, "Tornar-se": notas sobre a "vida secreta" de Clarice Lispector. IMS Clarice Lispector, 2017. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2017/12/21/tornar-se-notas-sobre-a-vida-secreta-de-clarice-lispector/. Acesso em: 12 dezembro 2024.
Nesse ano em que se comemora A hora da estrela, a entrada de Clarice Lispector e de sua alter ego (uma de muitas), Macabéa, na “própria profundeza (…) – a floresta”, a profusão de explicações factuais para esse ou aquele personagem, elemento narrativo ou situação de escrita, ao enlaçar e engessar ainda mais uma obra já marcada pela leitura biografizante, parece perder de vista a lição essencial enunciada repetidas vezes por essa escritora e escritura conhecidas justamente pela rarefação do enredo, dos fatos. Se a formulação de tal lição aparece em Água viva (“Não vou ser autobiográfica. Quero ser ‘bio'”), é na “Explicação” de abertura de A via crúcis do corpo que ela se manifesta (termo chave na poética de Clarice) em toda sua radicalidade. A própria posição não marcada em relação aos outros treze textos que compõem o volume, o que torna impossível distinguir graficamente ou por meio de um elemento paratextual se se trata de um prefácio (da autora) ou já de uma ficção (de uma narradora) é reforçada pelo que a “Explicação” diz: “É um livro de treze histórias. Mas podia ser de quatorze. Eu não quero. Porque estaria desrespeitando a confidência de um homem simples que me contou a sua vida. Ele é charreteiro numa fazenda. E disse-me: para não derramar sangue, separei-me de minha mulher, ela se desencaminhou e desencaminhou minha filha de dezesseis anos. Ele tem um filho de dezoito anos que nem quer ouvir falar no nome da própria mãe. E assim são as coisas”. A décima-quarta história, contada no gesto mesmo em que se anuncia a sua omissão – uma confidência inconfidente –, assemelha-se, assim, à “quinta história” do conto homônimo de A legião estrangeira: a última, ou primeira, das histórias é a história da feitura das histórias, não só implicando (dobrando para dentro) a vida na obra, mas também explicando (dobrando para fora) a ficção na realidade. Nesse sentido, cabe lembrar que, segundo a explicação, a gênese de A via crúcis veio de uma encomenda editorial de “três histórias que (…) realmente aconteceram” (grifo nosso), e que seriam, conforme a autora (ou narradora), “Miss Algrave”, “Via crucis” e “O corpo”, as três peças do livro mais afastadas da proposta, pois que consistem, antes de tudo, na reescritura paródica de outros textos: em ordem, a experiência mística de mulheres católicas, a encarnação de Cristo e um conto de Poe, “The Tell-Tale Heart”, que Clarice já havia traduzido (ou seja, reescrito uma vez, dando-lhe o título de “O coração denunciador”). Como “A explicação inútil”, do “Fundo de gaveta”, segunda parte de A legião estrangeira, que se autonomizou no volume Para não esquecer, a “Explicação” mais complica do que fornece uma chave de leitura para a relação vida-obra e para a gênese (o nascimento) da ficção na realidade – o que já se prenunciava nas epígrafes do livro, que misturam passagens bíblicas e uma atribuída a um “Personagem meu ainda sem nome” e outra de “Não sei de quem é”. Assim, por um lado, Clarice faz de uma ficção de Poe (ou a toma como) uma história que realmente aconteceu (o que está escrito já aconteceu, o que se escreve acontece), num paradoxal movimento literário de desliteraturização, magistralmente trabalhado por João Camillo Penna, e que aparece já em Perto do coração selvagem, quando o Lobo das Estepes, personagem do livro homônimo de Hesse, e, portanto, referência literária, figura como uma lembrança da vida de Joana. Por outro lado, em um jogo com a encomenda do editor, ela insere nesse livro de contos, de ficções, três outras histórias (“O homem que apareceu”, “Dia após dia” e “Por enquanto”) que soam, pela dicção e retomada de datas e fatos mencionados na “Explicação”, como não ficcionais, em tudo próximas às crônicas clariceanas. Ou seja, a escritora ao mesmo tempo cumpre à risca e dobra a aposta colocada pelo editor de ficcionalizar fatos reais: de fato, a partir mesmo da abertura do livro, como vimos, a vida se torna ficção, mas o que se ficcionaliza (ou realiza) não são apenas determinados fatos, e sim a própria escritura do livro, a encomenda e sua realização, a vida da escritora e da escritura, em suma, a relação mesma entre vida e obra, realidade e ficção. É como se, para Clarice, a ficção literária, o “como se”, constituísse uma via de mão dupla, por meio da qual o inexistente ganha vida apenas à medida que a ‘vida real’ se desrealiza, ou seja, se desse a partir de uma recriação do dado, conforme podemos ver nessa famosa passagem, em que o nascimento da escritura co-incide com o não nascimento (morte) da escritora, ou melhor, com a transformação (e intersecção) recíproca – um corpo-a-corpo – da realidade e da ficção: “Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva” (grifo no original).
A “Explicação” parece formular poeticamente uma solução há muito buscada e trabalhada para um duplo problema, conjugado e de origem financeira, que a assolava: a necessidade de escrever cotidianamente crônicas, e, portanto, de ‘falar de si’, aproveitar elementos e acontecimentos da própria vida, e de publicar novos livros, mesmo julgando não ter material à altura. Isso resultou numa série de livros que reciclam contos e crônicas anteriores (Felicidade clandestina, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Água viva e mesmo Onde estivestes de noite), num procedimento que alterna, conjuga e mistura o palimpsesto e a colagem e justaposição, como demonstrou Edgar Nolasco, e que, com A via crucis do corpo, parece ganhar o estatuto de uma poética da reescritura, ou melhor, de uma concepção da escrita e criação literárias como re-criação, transformação – análogas, assim, à própria vida. E, de fato, a cena inaugural mesma da escrita ficcional em Clarice, o conto “Os desastres de Sofia”, seguidas vezes remetida a um fato biográfico, e publicado em dois livros, além de retomar e inverter tanto a história de Chapeuzinho Vermelho, fazendo da menina o lobo, quanto o romance Lês Malheurs de Sophie, de quem toma o título, a situa já como reescritura (e Sofia como reescritora). Como se sabe, diante da tarefa posta pelo professor (um dos muitos, sempre masculinos, na obra clariceana, às vezes cruéis como n'”O crime do professor de matemática”, outras, pedantes como em Uma aprendizagem, mas sempre operando como iniciadores às avessas, antípodas com as quais as personagens, femininas, devem se confrontar para aprender) de escrever a história por ele contada com as “próprias palavras”, Sofia a reescreve, acrescendo um final de modo a inverter a moral proposta: ao invés de um louvor ao trabalho, o relato transformado pela menina se converte num elogio ao ócio, ao “ato gratuito” de uma crônica futura de Clarice, à felicidade que sempre deve ser clandestina, jamais merecida. É sintomático que esse momento de nascimento da escritura ficcional no conto ganhe os contornos de uma série de desastres do saber (sofia) em vários sentidos: um ato desastrado, mera provocação gratuita de Sofia, até então muito segura de si; a revelação da “muda catástrofe” do professor, mestre do saber, cujo sorriso de contentamento em reação ao gesto da aluna é descrito como monstruoso, desconjuntado, desastrado; e, por fim, o desastre de um saber de tipo científico, baseado na observação de um objeto por um sujeito, saber supostamente neutro, que não cria, apenas descreve, saber intelectual que um professor transmite a um aluno, em suma, todo o contrário do que se estabelece nessa cena, em que a reescritura da parábola moral por Sofia apresenta um outro saber, feminino, ao (re)criar sobre a parábola, cria sobre o mundo, sobre o outro, sobre o corpo mesmo do professor, uma transformação, um impulso (outro termo chave de Clarice, sua tradução modificada do conatus de Spinoza, presente tanto nos seres vivos quanto nos objetos maquínicos, como Sveglia). Se antes, Sofia “pensava que tudo que se inventa é mentira”, na reação de felicidade quase extática do professor, no seu olhar, ela vê outra coisa: “O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso tivesse se colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel. Com suas lágrimas orgânicas.
Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o olho ri. (…) Eu vi um homem com estranhas sorrindo (…) – era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo. Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. (…) Eu o olhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos”.
Devemos ler essa passagem em conjunto com outras tantas em que a criação, em geral associada ao feminino, remete, por um lado, à transformação e não à creatio ex nihilo, e, por outro, ao nascimento. Assim, por exemplo, outra cena inaugural da escrita em Clarice, o seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, tratado pela crítica como um Bilundgsromande uma artista. Lembremos, para começar, que, nele, Joana se vê não só diante de um professor, como também de outras duas figuras masculinas ligadas à escrita, o Pai, solteiro, e o marido, Otávio, sendo que cada uma das duas partes da ficção se inicia com uma cena de escrita – a primeira, daquele, a segunda, deste. Incapaz, ou melhor, indisposta a reproduzir dentro da família (a dos tios quando criança, a com Otávio após o casamento) o papel reprodutivo que era imposto às mulheres na sociedade de então, Joana, diante da notícia da gravidez de Lídia, amante de seu marido, e mesmo antes, já à sua aproximação, numa cena eivada do peculiar erotismo corpo-anímico de Clarice, reconfigura o impulso de engravidar (acompanhado no texto pelo brotar de um vocabulário repleto de partos, embriões, fecundações, que acompanhará toda a obra posterior) na gestação e nascimento de palavras, num movimento que culminará no fim do romance: “um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro!” Não se trata, porém, de uma simples passagem da gravidez literal à metafórica, mas de uma transfiguração do que é a maternidade e o feminino, como se pode depreender da cena do encontro de Joana com Lídia: “talvez a divindade das mulheres não fosse específica,estivesse apenas no fato de existirem. Sim, sim, aí estava a verdade: elas existiam mais do que os outros, eram o símbolo da coisa na própria coisa. E a mulher era o mistério em si mesmo, descobriu. Havia em todas elas uma qualidade de matéria-prima, alguma coisa que podia vir a definir-se mas que jamais se realizava, porque sua essência mesma era a de ‘tornar-se'”. O feminino aqui designa um excesso qualitativo da existência, um peculiar modo de existência que se caracteriza por não se fixar plenamente em nenhum modo – a diferença de cada forma em relação a si mesma, sua possibilidade de se modificar, se recriar. Desse modo, a redefinição do feminino como um “tornar-se” coloca sob outra luz a sua associação com a matéria, a maternidade, não mais na égide da reprodução de corpos, papéis e sentidos, mas, antes, na chave da metamorfose de corpos, papéis e sentidos: engravidar e parir (e, por extensão, o feminino) tornam-se sinônimos de devir (para ser claro, mesmo que redundante: devir, tornar-se, é já engravidar e parir). E que a criação pela linguagem se conecte, no romance e em Clarice, a esta concepção não-reprodutiva da gravidez já havia sido prenunciado nas brincadeiras com palavras da jovem Joana: “O que se pensava passava a ser pensado. Mais ainda: nem todas as coisas que se pensam passam a existir daí em diante… Porque se eu digo: titia almoça com titio, eu não faço nada viver. Ou mesmo se eu resolvo:vou passear; é bom, passeio… e nada existe. Mas se eu digo, por exemplo:flores em cima do túmulo, pronto eis uma coisa que não existia antes de eu pensar flores em cima do túmulo.”
Se, como afirma Joana, “nada existe que escape à transfiguração”, a esse excesso feminino que há em tudo o que existe e que se confunde com a própria existência enquanto transformação (inclusive, e esse é o ponto, transformação do que é o feminino), o problema de gênero sexual mostra-se logo um problema de gênero textual, com a progressiva transfiguração da forma narrativa do romance, o qual, começando em terceira pessoa (posição não-marcada, i.e., masculina, e, em certo sentido, isomorfa à onisciência divina do Pai criador ex nihilo, fálico) e com o pai escrevendo, aos poucos vai sendo contaminado pela primeira pessoa feminina, a voz de Joana, a quem cabe a última enunciação. O movimento de transfiguração formal, de feminização da forma narrativa, não se restringe a Perto do coração selvagem, mas atravessa os romances de Clarice, tendo como ápice A paixão segundo G.H., já todo na primeira pessoa, com a protagonista narradora se colocando diante do desafio de não se amparar mais numa “terceira pessoa” e no olho que “vigiava a minha vida” (a terceira pessoa onisciente?), e, para tanto, e em contrapartida, inventando uma mão masculina: de um ele que cria e fala sobre uma ela, passamos a uma ela que cria e fala para um ele. Água viva, depois desse corpo estranho (e, por isso mesmo, especialmente importante) que é Uma aprendizagem, retoma a estrutura de GH, mas já livre de todo enredo que não a própria escritura e seu desejo de captar o “instante-já”, que é “semente viva”, os “instantes de metamorfose”, o momento exato da transformação, do tornar-se em si. Não assusta, desse modo, que ele não seja apresentado como romance, e sim como “ficção” (ou “coisa”, como o classificou depreciativa mas clariceanamente Hélio Pólvora em seu parecer sobre Água viva para o Instituto Nacional do Livro). Mas como nada em Clarice escapa à transfiguração, as duas prosas longas finais, A hora da estrela e Um sopro de vida (também não “romances”, mas “novela” e “pulsações”, respectivamente), produzem uma torção ulterior: nelas, nos vemos diante de narradores masculinos em primeira pessoa escrevendo livros sobre (criando) personagens femininas, num gesto pleno de crítica às críticas que Clarice – e a literatura feminina de um modo geral – sofria. Pense-se, por exemplo, na antiga pecha de literatura sentimental ou intimista, ou seja, a acusação de falar sempre de si, e como Rodrigo S.M., “o mais cínico narrador já criado por Clarice Lispector”, segundo Ítalo Moriconi, não consegue senão projetar a si e seus estereótipos sobre Macabéa, a ponto de esta ver a imagem dele ao se olhar no espelho – e isso vindo de um escritor engajado, documental, interessado apenas por “fatos sem literatura”, e que reclama que “escritora mulher pode lacrimejar piegas”. E, para falar da “nordestina amarelada”, sobre a “cadela vadia”, em nome de Macabéa, Rodrigo S.M. precisa necessariamente atribuir a ela a ausência total não só de voz e consciência, como mesmo, por meia narrativa, de nome. Por outro lado, porém, é emblemático que o movimento final de Um sopro de vida retome o de Perto do coração selvagem, com Ângela, a personagem, vindo da ficção para o mundo, e o Autor perdendo as palavras, numa inversão do destino de outra criatura, Macabéa:
“E agora sou obrigado a me interromper porque Ângela interrompeu a vida indo para a terra. Mas não a terra em que se é enterrado e sim a terra em que se revive. Com chuva abundante nas florestas e o sussurro das ventanias.
Quanto a mim, estou. Sim.
‘Eu… eu… não. Não posso acabar.’
Eu acho que..”
Em uma crônica que confronta essa série de questões – a classificação de seus livros, especialmente GH, a forma de suas narrativas e o enredo rarefeito, e a relação entre vida e ficção –, Clarice expõe em chave teórica o vir ao mundo de Ângela (e demais personagens, como Joana, já que Perto do coração selvagem termina in media res, com a protagonista em viagem, saindo das amarras da família e do narrador, para outro lugar, desconhecido): “O que é ficção? é, em suma, suponho, a criação de seres e acontecimentos que não existiram realmente mas de tal modo poderiam existir que se tornam vivos”. Não se trata de uma proximidade ou aparência de verdade ou realidade (uma verossimilhança interna ou externa), mas de uma entrada na vida: a criação ficcional nomeia, para Clarice, uma certa intensificação do modo de ser do possível ou do inexistente (“de tal modo”), que o torna – o transforma em – vivo. Nesse sentido, a concepção spinozista entoada por Joana, “Tudo é um”, deve ser lida na maior amplitude possível – tudo participa da mesma substância, incluindo a ficção e os seres inexistentes: “Tudo é um, tudo é um…, entoara. A confusão estava no entrelaçamento do mar, do gato, do boi com ela mesma. A confusão vinha também de que não sabia se entrara ‘tudo é um’ ainda em pequena, diante do mar, ou depois, relembrando. No entanto a confusão não trazia apenas graça, mas a realidade mesma. Parecia-lhe que se ordenasse e explicasse claramente o que sentira, teria destruído a essência de ‘tudo é um’. Na confusão, ela era a própria verdade inconscientemente, o que talvez desse mais poder-de-vida do que conhecê-la. A essa verdade que, mesmo revelada, Joana não poderia usar porque não formava o seu caule, mas a raiz, prendendo seu corpo a tudo o que não era mais seu, imponderável, impalpável.” Se tudo participa da mesma substância, se a diferença entre as coisas não é de natureza, de essência, mas de modo, de forma, então decorre daí uma continuidade não só entre o humano e o animal, como também entre o orgânico, vivo, e o inorgânico, supostamente morto, e, ainda mais, entre os seres existentes e os inexistentes: trata-se assim de se questionar a prerrogativa da excepcionalidade humana, da vida biológica e da superioridade ontológica do atualmente existente, e, ao mesmo tempo, já que tudo participa da mesma substância, mudando apenas sua forma, de postular a possibilidade universal de metamorfose e transfiguração, em suma, da vida. “Tudo é um” quer dizer que tudo pode se modificar, que tudo é vivo – incluindo, e eis a extensão que queremos frisar, os seres ficcionais, que são tão vivos quanto os seres existentes. Seguindo a máxima shakespeariana – “We are such stuff as dreams are made on” –, Clarice parece postular um monismo radical, que se pode ver em uma série de formulações suas ou de suas personagens nas quais a criação não remete a um outro inferior da realidade ou da vida, como quando G.H. afirma: “Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu? Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade”.Talvez isso explique porque a experiência da “coisa” seja sempre acompanhada de uma experiência da linguagem nas suas ficções, porque,ao adentrar o “bio” antes do biográfico, o “neutro”, “it“, a “matéria-prima”, a “floresta”, o “proibido tecido da vida”, a zona antes da individuação e separação em gêneros, onde reina a “Ela/ele”, o “Ele/Ela” de Onde estivestes de noite, as personagens clariceanas se sintam na necessidade de escrever, ficcionar, pois elas veem, como Joana, seus corpos ligados por uma raiz a tudo que não é mais seu – todas as outras coisas, todos os outros seres, entre os quais os inexistentes. “Ter a realidade” dessa experiência da unicidade do mundo, implica, assim, criar, enquanto gesto de tornar vivo, de intensificar um modo de ser do que normalmente aparece não só morto, como inexistente. Dessa maneira,não é um acaso, que, em Água viva, a protagonista-narradora, após vivenciar o “estado de graça”, descrevendo-o como “se viesse apenas para que soubesse que realmente se existe e existe o mundo”, afirme que “depois da liberdade do estado de graça também acontece a liberdade da imaginação. (…) A loucura do invento”. O “estado de graça” vem apenas para se saber que realmente se existe e existe o mundo – e que, entre eles, existe o inexistente, ao qual a ficção tem o poder de tornar vivo.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres abre com a protagonista Lóri, diante de uma situação de angústia extrema, ficcionando, numa sucessão de “faz de conta que” descritos como “os movimentos histéricos de um animal preso”, que “tinham como intenção libertar, por meio de um desses movimentos, a coisa ignorada que o estava prendendo”. Essa transvaloração de uma cena tipicamente (estereotipadamente) feminina, associando, como em Água viva, criação e liberdade, nos leva à verdadeira data clariceana, ou melhor, a hora clariceana por excelência, entre duas datas, hora possivelmente inventada da escritura de A via crucis do corpo. Se a “Explicação” afirma que “Hoje é dia 12 de maio, Dia das Mães”, data na qual teriam sido terminadas as três histórias que “realmente aconteceram”, o “P.S.” que a suplementa (ou reescreve) e em que teriam sido redigidos outros contos do volume é datado de outro hoje, posterior ao “domingo maldito”: “Hoje, 13 de maio, segunda-feira, dia da libertação dos escravos – portanto da minha também”. Pode-se ler essa sequência, essa associação ou sucessão entre maternidade e liberdade de dois modos, não necessariamente contraditórios entre si. Por um lado, como a libertação da escravidão dos personagens, especialmente as femininas, do papel social, familiar, epitomizado na reprodução, na maternidade – a passagem da mãe à liberta. Nesse sentido, tratar-se-ia da radicalização do movimento que se intensifica na escritura de Clarice a partir do que José Miguel Wisnik chamou de trilogia da separação – Laços de família, A legião estrangeira e A paixão segundo G.H.. Nela, os laços familiares, socialmente familiarizados, não só unem, como prendem, enlaçam, servindo como instrumentos de domesticação que alocam a cada um em seu lugar. Mas, nas margens do familiar, nas bordas dos laços do domesticado, começam a aflorar uma série de figuras que dominarão a ficção posterior de Clarice: loucos, criados, animais (galinhas, cachorros, baratas, cavalos, etc.), espaços “naturais” domesticados na cidade, cercados por ela (jardins – privados, zoológicos ou botânicos), etc. Como uma verdade legião estrangeira – de sentido completamente oposto à da formação militar com esse nome –, tais figuras vão ganhando cada vez mais o centro da cena, questionando e revelando a violência das relações domesticadas e domesticantes, a ponto de, em A via crucis, a multiplicidade não poder ser mais alienígena ao corpo familiar de então – gays, lésbicas, transexuais, prostitutas, freiras e viúvas repletas de desejo carnal, mendigos, em suma, “tudo o que não presta”, para usar as palavras de um político imprestável. Desse modo, por exemplo, a dupla de contos “Macacos” e “A menor mulher do mundo”, articulando racismo e especismo, traz à tona o papel do exotismo violento, mesmo quando piedoso, que está na base do processo de familiarização (de humanização) em nossa sociedade. Tal questionamento, porém, não se reduz a uma negação do dado, uma afirmação às avessas; antes, busca converter a afirmação em interrogação, no que parece ser um movimento que atravessa a escritura de Clarice: “Este livro é uma pergunta”, afirma Rodrigo S.M.; “Escrever é uma indagação. É assim: ?”, lemos em Um sopro de vida; “sou uma pergunta”, diz a narradora de Água viva, frase que também intitula uma crônica; e, para ficar com só mais um exemplo, o mais forte deles: “O único modo dechamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com aprópria pergunta. Qual é o nome? e este é o nome.” Trata-se, assim, não só de negar os laços existentes, ou de afirmar outros em seu lugar, mas de abrir espaço para a experimentação de outras relações – por isso, a libertação é só o primeiro passo de um movimento indagador que não pode estagnar em uma afirmação, em um nome: “Liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome”. Tomemos o conto “A legião estrangeira”. Nele, nos deparamos com uma configuração familiar no mínimo estranha. Os membros da família propriamente dita da narradora não são nomeados e mal aparecem. Quem ocupa, no primeiro momento, o lugar de proeminência é um pintinho que, aterrorizado, faz com que os filhos peçam à sua mãe que seja a mãe também daquele animal, de alguém que não pertence propriamente à família, e nem mesmo ao gênero humano – maternidade que a narradora diz não saber desempenhar. É essa cena “infamiliar” (para usar um termo que aparece três vezes em Laços de família, e uma tradução possível para o Unheimlich freudiano) que a faz rememorar outra, a convivência com Ofélia, mais uma estranha de quem foi mãe, a filha da vizinha. Se, por um lado, a narradora parece exercer certa atração sobre a criança, a ponto de esta visitá-la todos os dias, por outro, a relação aparece socialmente invertida, pois é Ofélia quem se comporta como uma adulta, como a encarnação da obediência às normas sociais e de comportamento (o tema reaparecerá de forma trágica em “Os obedientes”), cabendo à anfitriã de fato curvar-se, e definir o laço entre elas de modo paradoxal: “já me tornara o domínio daquela minha escrava”. O ponto de virada se dá quando Ofélia ouve um pintinho (outro) na cozinha, e a narradora a permite e estimula ir brincar com o animal, o que termina fazendo, contra toda a rigidez que lhe fora imposta pela sua própria família. Não estranha que na descrição do acontecimento, de novo, nos deparemos com uma imagem que já se tornou familiar: “A agonia de seu nascimento. Até então eu nunca vira a coragem. A coragem de ser o outro que se é, de nascer do próprio parto, e de largar no chão o corpo antigo. (…) Já há alguns minutos eu me achava diante de uma criança. Fizera-se a metamorfose”. É numa relação não propriamente maternal que a maternidade ganha uma abertura de sentido, que novos laços, entre a narradora e Ofélia, entre esta e o mundo e consigo mesma, podem ser experimentados: aqui, a maternidade (‘imprópria’) designa a aberturada porta para a desobediência, para que se possa sair dos laços de família, para que se possa fazer contato com o estranho, e assim modificar a si mesmo, “ser o outro que se é”. Desse modo, podemos voltar à sucessão de datas da “Explicação” e vê-la de outro modo, complementar a esse primeiro: a maternidade enquanto libertação das relações dadas, possibilidade de recriação do dado, incluindo a própria maternidade, já que a figura mais maternal (inclusive literalmente) de A via crúcis do corpo é a transexual Celsinho/Moleirão, “mais mulher que Clara”, sua amiga (‘biologicamente’ mulher) e concorrente.
A força e a singularidade da concepção clariceana de ficção, e de sua relação com a vida, reside nessa atenção para aqueles e aquilo que estão à margem, como se o poder de tornar vivo da ficção, seu poder de libertar, estivesse relacionado ao “poder-de-vida” do radicalmente outro– e “atenção” é mais um dos vocábulos cruciais, também associado ao feminino, de sua escritura: “Lóri era uma mulher, era uma pessoa, era uma atenção, era um corpo habitado olhando a chuva grossa cair”. Em seu belo texto sobre A hora da estrela, Hélène Cixous aponta a minúcia dessa atenção e suas consequências: “O maior respeito que tenho por qualquer obra no mundo é o que tenho pela obra de Clarice Lispector. Ela tratou como ninguém, a meu ver, todas as posições possíveis de um sujeito com relação ao que seria ‘apropriação’, uso e abuso do próprio. E isso nos detalhes mais finos e mais delicados. Aquilo contra o que seu texto luta sem cessar, em todos os terrenos, os mais pequenos e os mais pequenos grandes, é o movimento de apropriação: mesmo quando parece o mais inocente, permanece totalmente destrutivo. A piedade é destrutiva, o amor mal pensado é destrutivo; a compreensão mal medida é aniquiladora. Pode dizer-se que a obra de Clarice Lispector é um imenso livro do respeito, livro da boa distância. E essa boa distância não se pode obter, como diz ela o tempo todo, senão por um árduo trabalho de deseuização, um árduo trabalho de desegotização. O inimigo para ela é o eu cego.” Assim, para Clarice, prestar atenção ao outro demandaria a “despersonalização” ou “objetivação” de si, a entrada no neutro, o “não nascimento” de si, movimento sem o qual não é possível a sua conversão em um “corpo habitado”, a “Encarnação involuntária” de que fala um conto/crônica e que parece ser um bom nome para a ficção segundo C.L.: “Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhece-la (…) Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, senão no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações”. Exemplificada pela encarnação em uma missionária e depois numa prostituta (um par sempre presente), a operação, que tenho chamado de obliquação, seguidamente ocorre diante de, ou em relação com, figuras de uma alteridade extrema, especialmente animais. Trata-se de adotar a perspectiva do outro e, desse modo, estranhar a própria (daí a importância da intensidade da diferença), como no “Seco estudo de cavalos” (“E veria as coisas como um cavalo vê”), ou em “A procura de uma dignidade”, na qual a inversão perspectiva se enuncia de maneira plena: “Ulisses, se fosse vista a sua cara sob o ponto de vista humano, seria monstruoso e feio. Era lindo sob o ponto de vista de cão. Era vigoroso como um cavalo branco e livre, só que ele era castanho suave, alaranjado, cor de uísque. Mas seu pelo é lindo como a de um energético e empinado cavalo. Os músculos do pescoço eram vigorosos e a gente podia pegar esses músculos nas mãos de dedos sábios. Ulisses era um homem. Sem o mundo cão” (o livro infantil Quase de verdade puxará ainda mais esse fio, sendo narrado pelo “mesmo” cachorro Ulisses, companheiro de vida de Clarice, cabendo a ela a transcrição ou tradução de seus latidos em escrita). Todavia, o movimento não termina aí: não estaríamos diante de um verdadeiro nascimento, um verdadeiro tornar-se, uma transformação, se tal encarnação não estabelecesse uma relação com a vida, não se tornasse ela mesma viva, não nos modificasse, não nos fizesse renascer. É preciso, portanto, que a transformação perspectivística seja um modo de reciprocamente olharmos pelos olhos dos outros e sermos olhados por eles, não só vermos o mundo pelos olhos dos outros, como também vermos a nós mesmos por esse olhar, nos vermos de outro modo, modificando-nos. Ao menos, essa parece ser a “experiência maior” de que fala Clarice, e que suas ficções não cessam de buscar: “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu. “A experiência maior, enquanto tornar-se outro a partir do contato com outro não se reduz a ser os outros (experiência não eivada de egotismo às avessas); antes, constitui um experimento da subjetividade ancorado na transfiguração, pelo qual, atravessando o não nascimento de si e o nascimento do outro em nós, acessamos aquela “terra em que se revive” de que fala Um sopro de vida, em que nos recriamos – ou somos recriados. A ficção torna o outro vivo em nós, para tornar a nossa vida outra. Ela fornece a liberdade para o questionamento de si e seus laços com o mundo e para a indagação de outras relações, para as quais ainda não temos nome, para as quais a pergunta é o único nome possível.
Partindo de uma formulação espelhada de Um sopro de vida, “A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma”, a jovem clariceana Letícia Pilger afirmou que a relação da autora com o livro póstumo poderia ser definida de maneira análoga: de fato, a obra ficcional é a sombra da vida da Clarice, desde que tomemos a recíproca como verdadeira, a saber, que a vida de Clarice é também a sombra de sua ficção. Afinal, parafraseando Eduardo Viveiros de Castro, se tudo, incluindo os seres ficcionais, é vivo, então a vida, e também a ficção, é outra coisa – tudo é um (tornar-se).
Alexandre Nodari é professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária da UFPR; colaborador dos Programas de Pós-Graduação em Letras e Filosofia da mesma instituição. Também é editor da revista Letras e coordenador do SPECIES – Núcleo de antropologia especulativa: http://speciesnae.wordpress.com)