“Eu, Bruxa?”

Stigger, Veronica. "Eu, Bruxa?". IMS Clarice Lispector, 2024. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2024/05/27/eu-bruxa/. Acesso em: 22 dezembro 2024.

Em janeiro de 1975, Clarice Lispector recebeu uma carta-convite, assinada por Simón González, empresário, político e místico colombiano, convidando-a a tomar parte no Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria, que seria realizado entre 24 e 28 de agosto daquele mesmo ano em Bogotá, na Colômbia. Tratava-se de carta padrão, escrita em inglês, enviada para todos os convidados, com um mesmo endereçamento: “Caro amigo do Desconhecido”. Descrevia, brevemente, os objetivos do evento, que não se restringiria à bruxaria, mas abordaria também outros “tipos de interesse pelo incomum”: “reunir pessoas de todas as esferas da vida profundamente interessadas no estudo dos poderes interiores do homem e das forças ocultas do universo para além do alcance dos cinco sentidos”.1 Entendia-se, portanto, “bruxaria” (brujería) em sentido largo e derivativo, o que fica ainda mais evidente na passagem da carta em que González se refere ao campo de atuação dos destinatários: “seja seu campo de pesquisa a bruxaria ou a parapsicologia, a astrologia ou a alquimia, a magia antiga ou a feitiçaria moderna, a percepção extra-sensorial ou qualquer outro dos inúmeros meios através dos quais homens e mulheres se tornam conscientes não apenas das capacidades normalmente inexploradas dentro de si, mas também de uma realidade pulsante além dos seus sentidos, e de reinos místicos de amor, alegria e poder nunca alcançados pelos incrédulos”. Afinal, dizia ainda a carta, justificando a realização do congresso: “O universo está cheio de mistérios fascinantes, e os homens e as mulheres devem estar abertos a eles, preparados para mergulhar profundamente neles e assim chegar a uma compreensão mais sutil e a um amor mais pleno pela vida”.2 Não temos acesso às cartas escritas por Clarice Lispector acerca do congresso, mas sabemos que ela respondeu afirmativamente ao chamado em duas correspondências: uma datada de 31 de janeiro e outra de 2 de março de 1975.3 Em entrevistas, Clarice comentou que recebeu, logo depois da carta, um telefonema internacional, confirmando o convite.4 

Programa do Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria, Bogotá, Colômbia, 1975.

Mas por que Clarice Lispector foi convidada para o Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria? Segundo Teresa Montero e Lícia Manzo, o convite para o evento em Bogotá decorreria da participação da escritora no IV Congreso de la Nueva Narrativa Hispanoamericana, realizado no ano anterior, também na Colômbia, mas em Cáli, entre os dias 14 e 17 de agosto.5 Clarice foi acompanhada de sua amiga Lygia Fagundes Telles, e ambas, ao lado de Walmir Ayala, participaram, no congresso de narrativa, da mesa-redonda acerca da literatura brasileira que lhes era contemporânea.6 De fato, em carta a Clarice falando de sua participação no Congresso de Bruxaria, o escritor colombiano Pedro Gómez Valderrama menciona que um amigo comum aos dois, o também escritor Gustavo Álvarez Gardeazábal, já o havia alertado sobre o desejo que ela tinha de comparecer ao evento.7 Gardeazábal havia sido presidente do IV Congreso de la Nueva Narrativa Hispanoamericana.

Clarice teria dito algo nesse congresso de 1974 que pudesse indicar alguma relação sua com a bruxaria? Lygia Fagundes Telles, na entrevista gravada em  vídeo em 2005, por ocasião da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP)8, quando Clarice foi a escritora homenageada, lembrou que a amiga, instada pela plateia, havia falado sobre Perto do coração selvagem, enquanto ela própria havia se detido em seu romance As meninas. Em princípio, portanto, nada indicava que Clarice houvesse abordado algo que poderia ser associado à bruxaria. 

A pergunta então talvez pudesse ser outra: o que os organizadores do evento teriam visto de bruxaria em sua obra? Em sua extensa biografia acerca de Clarice Lispector, recentemente revista e ampliada, Teresa Montero lembra que, em dezembro de 1966, o crítico literário Emir Rodríguez Monegal, num texto sobre a escritora publicado em Mundo Nuevo, revista fundada por ele em Paris, refere-se a ela nesses termos: “Devido a seu enfoque sobre o todo mitológico, ela é mais uma feiticeira [hechicera] do que uma escritora. Seus livros revelam o incrível poder das palavras que trabalham sobre a imaginação e a sensibilidade do leitor”.9 

Já havia, portanto, à época da realização do Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria, um certo halo de mistério construído em torno não apenas da escrita de Clarice, mas de sua própria pessoa. Não por acaso, Simón González abre a carta que dirige a ela em 8 de julho de 1975, para tratar de assuntos práticos (como passagens e hospedagem em Bogotá durante o congresso), desse modo: “Antes de conhecê-la, quando lia seus livros, ia formando a imagem da pessoa que os escrevia. Ao encontrá-la no Rio de Janeiro, se confirmaram minhas suspeitas: só uma pessoa com esses olhos cheios de beleza, magia e profundidade podia tê-los escrito”.10 Ao comentar a participação de Clarice no evento, o Jornal do Brasil seguiu nessa linha: “com sua força interior compulsiva produzindo no papel mais magia nas pessoas do que qualquer objeto feiticeiro – talvez seja a que mais cause reação no Congresso”.11 Ao descrever o traje com o qual Clarice supostamente havia chegado à capital colombiana, Mário Pontes, repórter enviado por esse mesmo jornal para Bogotá, deu à mitologia que se criava em torno dela uma imagem: “[Clarice] desembarcou totalmente vestida de preto, com muitos amuletos pendentes do pescoço”.12 Clarice negou veementemente, em mais de uma ocasião, que estivesse trajada desse modo. Para Isa Cambará, disse que “o repórter que a viu vestida estranhamente e cheia de amuletos só pode ter sido vítima de uma vista doente, de imaginação em excesso ou má-fé, mesmo”.13 Ignácio de Loyola Brandão, à época editor da revista Planeta e um dos jornalistas brasileiros que viajaram a Bogotá para a cobertura do evento (sua reportagem foi publicada no número especial de outubro de 1975, na qual, curiosamente, não é citada a participação de Clarice Lispector)14, comentou que, anos depois, Lygia Fagundes Telles teria lhe dito sobre Clarice: “Quando falava, ela era iluminada. Ela era possuída”.15

Carta enviada a Clarice Lispector por Simon Gonzalez, em 8 de julho de 1975.

E Clarice? O que ela própria pensava a respeito desse convite? Ao Diário de Notícias, um dos primeiros periódicos a noticiar sua participação no Congresso de Bruxaria, em 20 de maio de 1975, ela foi taxativa: “Nunca fiz bruxaria e nem creio ter sido vítima de alguma”. Quanto ao convite, afirmou que o havia aceito por curiosidade: “vou para olhar e ouvir”.16 Declaração que repetiria ao Jornal do Brasil menos de um mês depois.17 A este periódico, acrescentou, evocando a justificativa para a realização do evento que estava na primeira carta-convite recebida: “O Congresso fala de desenvolvimento das forças ocultas e tudo o que é oculto me atrai. Depois, trata-se de magia branca18, nenhum mal pode sair daí, você não acha? Atualmente essa história de bruxaria está no ar. É como se retomássemos, de repente, algum elo perdido desde a Idade Média. Na verdade, estou apenas curiosa, sem levar nada muito a sério, sem esperar grandes revelações. Vou falar – dizem que fui a única escritora brasileira convidada – sobre a magia na literatura. O problema é que estão esperando muito de mim, e eu acho que não tenho muito a dar”.19

O Jornal do Brasil contava ainda ter encontrado Clarice “assustada e doce como sempre”. Quanto ao susto, não era para menos: o congresso prometia ser gigantesco. A reportagem, baseada em conversa com o organizador do encontro, Simón González, dizia que eram esperadas três mil pessoas vindas do exterior, além de 300 mil colombianos. González afirmava ainda contar com a participação de, entre outros, Salvador Dalí, além de alegadamente já estar em contato com Jorge Amado. No texto do Diário de Notícias mencionado há pouco, falava-se ainda da participação de Federico Fellini, Gabriel García Márquez e Carlos Castañeda.20 O mesmo Diário de Notícias, às vésperas da realização do congresso, garantia que este incluiria, em sua programação, “uma dissertação do diretor cinematográfico Michelangelo Antonioni sobre ‘filmes e bruxarias’”.21 A revista Manchete, de 30 de agosto, por sua vez, naquela que talvez tenha sido a reportagem mais completa sobre o evento, ocupando seis páginas bastante ilustradas, informava da participação de várias personalidades, como Uri Geller e os já citados Castañeda, Fellini, García Márquez e Antonioni. Iriam também o industrial João Melo da Costa, acompanhado de seu advogado Jorge de Oliveira Beja, a fim de tentar descobrir o mistério do sequestro de seu filho Carlos Ramires da Costa, de 10 anos, o Carlinhos, desaparecido de sua casa no bairro de Santa Teresa, no Rio e Janeiro, desde 1973, um caso que nunca foi resolvido e até hoje ainda se cerca de mistério.22 

Uma das ideias do evento era entrar em contato com espíritos, como os de John Kennedy, Papa “Doc”, Perón, Hitler, Noé e Messalina.23 A reportagem do Diário de Notícias de 20 de maio se encerrava também registrando o espanto de Clarice com a magnitude que o congresso estava adquirindo: “Quando aceitei o convite, pensava que ia ser uma modesta reunião de algumas pessoas em torno de um assunto que desperta a curiosidade de todo mundo, mas agora estou quase assustada: a ideia de encontrar García Márquez e Fellini dá mais responsabilidade a essa reunião e maior amplitude”.24 De todos os referidos pelos jornais, só Uri Geller esteve presente e foi a principal atração – cabendo a Clarice Lispector ser a segunda maior atração.25 Passou também pelo congresso João Melo da Costa, o pai de Carlinhos, não como convidado, mas por conta própria.26 Castañeda não foi, mas suas experiências foram abordadas pelo parceiro e colega de universidade, o antropólogo inglês Douglas Richard Price-Williams, que apresentou uma série de experiências realizadas com o amigo a respeito da transmissão telepática por meio dos sonhos.27 Sua conferência, diga-se de passagem, foi ministrada imediatamente depois da de Clarice Lispector, na terça-feira, dia 26 de agosto. 

Em 17 de agosto, o Diário de Notícias, que vinha acompanhando o desenrolar dos preparativos para o congresso, publicou uma grande reportagem de Ubiratan Teixeira, em que este entrevistava alguns dos convidados, entre os quais Clarice Lispector, é claro. Para a escritora, perguntou: “Por que você foi convidada, Clarice?”. Dessa vez, ela não titubeou em responder: “Não tenho a mínima ideia”. Em seguida, acrescentou, referindo-se à viagem do ano anterior: “Mas o convite me encheu de honra e orgulho: aceitei logo. Além de ser uma chance de eu voltar a visitar a Colômbia, um país encantador, vou estar em contato com o mundo do sobrenatural. Isso para um escritor é muito bom”.28 Mais adiante, na mesma entrevista dada em seu apartamento no Leme, diante de um cartaz do Congresso de Bruxaria afixado na parede da sala, aventou uma hipótese para ter recebido o convite: “Sabe, talvez seja por causa de um comentário curioso que um crítico sul-americano fez certa vez sobre minha literatura. Ele escreveu que eu era ‘una bruja’ na literatura. Achei aquilo estranhíssimo mesmo. Eu, ‘bruja’? Bruxa? Mas depois tive ocasião de encontrá-lo e, então, ele esclareceu rindo. ‘Si, la señora escribe con magia. Es una mágica de las letras’”.29 É possível que Clarice Lispector estivesse aqui se referindo a Monegal, uruguaio. Afirmou ela ainda: “Concordo que o escritor, de um modo geral, tenha inclusive algo de bruxo, de mágico. Isso é evidente!”.30 

Dessa vez, foi o repórter que assinalou uma atenção maior dada à magia naqueles dias ao indagar-lhe: “Mas você não acha que está havendo um interesse muito exagerado dos artistas e dos intelectuais pela bruxaria, como tema de suas obras?”.31 Ao que Clarice respondeu, retomando a ponte que traçara em outra ocasião entre o atual interesse pela magia e o Medievo: “Sabe? É moda. E é uma moda que nunca deixou de existir desde a Idade Média. A alquimia foi assunto largamente explorado pelos escritores, a caça às bruxas da Europa no século XVII e na época de McCarthy nos Estados Unidos foi tema de contos e romances. O assunto foi, é e continuará sendo moda no futuro”.32 Lá para o final da entrevista, Clarice voltou uma vez mais à pergunta inicial com um único comentário: “Sabe que é mesmo curioso eu ser considerada mística?”.33 

Na grande reportagem da revista Manchete, num comentário de passagem, Ib Teixeira também havia destacado esse interesse da época: “O bebê de Rosemary, O exorcista e a obra literária de Carlos Castañeda e García Márquez – hoje muito populares na Europa – talvez tenham contribuído para esse surto de bruxaria”.34 Curiosamente, no conto “Onde estivestes de noite”, do livro homônimo de Clarice Lispector publicado no ano anterior ao congresso, em 1974, a personagem-jornalista comenta com sua amiga por telefone: “Cláudia, me desculpe telefonar num domingo a esta hora! Mas acordei com uma inspiração fabulosa: vou escrever um livro sobre Magia Negra! Não, não li o tal do Exorcista, porque me disseram que é má literatura e não quero que pensem que estou indo na onda dele”.35 É esse mesmo conto, aliás, que discorre sobre um estranho ritual, do qual participam várias pessoas e é comandado por um ser andrógino.

Desde suas primeiras declarações aos jornais a respeito de sua participação no congresso, Clarice vinha transferindo o foco da “bruxaria” para a “magia”, sendo esta última relacionada não ao que poderia haver de sobrenatural no mundo, mas ao que havia de natural. Àquela primeira reportagem do Diário de Notícias, ela já havia dito: “Tudo é muito misterioso, mas não creio que prove o mistério e creio mesmo que tudo no fundo é mágico. Para mim a chuva caindo é mágica da natureza. Não busco a magia no sobrenatural: encontro-a dia a dia nos chamados fenômenos naturais”.36 Essa seria a visão adotada a partir daí e que se explicitaria no texto escrito em inglês para ler no congresso, intitulado “Literatura e magia”, em que começa relacionando magia e fenômenos naturais quase nos mesmos termos da declaração dada ao jornal: “Tenho pouco a dizer para uma plateia exigente. Mas vou dizer uma coisa: para mim, o que quer que exista, existe por algum tipo de mágica. Além disso, os fenômenos naturais são mais mágicos do que os sobrenaturais”.37 Em seguida, exemplificava a afirmação rememorando uma violenta tempestade que havia presenciado cerca de dois meses antes no Rio de Janeiro. 

Clarice acabou não apresentando esse texto no congresso, mas, no lugar dele, preferiu ler seu conto “O ovo e a galinha”, que havia sido publicado em A legião estrangeira, em 1964. Para introduzir a leitura do conto (“que é misterioso mesmo para mim mesma e tem uma simbologia secreta”)38, preparou um texto breve de apresentação, em que, dessa vez, associava a “magia” ao inconsciente, não apenas individual, mas também coletivo: “Eu tenho pouco a dizer sobre magia. Na verdade, eu acho que nosso contato com o sobrenatural deve ser feito em silêncio e numa profunda meditação solitária. A inspiração, em todas as formas de arte, tem um toque de magia porque a criação é uma coisa absolutamente inexplicável. Ninguém sabe nada a propósito dela. Não creio que a inspiração venha de fora para dentro, de forças sobrenaturais. Suponho que ela emerge do mais profundo ‘eu’ de uma pessoa, do mais profundo inconsciente individual, coletivo e cósmico.”39

Clarice Lispector ao lado de Simon Gonzalez no Primeiro Congresso Mundial de Bruxaria, Bogotá, Colômbia, 1975.

Clarice reforça aí o que já havia sugerido em entrevistas por conta do convite para o Congresso de Bruxaria: toda criação artística teria algo de mágico e misterioso. Todo escritor teria então, por consequência, algo de bruxo. Não esqueçamos que a narradora de Água viva, quando diz conhecer uma “outra vida”, que “é uma vida de violência mágica”, se descreve assim: “eu sou a feiticeira dessa bacanal muda”.40 A propósito da ligação entre literatura e bruxaria, como não recordar também o apelido que Moysés Vellinho deu a Machado de Assis, “bruxo do Cosme Velho”.41 O apelido se popularizou com o poema “A um bruxo, com amor”42, de Carlos Drummond de Andrade, a ponto de atribuírem sua formulação ao poeta, que chegou a escrever um texto para restabelecer a verdade.43 Drummond, aliás, em outro poema, “Quintana’s bar”, imagina um encontro com o poeta gaúcho, que, num dado momento, o leva a voar “à garupa da bruxa estranha” e, do alto, aponta casas: “a de Rimbaud, a de Blake, e a gruta camoniana”.44 Termina dizendo: “Signos criptográficos ficam gravados no céu eterno – ou na mesa de um bar abolido, enquanto, debruçado sobre o mármore, silenciosamente viaja o poeta Mário Quintana”.45 Viajar, imaginar: nisso consiste esse voo nas costas de uma bruxa.

Voltando ao congresso, Domingos Meirelles, enviado especial do jornal O Globo a Bogotá, deu a entender que, se Clarice não leu “Literatura e magia”, pode ter mencionado alguns aspectos levantados pelo texto: “Clarice falou sobre as suas experiências pessoais no campo da Parapsicologia, descreveu sua obra literária e terminou a sessão com a leitura de um de seus contos fantásticos, ‘A galinha e o ovo’ [sic], muito apreciado pelos congressistas”.46 A única foto que ilustra a reportagem de Meirelles mostra Clarice Lispector, de óculos, lendo num papel que tem às mãos, ao lado de Simón González, que a observa. A colombiana Alegre Levy, por sua vez, responsável pela cobertura do congresso para El Tiempo, de Bogotá, destacou o que parece ter sido uma perfomance associada à leitura – que ela mesma não viu com muita simpatia: “Clarice Lispector, escritora ucraniana residente no Brasil, pôs a bocejar o auditório com uma complexa conferência intitulada ‘O ovo e a galinha’, na qual uma galinha foi lançada ao ar várias vezes enquanto um bailarino comia um ovo cru no chão”.47 Ignácio de Loyola Brandão, que, conforme já mencionei, esteve presente ao evento, disse não lembrar de tal performance. Mas recordava da reação da plateia à leitura: “Em silêncio respeitoso, as pessoas – cerca de quinhentas – olhavam para Clarice atentas e, quando terminou, os aplausos foram num crescendo”.48 Isa Cambará, que não esteve no congresso, mas entrevistou Clarice logo depois de sua volta de Bogotá, registrou: “Sua participação no congresso – que se resumiu na leitura de um de seus contos, ‘O Ovo e a Galinha’ – teria sido vaiada, segundo alguns, aplaudida, segundo outros. De acordo com uma terceira versão, os brasileiros presentes se teriam retirado, em protesto contra a presença de uma escritora num encontro de ‘bruxos’”.49 

Em texto para um jornal colombiano, o escritor e cineasta Alberto Duque Lopez é quem dá mais detalhes sobre a leitura do conto da “romancista e mentalista brasileira Clarice Lispector sobre o ovo, seu papel como elemento mágico e a influência que exerceu sobre a vida e a obra da artista” e sobre a reação da audiência. Pelo que relata, Clarice não teria lido ela mesma o conto, mas, sim, o intérprete – o que nos leva a supor que a fotografia antes mencionada, em que ela aparece lendo num papel que tem nas mãos, talvez flagre o momento em que lia a pequena introdução ao conto: “Com o cabelo avermelhado, os lábios apertados, ladeada por Simón González e um intérprete que teve a missão exclusiva de dar a conhecer o relato dedicado ao ovo como peça chave em sua conformação intelectual e social, a célebre escritora que publicou vários livros, chegados ao país em edições argentinas, manteve em suspense a plateia que a olhava, olhava os monitores de televisão em circuito fechado, Francisco Norden50 que está filmando milhares de pés de filme sobre o congresso, o teto recém pintado, o poeta Cobo que morria de rir e os extravagantes personagens que num momento dado mudaram o aroma do ambiente do pavilhão”. Acrescentou ainda: “‘Literatura e Magia’ foi o título da conferência da escritora: foi um autêntico ‘happening’ do qual participaram não somente a conferencista que quase não abriu os lábios, seu tradutor, González e centenas de espectadores que não sabiam que atitude adotar diante de um material mágico, poético e ingênuo que resumiu a posição da intelectual brasileira diante dos principais problemas atuais. […] Quando acabou a leitura, Simón González, seguramente interpretando o sentimento de vários espectadores, lhe disse, depois de lhe dar um abraço, que era um dos momentos mais bonitos e poéticos do congresso”.51 O diretor do documentário Congreso Internacional de Brujería – El Woodstock de la brujería (2022), Roberto De Zubiría, numa mesa-redonda sobre o filme, forneceu uma boa explicação para tanto ruído na recepção de “O ovo e a galinha”, de Clarice: dada a complexidade do conto, o intérprete não conseguiu traduzi-lo direito. “Ele se embolou todo na tradução e as pessoas que estavam assistindo não entenderam o que se passava”, contou.52 

Se “O ovo e a galinha”, por si só, já era misterioso até mesmo para sua própria autora, na imprecisa tradução apresentada no evento provavelmente os erros tenham multiplicado o mistério. No entanto, talvez pudéssemos pensar como o Autor de Um sopro de vida, livro que Clarice vinha preparando justamente por aquele período em que participou do Congresso de Bruxaria: “quem sabe se o que é certo está exatamente no erro?”. Quem sabe? Com Clarice, nunca se sabe ao certo (ou ao errado). Eis aí o seu maior feitiço.

  1. Carta de Simón González a Clarice Lispector, jan. 1975. Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa.[]
  2. Idem.[]
  3. Cf. Carta de Pedro Gómez Valderrama a Clarice Lispector, 21 mar. 1975. Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa.[]
  4. Cf. “As bruxas ainda à solta”, Jornal do Brasil, 11 jun. 1975, p. 5; “Clarice surpresa com o vulto dos bruxos”, Diário de Notícias, 20 mai. 1975, p. 7.[]
  5. Teresa Montero e Lícia Manzo (org.), Clarice Lispector: outros escritos, Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p. 119.[]
  6. Tavares de Miranda, “Literatura brasileira na Colômbia”, O Cruzeiro, 11 set. 1974, p. 106. Cf. também Teresa Cristina Montero Ferreira, À procura da própria coisa, Rio de Janeiro: Rocco, 2021, p. 592. Nesta extensa biografia de Clarice Lispector, há pouco reeditada e ampliada, Teresa Montero sugere ainda que o convite se deve à geração que orbitava em torno da revista Mito, entre os quais estaria Pedro Gómez Valderrama, quem respondeu a carta de aceite da escritora. O periódico, no entanto, já não existia há 12 anos quando da realização do congresso em Cáli; teve circulação entre 1955 e 1962.[]
  7. Carta de Pedro Gómez Valderrama a Clarice Lispector cit..[]
  8. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UGg7Xg89m1c.[]
  9. Apud Teresa Cristina Montero Ferreira, À procura da própria coisa, Rio de Janeiro: Rocco, 2021, p. 591.[]
  10. Carta de Simón González a Clarice Lispector, 8 jul 1975. Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa.[]
  11. “As bruxas ainda à solta” cit..[]
  12. Mário Pontes, “Bruxos se reúnem no dia do diabo”, Jornal do Brasil, Caderno B, 25 ago. 1975, p. 1.[]
  13. Isa Cambará, “Clarice Lispector: ‘Não escrevo para agradar a ninguém’”, Folha de S. Paulo, 10 set. 1975, p. 40. Cf. também Walda Menezes, “Mulher em dia – Movimento”, Diário de Notícias, Revista Feminina, 21 set. 1975, p. 5.[]
  14. Cf. O Congresso de Bruxaria de Bogotá, Planeta Especial, n. 37-A, out. 1975.[]
  15. Ignácio de Loyola Brandão em conversa por telefone, 6 out. 2020. []
  16. “Clarice surpresa com o vulto dos bruxos” cit..[]
  17. “As bruxas ainda à solta” cit.. []
  18. Havia, em especial no Brasil, uma preocupação com a denominação “bruxaria” para o congresso, como expressou, por exemplo, Jairo Alves de Barros, procurador da Saturin, agência de viagem carioca responsável por vender os pacotes. Ele chama a atenção para a carga pejorativa que a palavra “bruxaria” teria em português: “Nós preferimos o nome de Congresso de Ciências Ocultas, porque ‘bruxaria’ no Brasil tem um sentido de macumba, de ritos baixos do ocultismo. Na Colômbia, entende-se por ‘brujería’ o conjunto de todos os assuntos que os cientistas ainda não desvendaram. É pesquisa, ciência também” (“Para o congresso de bruxaria, muitos inscritos no Rio”, O Globo, 16 jul. 1975, p. 13).[]
  19. “As bruxas ainda à solta” cit.. []
  20. “Clarice surpresa com o vulto dos bruxos” cit.. []
  21. “Bruxaria em Bogotá: estudo ou embuste?”, Diário de Notícias, 14 ago., p. 2.[]
  22. Ib Teixeira, “A grande festa dos bruxos”, Manchete, 30 ago. 1975, pp. 5-11.[]
  23. O Diário de Pernambuco já havia adiantado, a partir de uma conversa com o parapsicólogo Alberto Velázquez, que uma das atrações seria “dar forma material a um espírito”, como os do ditador haitiano François Duvalier “Papa Doc” e do médico venezuelano José Gregorio Hernandez, “a cujo espírito se atribuem curas milagrosas”. Para atingir tal objetivo, sete médiuns da Venezuela e “vários” da Colômbia estariam presentes (“Congresso de bruxas promete”, Diário de Pernambuco, 13 jul. 1975, p. 14). Cf. também “Bruxos invocarão Papa Doc”, O Globo, 13 jul. 1975, p. 17; “Para o congresso de bruxaria, muitos inscritos no Rio”, O Globo, 16 jul. 1975, p. 13.[]
  24. “Clarice surpresa com o vulto dos bruxos” cit.. []
  25. Cf. Julián Sánchez González, “Activismo cultural e contracultura souvenir: el Primer Congreso Mundial de Brujería, 1975”, Boletín Cultural y Bibliográfico, vol. LVII, n. 104, 2023, p. 9.[]
  26. Registrou a revista Manchete: “O industrial João Melo da Costa Ramires arranjou uma passagem aérea de cortesia, hospedou-se num hotel modesto e procurou entrar em contato com os maiores cobras das ciências ocultas. O famoso Uri Geller, que entorta garfos pela força do pensamento, foi o mais franco possível: ‘Seu filho nunca me viu e por isso não podemos entrar em comunicação mental’. O pai de Carlinhos não desanimou. Bateu em várias portas, falou com pitonisas e magos, mas todos procuraram tirar o corpo fora. Por fim, encontrou um pouco de esperança com os índios aruacos. Alegando que a confusão reinante em Bogotá não era propícia a um trabalho de profundidade, os índios pediram que João Melo voltasse em outubro. Ficaram com fotos e pertences de Carlinhos e vão trabalhar desde já, tentando localizar o menino através de milenares processos ocultistas. Os índios aruacos habitam uma região de Sierra Nevada de Santa Marta. Desceram até Bogotá apenas como observadores, mas evitaram se imiscuir nas bruxarias ali verificadas. Foram os únicos que compreenderam o drama da criança sequestrada e, ainda que não possam ajudar em nada, só o fato de terem dado esperança a um pai desesperado já conta pontos a favor deles. João Melo nunca acreditou que o seu filho esteja morto, principalmente depois que um vidente de Amsterdã garantiu que Carlinhos ainda estava vivo. Com os índios aruacos ele pretende chegar ao fim de seu calvário, pois da polícia já não espera mais nada” (Maria Isabel Garcia, “O crepúsculo dos bruxos”, Manchete, 13 set. 1975, p. 11).[]
  27. O número especial da revista Planeta dedicado ao Congresso de Bruxaria reproduz a fala de Price-Williams. Cf. Planeta Especial – O Congresso de Bruxaria de Bogotá, n. 37-A, out. 1975, pp. 23-33.[]
  28. Clarice Lispector em entrevista a Ubiratan Teixeira, “Quando os bruxos se encontram”, Diário de Notícias, 17 ago. 1975, p. 22.[]
  29. Idem. []
  30. Idem. []
  31. Idem. []
  32. Idem. []
  33. Idem. []
  34. Ib Teixeira, “A grande festa dos bruxos” cit., p. 9. Outros veículos de imprensa da época também destacaram esse interesse pelo sobrenatural. Helena Ferraz, em reportagem de O Globo, mencionou, de passagem, um retorno ao sobrenatural depois das “conquistas do nosso século”, como “o turismo dos astronautas” (“O diabo sem preconceito”, O Globo, 5 jul. 1975, p. 27). Cf. também “Bruxas voam soltas entre as torres do Kremlin”, O Globo, 17 ago. 1975, p. 27.[]
  35. Clarice Lispector, “Onde estivestes de noite”, Onde estivestes de noite, Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 53-54.[]
  36. “Clarice surpresa com o vulto dos bruxos” cit.. Vale lembrar que Emir Rodríguez Monegal, no mesmo texto em que chama Clarice de “feiticeira”, tenha afirmado: “Capturado por sua prosa, o leitor descobre que em suas novelas a realidade cotidiana se converte em alucinatória. Ao mesmo tempo, as alucinações são apresentadas como coisas correntes” (“La novela brasileña”, Mundo Nuevo, n. 6, dez. 1966, p. 13).[]
  37. Clarice Lispector, “Literatura e magia”, Teresa Montero e Lícia Manzo (org.), Clarice Lispector: outros escritos cit., p. 122.[]
  38. Clarice Lispector, “Introdução”, manuscrito que faz parte do acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa.[]
  39. Idem. Em seguida, Clarice voltava à associação com os fenômenos naturais: “Mas também é verdade que tudo o que tem vida e é chamado por nós de ‘natural’ é na verdade tão inexplicável como se fosse sobrenatural”.[]
  40. Clarice Lispector, Água viva, Rio de Janeiro: Artenova, 1973, p. 84.[]
  41. Moysés Vellinho, Letras da província, Porto Alegre: Globo, 1944, p. 46.[]
  42. Carlos Drummond de Andrade, “A um bruxo, com amor”, publicado originalmente em Poemas (1959), compilado em Reunião, Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1969, pp. 238-239.[]
  43. Carlos Drummond de Andrade, “Correio à margem”, Correio da Manhã, 11 set. 1964, p. 6.[]
  44. Carlos Drummond de Andrade, “Quintana’s bar”, publicado originalmente em Claro enigma, compilado em Reunião cit., p. 180.[]
  45. Idem, pp. 180-181.[]
  46. Domingos Meirelles, “Bruxos brasileiros baixam na terceira noite do Congresso”, O Globo, 27 ago. 1975, p. 17.[]
  47. Alegre Levy, “Escalofriante sesión de vudú”, El Tiempo, 27 ago. 1975, p. 6A.[]
  48. Ignácio de Loyola Brandão em conversa por telefone, 6 out. 2020.[]
  49. Isa Cambará, “Clarice Lispector: ‘Não escrevo para agradar a ninguém’” cit..[]
  50. O cineasta colombiano Francisco Norden realizou um documentário média-metragem, em 16mm, acerca do congresso, que ficou pronto naquele mesmo ano.[]
  51. Texto apresentado na mesa-redonda Congreso Internacional de Brujería, com o diretor do filme homônimo Roberto De Zubiría e a produtora Ana Greiffenstein, promovido pela Otraparte Audiovisual, ligada à Casa Museo Otraparte, fundada por Simón González, em Bogotá. O evento foi realizado online. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ziRF5o0SUhY.[]
  52. Idem. []

Notas

A escuridão na escuridão

Robert Moraes, Eliane. A escuridão na escuridão. IMS Clarice Lispector, 2024. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2024/05/16/a-escuridao-na-escuridao/. Acesso em: 22 dezembro 2024.

Escuridão é uma palavra oca e nunca se sabe bem o que cabe dentro dela. De tal forma suas dimensões são indeterminadas que talvez se possa dizer até mesmo que nela cabe tudo e não cabe nada, pois, sendo um imenso celeiro de paradoxos, ao vazio primordial que a caracteriza soma-se imediatamente a qualidade equívoca da desmedida. Atributos que, assim pactuados, ganham particular densidade quando lavrados pelas mãos da autora de A maçã no escuro.

É digna de nota a passagem desse romance em que o protagonista se declara aliviado “por ter escapado da oca escuridão”, já que isso ocorre quando ele se dá conta da trama absurda que a “perfeita escuridão” precipita com seus infindáveis disparates: “sentia-se elementarmente protegido pela escuridão, apesar de que era a própria escuridão o que mais o assustava”. Acontece que, no mais das vezes, Martim circula pelo conturbado reino do caos e, se este decididamente se impõe a ele como uma ameaça, é também dessa “profundeza de séculos de medo e de desamparo” que lhe surge uma força nova e inesperada: “um homem no escuro era um criador”. (LISPECTOR, 2020, p. 835, 871, 877)

A capacidade de habitar ao mesmo tempo o vazio e a desmedida descreve uma disposição das mais correntes entre os personagens claricianos e, não raro, ela se expressa por meio de uma intensa sintonia com o domínio da escuridão. Não deixa de surpreender, portanto, que essa palavra repetida incontáveis vezes na ficção da escritora careça de qualquer elucidação, por mínima que seja, ao longo de suas igualmente incontáveis páginas. Aliás, trata-se aí de mais um paradoxo, pois, quanto mais o significante escuridão se faz presente em sua literatura, menos ele é deslindado, definido ou esclarecido. Em suma: o universo fabular de Clarice Lispector não admite explicação possível para a escuridão nem pensamento passível de dar conta do que quer que ela possa representar. 

Daí que o propósito de esclarecer – caro a uma filosofia que se declara iluminista e se desdobra na dialética do esclarecimento – venha a ser uma espécie de avesso desse domínio sombrio que resiste a toda e qualquer claridade. Recorde-se que, já desde seus primórdios setecentistas, os iluministas europeus tomavam por base de ofício a definição atribuída a Denis Diderot para o verbete philosophe da grande Enciclopédia, que assim apresenta o pensador do chamado Século das Luzes: “il marche la nuit, mais il est précédé d’un flambeau” (DIDEROT/ENCYCLOPÉDIE, Vol. XII, p. 510). Ora, essa noite sempre iluminada pela chama que precede o filósofo, na qual a própria obscuridade se curva às ferramentas da razão, fornece uma antítese da escuridão clariciana, pois esta supõe um estado de conhecimento, se é que se pode assim dizer, de outro gênero e de outra magnitude. Assim, se seus personagens também costumam, a exemplo do pensador enciclopedista, caminhar em meio ao caos da noite, não se trata jamais para eles de iluminá-la, mas antes de serem por ela iluminados.

São vários os textos da escritora que desenvolvem essa concepção, quase sempre introduzida em tom francamente onírico. A começar do sonho relatado em “A geleia viva como placenta”, ele mesmo transcorrido numa “noite fechada”, cuja protagonista desesperada decide se matar saltando de um “terraço escuro com a boca úmida da coisa viva” e, súbito, depara com o desconhecido: “quando já estava com as pernas para fora do balcão, foi que vi os olhos do escuro. Não ‘olhos no escuro’: mas os olhos do escuro. O escuro me espiava com dois olhos grandes, separados. A escuridão, pois, também era viva. Aonde encontraria eu a morte?” (LISPECTOR, 2020, p. 2086) 

A escuridão parece triunfar sobre a morte, ostentando uma vida própria que só se equipara com a infinitude.

Ainda na mesma galeria dos tipos que são vistos pelo escuro, cabe evocar o insólito fragmento intitulado “A noite mais perigosa”, em que uma voz suplicante pede para que se acredite nela, valendo-se de expressões cifradas que também sugerem a intenção de um suicídio. Ao dizer que “um rito fatal se cumpria” ali, no momento em que tentava explicar “o que os outros não entendem”, ela se embrenha em uma sinuosa narrativa: 

[…] a sala de visitas estava escura – mas a música chamou para o centro da sala – uma coisa acordada estava ali – a sala se escureceu toda dentro da escuridão – eu estava nas trevas – senti que por mais escura a sala era clara – agasalhei-me no medo – como já agasalhei de ti em ti mesmo – que foi que encontrei? – nada senão que a sala escura enchia-se de uma claridade que não iluminava – e que eu tremia no centro dessa difícil luz – acredita em mim embora seja difícil de explicar (LISPECTOR, 2020, p. 2629).

Menos exasperante mas igualmente densa, a cena se repõe ainda em Perto do coração selvagem, quando Joana se aconchega “na cama silenciosa, flutuante na escuridão (…) como no ventre perdido e esquece. Tudo é vago, leve e mudo.” Para ela, “dormir era cada noite uma aventura, cair da claridade fácil em que vivia para o mesmo mistério, sombrio e fresco, atravessar a escuridão. Morrer e renascer”. Por isso, pouco antes de se encolher “dentro de si mesma, cheia de medo, daquele temor inconfessado das antigas noites sem chuva, na escuridão sem sono” (LISPECTOR, 2020, p. 51, 76, 100), ela se abandona a estranhos devaneios que, uma vez mais, sugerem uma forma de luz – melhor seria dizer de lucidez – que só é possível distinguir no mais espesso breu: 

É necessário certo grau de cegueira para poder enxergar determinadas coisas. É essa talvez a marca do artista. Qualquer homem pode saber mais do que ele e raciocinar com segurança, segundo a verdade. Mas exatamente aquelas coisas escapam à luz acesa. Na escuridão tornam-se fosforescentes (LISPECTOR, 2020, p. 90). 

Seres do caos, os suicidas, loucos, artistas e congêneres não raro se abandonam à “fosforescência” de noites sem forma nem duração quando partilham uma singular gramática do olhar sob uma luz intensa que nada ilumina. Ciente disso, a autora de A legião estrangeira se furta por completo a qualquer esclarecimento sobre a escuridão, sempre preferindo, quando a aborda, o recurso da alusão ao da revelação. Afinal, a se crer em Clarice, não há nada a ser revelado num lugar completamente privado de luz. 

Seria o caso, então, de perguntar “para onde vai a luz quando se esconde”, como faz Maria Filomena Molder com grande propriedade. Em seu agudo ensaio sobre o tema, a pensadora lusitana observa que não se trata aí de uma pergunta sobre a invisibilidade, pois esconder sempre implica formas representativas agônicas – isto é, dramáticas – que reiteram, cada qual à sua maneira, o recorrente embate entre o dia e a noite. Daí sua menção a uma poderosa figura noturna apresentada na Ilíada como “domadora de deuses e de homens” que, por contemplar “a reunião inteira de todos os esconderijos, dos extremos aos íntimos”, também se introduz como um escuro que “olha para nós”.

Molder evoca o motivo em exemplos que dialogam em profundidade com as concepções de Clarice. Entre os antigos, ganham destaque as referências à mitologia grega, em particular aos deuses que inventaram um nome específico para um gênero muito especial de seres diurnos. Estes, chamados de “efêmeros”, eram responsáveis por vigiar e guardar a noite, “mesmo sentindo as forças a ceder logo que a luz se esconde”. A questão repercute no âmbito dos autores modernos, dentre os quais a comentadora escolhe o poeta português contemporâneo Manuel Gusmão, citando os notáveis versos de seu livro Teatros do tempo que se seguem: 

Trata-se pois de se ter sentado procurando o olhar

o olhar da noite que o olha. Longamente o fita –

…………………………………………………………………….

Seria este o motivo light: o interruptor:

O que interrompe e fecha é o que abre e acende. 

Dizes: alguém carregou no interruptor; o tempo

interrompeu-se e a noite olha o corpo do homem

que não espera nem desespera; está. (MOLDER, 2017, p. 13-15).

Ora, essa noite que olha – ou, para traduzir nos termos de Lispector: os grandes olhos do escuro – demarca sem dúvida os limites do conhecimento humano: como diz o poeta, aquele que é assim olhado, que não espera nem desespera, simplesmente está. Tal qual um ser que parece não ter qualquer dobra reflexiva, ele é puro corpo e pura presença, a habitar um presente absoluto, a exemplo de uma estátua imóvel e viva. Não causa surpresa que essa imagem, igualmente paradoxal, também apareça transfigurada no conto clariciano “A quinta história”, cuja narradora se vale de um “elixir da longa morte” para exterminar os repugnantes insetos que invadem a sua casa e dos quais ela se queixa sem cessar. Para dar conta do efeito do veneno, enquanto “o escuro dormia” ela atravessa “o silêncio do apartamento” e depara com os corpos inanimados das baratas que se assemelham a mortos-vivos: 

E na escuridão da aurora, um arroxeado que distancia tudo, distingo a meus pés sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco da comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompeia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada (LISPECTOR, 2020, p. 1059).

As baratas liquidadas na calada da noite também olham, com espanto e terror, sua assassina. Uma estranha vida anima até mesmo as mais mumificadas, enquanto “uma ou outra antena de barata morta freme seca à brisa”, sancionando a acusação contra a “meticulosa e ardente” algoz que lhes devolve o olhar congelado (LISPECTOR, 2020, p. 1059). É também com espanto e terror, vale recordar, que os quatro jovens mascarados do conto “Mistério em São Cristóvão” se petrificam por um instante ao violarem um jardim encantado na madrugada carioca, como que tragados pelas “possibilidades que tem uma noite de maio”: “tudo no escuro era muda aproximação”, observa atônito o narrador, para completar: “caídos na cilada, eles se olhavam aterrorizados: fora saltada a natureza das coisas e as quatro figuras se espiavam de asas abertas. Paralisados, eles se espiavam.” (LISPECTOR, 2020, p. 3363) 

Entre as diversas afinidades que se reconhecem em todas essas passagens, chama particular atenção o foco construído em torno do não saber: a rigor, as baratas e sua algoz, ou os jovens surpreendidos pelos arriscados imprevistos da madrugada, denunciam o mesmo mistério original e ancestral guardado pela figura altiva da domadora da Ilíada que empresta seus olhos à noite. A se crer nessas fabulações, a escuridão seria realmente um estado de suspensão do saber e talvez seja por essa razão que, no sentido figurativo, a maior parte dos dicionários correntes associa tal significante à “ausência de conhecimento”.

Tudo tenderia a confirmar que não há nada mesmo a ser revelado num lugar privado de luz, não fosse a exceção aberta por Clarice para aqueles seres que, tendo “certo grau de cegueira”, conseguem “enxergar determinadas coisas” em plena escuridão. Exceção significativa que remete a dois grupos de criaturas bastante distintas, que são de fato os verdadeiros habitantes do breu: de um lado, os profetas cegos, como Tirésias, Bartimeu e tantos outros apresentados em teologias e mitologias; de outro, os animais que vivem nas profundezas do mar, como os insólitos exemplares pelágicos.

Escusado lembrar que o cego é uma figura recorrente na literatura clariciana e, embora não seja nomeadamente identificado como profeta, vidente ou oráculo, no mais das vezes partilha com estes algum dom de adivinhação. Até mesmo uma criança míope, como o menino do conto “Miopia progressiva”, faz entender que uma simples deficiência visual pode dar acesso aos caminhos da vidência, já que, quanto menos vê, mais e mais ele entende: “Foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar”. Afinal, “sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego” (LISPECTOR, 2020, p. 3431).

Caso exemplar nesse sentido é dado pelo personagem do conto “Amor”, que “mastigava goma na escuridão” quando é flagrado por Ana. Tal qual um prosaico adivinho, “sem sofrimento, com os olhos abertos”, basta sua presença para que a moça passe a ver precisamente aquilo que não lhe é dado ver, descobrindo o que estava coberto por interdições: nesse instante deflagrador, “o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê.” (LISPECTOR, 2020, p. 574, 3296) De fato, o estado da cegueira retorna com grande frequência nas páginas de Clarice, seja para remeter à própria “cegueira da escuridão”, seja para ressaltar a “leitosa e translúcida obscuridade”, como se lê em O lustre, sempre a reforçar a existência de uma potência luminosa do escuro que só os seres privados de visão conseguem divisar. Nesse sentido, ganham particular destaque as fabulações da autora sobre os “bichos da escuridão” (LISPECTOR, 2020, p. 172, 251).

“Que bichos?”, pergunta a protagonista de A maçã no escuro, para logo se responder com “uma obstinação de prazer”: “os bichos de que é feita a escuridão”. (LISPECTOR, 2020, p. 883). Se estes por vezes ganham aproximações um tanto bizarras – “os bibelôs luziam em claridade própria como animais das profundezas” (LISPECTOR, 2020, p. 447) – por outras são apenas associados aos bichos que saem “um por um da toca, protegidos pela suave possibilidade animal da noite” (LISPECTOR, 2020, p. 885). Sua aparição mais contundente, porém, se faz em A cidade sitiada, quando um personagem recorda que “os seres marinhos, quando não tocam o fundo do mar, se adaptam a uma vida flutuante ou pelágica”. A notação faz parte dos estudos do esquisito Perseu, em data registrada como “uma tarde de 15 de maio de 192…”. De pé junto da janela aberta, “cego e glorioso”, ele repete várias vezes, com “oca luminosidade”: “Os animais pelágicos se reproduzem com profusão”. E reitera outras tantas, acompanhado de perto pelo narrador que segue registrando: “‘Os animais e vegetais marinhos com profusão’, disse sem ímpeto mas sem freio porque este era o seu grau de luz. Não importa que na luz ele fosse tão cego como os outros na escuridão. A diferença é que ele estava na luz. ‘Flutuantes, falou’” (LISPECTOR, 2020, p. 413).

Não deixa de ser curiosa essa menção ao ecossistema pelágico – pelagos em latim significa o “mar aberto” –, por ser uma região oceânica habitada por seres vivos que, embora próximos dos fundos marinhos, deles não dependem. Trata-se de uma zona híbrida e indeterminada, localizada num intermédio que se inicia abaixo do espaço de influência das marés para se prolongar até o alto mar, em profundidades que variam desde algumas dezenas de metros até por volta de seis mil metros. Observe-se que, se as partes próximas da superfície recebem a luz do sol, as mais profundas abrigam um grande número de espécies adaptadas à escuridão, sendo que alguns de seus habitantes atendem pelo imponente nome de peixes abissais.

A referência de Clarice à zona pelágica talvez constitua a nota mais próxima do que seria sua definição de escuridão. Isso porque, se há algum elemento que ela vincula a tal estado, com certeza é a água. Trata-se, no mais das vezes, de uma escuridão líquida, cuja água quase sempre vem do mar. É o que os textos claricianos repetem à exaustão, valendo-se das mais diversas perspectivas para propor tal afinidade, a começar da frequente alusão a personagens que “flutuavam na escuridão” ou que “mergulhavam na escuridão da noite”. Ainda em O lustre, “a escuridão era salpicada de ruídos molhados”, assim como “estendia-se uniforme e quando o vento soprava os arbustos pareciam mover-se num mar” (LISPECTOR, 2020, p. 182, 195). As imagens noturnas relacionadas à água se desdobram em muitas direções, que passam tanto pelo coração, descrito como um “órgão banhado da escuridão da dor”, até uma sala que, à noite, “flutuava diante dos olhos vindos da escuridão” (LISPECTOR, 2020, p. 1743, 447).

Importa aqui realçar que, embora algo improvável, a aproximação entre os profetas cegos e os animais pelágicos pode surpreender por sua pertinência, justificada por uma afinidade maior: na qualidade de seres da escuridão, ambos têm em comum o conhecimento das profundezas. Os primeiros, por enxergarem o que está além do visível; os segundos, por nada divisarem além da própria obscuridade que os rodeia. A bem da verdade, uns e outros poderiam ser definidos nos mesmos termos de que se vale o narrador do conto “A menor mulher do mundo” quando descreve a inacessível pigmeia considerada “escura como um macaco” pelos que não enxergam sua humanidade: “não tendo outros recursos, [ela] estava reduzida à profundeza” (LISPECTOR, 2020, p. 609, 614).

Redução que, em todos esses casos, se furta por completo à claridade e impede qualquer identificação a olho nu. Aliás, a exemplo do que ocorre com os fundos marinhos, essa profundeza difusa e impenetrável nunca se revela a quem divisa seus domínios do lado de fora, uma vez que conhecê-la exige a completa imersão na opacidade do desconhecido. É o que se confirma na passagem do texto “Como uma corça” que descreve Eremita, outra personagem definitivamente associada aos recônditos mais profundos da existência: “Mas ninguém encontraria nada se descesse às suas profundezas – senão a própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão” (LISPECTOR, 2020, p. 1642).

Esboça-se aí, talvez, o sentido mais conclusivo da autora de A descoberta do mundo sobre a insondável escuridão, que reaparece discretamente em outros poucos escritos, sempre envolvidos por certo hermetismo, como é o caso das passagens de A maçã no escuro: “a escuridão procura a escuridão”, ou “a luz dos olhos do cão na escuridão do cão”, ou “se um homem tocasse uma vez a escuridão, oferecendo-lhe em troca a própria escuridão…” (LISPECTOR, 2020, p. 882, 913, 771), ou ainda da breve e decisiva anotação da escritora datada de 1968: “E a escuridão toda escura” (LISPECTOR, 1984, p. 81). A escuridão é um labirinto fechado, sem entrada nem saída: não estranha, pois, que o significante oco lhe caiba tão bem, por projetar um vão em forma de palíndromo que não tem começo nem fim. 1

A se crer em Clarice Lispector, a escuridão não tem dobra alguma, não se reflete em espelho algum e nem ao menos reconhece a existência de qualquer alteridade, pois é ela a absoluta alteridade. Dentro dela só há mesmo escuridão – um oco de onde pode brotar toda criação. 

  1. Agradeço essa e outras sugestões à Yudith Rosenbaum.[]

Notas

Referências

DIDEROT, Denis & D’ALEMBERT, Jean le Rond. Encyclopédie, ou dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, etc. Edição de Robert Morrissey baseada na versão de 1765. Chicago: University of Chicago; ARTFL Encyclopédie Project, 2013. Disponível em: .

LISPECTOR, Clarice. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. A descoberta do mundo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

______. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. A paixão segundo G. H. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. A via crucis do corpo. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. O lustre. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

______. Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2020. [Recurso eletrônico].

MOLDER, Maria Filomena. “Para onde vai a luz quando se esconde?”. In: Dia alegre, dia pensante, dias fatais. Lisboa: Relógio d’Água, 2017.