatriz Azevedo, que para além da beleza poética e musical ainda nos permitiu o privilégio de contar com a icônica Maria Bethânia lendo trechos da obra de Clarice Lispector.

Em nossos esforços de descolonizar as artes, temos vários projetos em andamento, incluindo Espalhe Lima Barreto (em parceria com a Companhia das Letras) e Poéticas Amazônicas, que conta com a participação de Denilson Baniwa. Estamos também apoiando eventos relacionados exibição The Yanomami Struggle, de Cláudia Andujar e artistas indígenas da Amazônia, que acontecerá entre fevereiro e abril de 2023 no The Shed, em Nova Iorque, e é coordenada por Thyago Nogueira, do IMS.  

IMS: Qual resultado vocês pretendem ter com a publicação da nova plataforma?

João Biehl: A plataforma Clarice busca ampliar modos de contar, traduzir e disseminar a vida e a obra de Clarice Lispector, uma das maiores escritoras do século XX. Com colaborações criativas e engajamento de um público diverso, seus romances, contos e crônicas agora habitam novos espaços e ganham mais vozes, e como diria Marília Librandi, “uma escuta criativa”. Essa homenagem do Brazil LAB segue como um apelo pela singularidade e infinitude do legado de Clarice, que continua a multiplicar comunidades leitoras. Celebrar sua vida e obra é, pois, um meio um meio de acolher todas as imigrantes, todas as línguas e todos os silêncios e lutas de diferentes lugares desse planeta à deriva.

Notas

Crônica de um patrimônio que precisa ser preservado

Ferraz, Augusto. Crônica de um patrimônio que precisa ser preservado. IMS Clarice Lispector, 2022. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2022/12/08/cronica-de-um-patrimonio-que-precisa-ser-preservado/. Acesso em: 27 abril 2024.

Eu morri. Descobri isso quando, um dia, na calçada da Praça Maciel Pinheiro, ergui a cabeça, abri os olhos e avistei-me morto, ali, na calçada da praça, o sobrado do outro lado da rua. Meu coração despedaçado dentro do peito, o sobrado da rua do Aragão, 387, onde, no segundo andar, Clarice Lispector viveu uma infância feliz, aqui no Recife, apesar das dores do mundo e de viver e sentir, principalmente, as dores de uma doença implacável que um dia arrancaria Mania, a sua mãe, de perto de si. Descobri isso quando, estirado ali na calçada, sob o sol de um domingo abrasador, voltei a cabeça para minha direita, e avistei um homem ao meu lado, que também olhava o sobrado. Não sei se era um morto nem sei se vivo ele era. Vestia umas roupas esmolambadas. Aquela criatura fabulosa, ajoelhada ao meu lado, olhava o sobrado. Olhava o sobrado, onde morara Clarice na sua infância, e, sem sequer imaginar, via o sobrado de Clarice, via o sobrado que ele nunca tivera e onde ele jamais poderia habitar, ele só olhando o sobrado de Clarice e querendo-o para si, os olhos duas contas de lágrimas no seu rosto: no sobrado, ele via um naco de pão. Um naco de pão, o sobrado de Clarice ao menos é, para saciar a fome de um homem faminto. Um naco de pão, o sobrado de Clarice ao menos é, para saciar a fome de um povo faminto. Um povo cintilante. Como uma estrela. Um naco de pão, o sobrado de Clarice ao menos é, para recompor o meu despedaçado coração e fazê-lo voltar a pulsar com alegria dentro do peito. Eu preciso do meu coração! Quem não precisa de um coração? Até os que não têm coração precisam de um para viver! Eu quero o coração de Clarice de volta à vida, nem que precisem retirar o despedaçado sobrado da Praça Maciel Pinheiro da vala onde ele jaz a céu aberto. Não há dinheiro no mundo que pague essa pequena ressurreição, nem na terra onde a grande escritora pernambucana se fez Clarice Lispector, literalmente? A hoje Patrona da Literatura de Pernambuco? Há. Eu sei que há. Todo dinheiro do mundo é pouco para se pegar um prédio carcomido pelo descaso humano e juntar-lhes os pedaços todos, removê-lo das cinzas, e simplesmente entregá-lo ao povo do Recife, de Pernambuco, do Rio de Janeiro, de Alagoas, do Brasil e do mundo, devolvê-lo em forma de pão para saciar a fome de todos, sejam ricos ou pobres. Nenhum povo é suficientemente rico ou pobre para desprezar sua própria fome. “Nem só de pão viverá o homem”, é o ensinamento de Jesus. A própria Clarice mirou-se na leitura da “Imitação de Cristo”, livro milenar, atribuído a Tomás Kempis, para se construir ela própria Clarice e, assim, inteira, ser. Toda a fome é permanente e necessita ser saciada a cada momento. A conta-gotas e diariamente. E não precisamos que uma guerra da Ucrânia exploda no Recife, a hoje despedaçada Ucrânia, onde numa breve passagem da sua vida a escritora nasceu, e justo no centro da Maciel Pinheiro, para sabermos que essa tragédia não pode acontecer! Clarice está viva, a sua infância, intocada, e em 1976, exatamente nos dias 19 e 20 de maio, ela passeou com Olga Borelli e comigo, naquela mesma calçada da praça Maciel Pinheiro, para rever o sobrado da rua do Aragão e, em silêncio, sozinha, dentro de si mesma, como um milagre, subir a íngreme escada daquele sobrado para, na sua mais completa solidão, reabrir a porta de sua casa e entrar para, lá de dentro, só sair com “A hora da estrela” nas mãos para entregá-lo aos seus semelhantes. Em fins de setembro ou outubro de 1976, eu, então ansioso, por telefone, aqui do Recife, como costumava fazer, falei com Clarice e ela, de seu apartamento, no Leme, mastigando os erres lindíssimos de sua língua presa, entre sorrisos, me dera a notícia mais esperada que já pude ouvir: Augusto, acabo de escrever uma novela! Então a sua vinda ao Recife foi mesmo proveitosa, não foi? devolvi-lhe eu, sem poder me conter. E ela: Fooiiiii. O pretérito perfeito do indicativo do verbo ser nunca fora tão longo e feliz, saudoso dos erres, marcas indeléveis de sua língua presa. A amiga falara com a voz quase embargada, alegre, pois desde minhas constantes visitas à sua casa, no Leme, eu sabia da empreitada e dela participei. Na conversa que veio a seguir, Clarice me revelou, com rápidas pinceladas, a partir dos treze títulos da obra, um esboço de Macabéa e de sua hora, que ela a todos entregou, em 1977, pouco antes da sua própria hora: aos homens mulheres crianças jovens idosos aos famintos de pão e de saber, aos famintos, sem exceção. E ela humildemente escreve, em dado momento de sua criação: “Eu não inventei essa moça. Ela forçou dentro de mim a sua existência.” Doação é um dos nomes pelo qual Clarice atende. Desde o nosso primeiríssimo contato, por telefone, num distante janeiro de 1974. Quando uma estrela dentro de Clarice brotara madura para nunca mais apagar. Da humanidade da amiga eu soube já a partir do som de sua voz. Meu Deus, como Clarice é bela! Clarice Lispector é uma Casa! Um Centro de Cultura, no coração do Recife!

Notas