• 09/12/2019

Clarice em nova reedição

, Clarice em nova reedição. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/12/09/clarice-em-nova-reedicao/. Acesso em: 15 dezembro 2025.

Em 2020, Clarice Lispector faria cem anos. Uma série de eventos está programada para celebrar a efeméride. A editora Rocco, responsável pela publicação de sua obra, já deu início às comemorações com a reedição dos três primeiros romances da escritora, escritos na década de 1940, quando Clarice não havia completado ainda 30 anos; são eles: Perto do coração selvagem, O lustre e A cidade sitiada. O restante de sua obra completa será toda reeditada até o fim do ano que vem.

O projeto gráfico é assinado por Victor Burton, premiado designer de livros. As capas são ilustradas por imagens de pinturas de Clarice feitas, a maioria, em 1975. A relação da escritora com as artes plásticas não pretendeu ser mais do que um passatempo ampliador de seus processos criativos; sua produção, apesar disso, soma 22 quadros — dois deles pertencentes ao acervo do Instituto Moreira Salles — e ganhou uma detida reflexão do crítico português Carlos Mendes de Sousa, no livro Clarice Lispector: pinturas, também editado pela Rocco.

As novas edições também trazem posfácios inéditos, escritos por especialistas na obra de Clarice, como Nádia Gotlib, Clarisse Fukelman, Benjamin Moser, Aparecida Maria Nunes, Ricardo Iannace, Marina Colasanti, Eucanaã Ferraz, Teresa Montero, Arnaldo Franco Junior e próprio filho da autora, Paulo Gurgel Valente. O realizador Luiz Fernando Carvalho, que adaptou recentemente para o cinema o livro A Paixão Segundo G.H. (com estreia prevista para o ano que vem), também assina um dos textos.

Essa primeira reedição, em 2019, contempla o primeiro livro, Perto do coração selvagem (1943), que foi um grande sucesso de crítica, tendo recebido muitas avaliações positivas, inclusive a do escritor Antonio Candido, que, à época, saudou a estreia da escritora para o jornal Folha de S.Paulo: “dentro de nossa literatura, é uma performance da melhor qualidade. A autora — ao que parece uma jovem estreante — colocou seriamente o problema do estilo e da expressão”. O lustre (1946), segundo livro, ao contrário, teve recepção acanhada e, com ela, o início da relação conturbada da escritora com as editoras ao longo da carreira. Por fim, A cidade sitiada (1949), escrito em Berna, na Suíça, quando a jovem Clarice acompanhava o marido Maury Gurgel Valente em missão diplomática.

A primeira literatura de Clarice, que agora chega às livrarias de cara nova, dá a ver nos temas, modos de narrar, humor, estilo e inquietações existenciais as mesmas qualidades que — reiteradas por críticos e público — seriam a marca de uma carreira de sucesso trilhada pela grande escritora.

Notas

A conversão pelo ódio

, A conversão pelo ódio. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/12/04/a-conversao-pelo-odio/. Acesso em: 15 dezembro 2025.

Caetano Veloso conta que quando mostrou sua canção “Odeio”, que seria incluída no álbum , ainda ao violão, para o amigo e compositor Jorge Mautner, este teria chorado e lhe dito que aquela era a canção de amor mais bonita que já tinha ouvido. O refrão, que repete “odeio você, odeio você, odeio você, odeio”, quando cantado, na região mais grave, sugere, ao invés da agressividade esperada, um sentimento de ternura; “parece um carinho”, explicou ele. O próprio Caetano declarou que quando compôs “Odeio”, de fato, pensava em como amor e ódio podem se converter facilmente um no outro: “quando você tem briga de amor, tem muitas raivas”, comentou em entrevista à revista Rolling Stone, na época do lançamento do álbum, em 2012.

A partir dessa observação, é possível pensar num eixo em que amor e ódio estão localizados em dois extremos de uma única mobilização afetiva. Em outras palavras, o ódio é o amor que recua, apesar de igualmente radical em sua paixão – sendo a indiferença, sim, o seu contrário. O refrão de Caetano tira proveito dessa ambivalência ao sintetizar em um só verso – “odeio você” – tanto a raiva do ódio (dito textualmente) como a ternura do amor (expresso na melodia e no “grão” da voz do cantor). O efeito, conforme as palavras do compositor, é poder “dizer o amor como ‘odeio’”.

Esse é o tema do conto “O búfalo”, de Clarice Lispector, de quem, a propósito, Caetano era leitor desde a adolescência, quando os primeiros textos da escritora foram publicados na revista Senhor. A história, incluída no livro Laços de família, começa inadvertidamente, como se os fatos já estivessem em andamento: “Mas era primavera. Até o leão lambeu a testa glabra da leoa”. Aos poucos, ficamos sabendo que a protagonista fora ao Jardim Zoológico para aprender com os animais a odiar, e tinha a intenção de matar. Sobre o motivo da insólita missão temos dois vagos indícios esparsos no texto. O primeiro, quando a narradora descreve brevemente a postura submissa da mulher frente ao namorado ou marido: “tudo estava preso no seu peito. No peito que só sabia resignar-se, que só sabia suportar, só sabia pedir perdão […]”. O segundo, quando, num rápido flashback, ela finalmente toma coragem para dizer a ele que o odiava – “‘Eu te odeio’, disse muito apressada”; no entanto, “não sabia sequer como se fazia. Como cavar na terra até encontrar a água negra”?

A briga do casal desencadeou o ímpeto assassino da mulher. Teria ido ela extravasar tiranamente nos bichos a raiva contida a que não conseguia dar vazão em seu relacionamento amoroso? Não sabemos tampouco por qual motivo ela acredita que a lição de ódio poderia ser aprendida com os animais; por sabê-los só instinto? Seja como for, ela percorre as jaulas uma a uma e, a cada tentativa, se frustra: os leões se lambiam e se amavam lassos; a girafa, tal qual o que é “grande e leve e sem culpa”, era tola e inocente; o “hipopótamo úmido” transmitia um “amor humilde em se manter apenas carne”; na jaula dos macacos, uma mãe dava de mamar ao filho e um macaco velho com catarata a mirava com doçura – a mulher, contrariada, desvia o olhar e foge. O bestiário ainda continua com o elefante, doce, de força esmagadora, mas que não esmaga; o camelo paciente de “cílios empoeirados”, e do quati o olhar infantil e indagador.

Até que a espiral de gradis faz a mulher perder o centro; já não sabe se está fora ou dentro das jaulas. Troca então de posição com o animal e passa de sujeito a objeto: “a testa estava tão encostada às grades que por um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava”. Em concerto com o comportamento animal, o movimento da natureza só lhe inspirava noções de gratuidade e doação: “tudo nascendo, tudo escorrendo pelo riacho”; “por puro amor nasciam entre os trilhos ervas de um verde leve tão tonto […]”. Em volta, tudo se opunha, portanto, a seu desejo de vingança.

Inconformada, caminha a esmo. Quando percebe, está no parque de diversões do Jardim Zoológico, na fila da montanha-russa, atrás de alguns casais de namorados. Chega sua vez e ela ocupa sozinha a cadeira. A situação ordinária deflagra uma relação insuspeita com a moralidade cristã: “parecia estar sentada numa Igreja”. Com a partida do trem, a personagem vive uma experiência física libertadora e sensorialmente vertiginosa (acompanhada formalmente, no texto, pela sequência de orações coordenadas que enumeram, com repetições, reminiscências, gritos e situações):

[…] de repente foi aquele voo de vísceras, aquela parada de um coração que se surpreende no ar, aquele espanto, a fúria vitoriosa com que o banco a precipitava no nada e imediatamente a soerguia como uma boneca de saia levantada, o profundo ressentimento com que ela se tornou mecânica, o corpo automaticamente alegre – o grito das namoradas! – seu olhar ferido pela grande surpresa, a ofensa, ‘faziam dela o que queriam’, a grande ofensa – o grito das namoradas! – a enorme perplexidade de estar espasmodicamente brincando, faziam dela o que queriam, de repente sua candura exposta.

Ao rodar no trem da montanha-russa, ela se torna mecânica como a máquina; despersonaliza-se. E perde a referência do chão. Sobre esse aspecto, é oportuno um comentário do escritor italiano Giulio Carlo Argan, no livro História da arte como história da cidade. Ao criticar a obsessão de arquitetos e urbanistas por uma cidade do futuro construída para que a vida ocorresse sobre superfícies elevadas, observa que a relação das pessoas com o espaço e entre si pressupõe o nível do chão como referência humanística. É somente a partir de um plano comum, argumenta, que cada homem ou mulher, no ato de girar em torno do próprio eixo, pode localizar-se, ao mesmo tempo, no centro do mundo e na periferia de seus semelhantes; estes, por sua vez, também centros de si mesmos e periferia dos outros.

A desumanização da personagem provocada pela experiência na montanha-russa pode ser igualmente entendida pela dilaceração do corpo – “foi aquele voo de vísceras”. A fragmentação da imagem do corpo humano – característica de movimentos vanguardistas do início do século XX, como o cubismo e o surrealismo – é expressão de recusa da visão elevada sobre o humano a favor de um baixo materialismo que aceita as forças obscuras da natureza. É o que Georges Bataille qualificou de “mal”, no conhecido livro A literatura e o mal, isto é, a ideia de uma vida desmedida, que se quer intensa e que, por isso, deve ser vivida na transgressão do bem e da moral associados à sua conservação.

Não por acaso, ao fim da experiência violenta na montanha-russa – que a expôs toda! – a personagem é devolvida à terra e à moralidade do chão humanista. Pálida, “fraca e difamada”, como se tivesse sido “jogada fora de uma Igreja”, ela ajeita “as saias com recato”, sem olhar para ninguém, como uma pária. Algo resta, no entanto, que fermenta dentro dela: “o céu lhe rodava no estômago vazio; a terra, que subia e descia a seus olhos, ficava por momentos distante, a terra que é sempre tão difícil”. É justamente na terra difícil – para a qual estende as mãos como um “aleijado pedindo” (ainda mutilada, portanto) – que ela seguirá, transformada pelo mal e por seu aprendizado de ódio junto aos animais. Afinal, revela-se o elo entre amor e ódio:

Então, nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa, a vontade de matar […] não era o ódio ainda, por enquanto apenas a vontade atormentada de ódio como um desejo, à promessa do desabrochamento cruel, um tormento como de amor, a vontade de ódio se prometendo sagrado sangue e triunfo, a fêmea rejeitada espiritualizara-se na grande esperança. Mas onde, onde encontrar o animal que lhe ensinasse a ter o seu próprio ódio? o ódio que lhe pertencia por direito mas que em dor ela não alcançava? onde aprender a odiar para não morrer de amor?

Na hiper-moral conquistada pela personagem, amor e ódio se igualam em intensidade e se tornam indissociáveis. Até então, ela só sabia suportar, “ter a doçura da infelicidade”. O ódio que tanto almejava era o mesmo que servia de matéria-prima para o seu perdão. Entre rompantes de ação e esmorecimento – o que demonstrava sua desorientação – encosta o rosto quente na fria e enferrujada barra de ferro da grade. O choque de temperatura e as texturas lhe provocam a sensação de ser odiada. Há um renascimento simbólico – “abriu os olhos devagar”, “certa paz enfim”, “de pessoa recém-morta”.

Por fim, chega à jaula do búfalo negro. Fixa o olhar nele – o animal a mira de volta. Atenta aos mínimos movimentos daquele “corpo enegrecido de tranquila raiva”, percebe que está sendo notada e queda absorta. Uma “coisa branca” se alastra por dentro dela – substância que se assemelha à “massa branca” vital comida por G.H. e expelida da barata como fruto maduro do horror, no livro A paixão segundo G.H.. “A morte zumbia nos seus ouvidos” como um sopro aliciador do mal – metáfora da vida vivida no risco. A partir de então, a personagem alcança uma espécie de pureza primordial. Com o rosto “coberto de mortal brancura”, sente dolorosamente o “primeiro fio de sangue negro” escorrer dentro de si: o ódio, enfim. O búfalo está de costas. Ela apanha uma pedra no chão e arremessa para dentro da jaula. Ele se volta para ela e, imóvel, a encara. É quando a mulher declara sua sentença:

Eu te amo, disse ela então com ódio para o homem cujo grande crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor ao búfalo.

A busca da personagem encontra seu termo no paroxismo: não o “puro amor”, incondicional, da natureza, que faz nascer “entre os trilhos ervas de um verde leve”, mas o amor entre a gente, que, para se realizar plenamente, exige seu revés: o ódio – de acordo com Freud, o afeto humano elementar, a partir do qual o amor se erige como constructo. O ódio também está na base da teoria política de Thomas Hobbes, no Leviatã, quando define a soberania. Segundo sua máxima, o homem, lobo do homem, teme a morte violenta e, por isso, o instinto de autopreservação, subsidiado pelo ódio ao outro, funda o estado regulador da vida coletiva. O amor próprio dá rigor à relação entre iguais. Contudo, é diante do búfalo – numa espécie de solenidade tauromáquica –, e não de outra pessoa, que a personagem se sente, ameaçada e ameaçadora, “presa ao mútuo assassinato”. Esse é o instante em que o ódio irrompe como impulso de autodefesa e ela sente raiva do que pode destruí-la. Ficamos sabendo aqui o motivo para a lição de ódio ter sido buscada no Jardim Zoológico. Se não se pode dar o nome de ódio para o que no animal é meramente instinto, é no chamado instinto animal do homem que reside o ódio. E o conto termina assim: a mulher cai no chão em lenta vertigem. Não se sabe se por morte ou desmaio. Mas não foi a morte – real ou metafórica – o norte desta história de amor?

Notas

A sede do outro

, A sede do outro. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/09/24/a-sede-do-outro/. Acesso em: 15 dezembro 2025.

Todo ano, após o carnaval, tem início, no calendário litúrgico da Igreja Católica, a Quaresma, período em que os fiéis se retiram da vida mundana para se dedicar a sacrifícios, caridades e orações. Em 2018, o Papa Francisco convidou o padre e poeta português José Tolentino Mendonça para proferir a palestra que orientaria as reflexões da Cúria Romana sobre os desafios enfrentados pela Igreja naquele ano. O tema escolhido por Tolentino, nomeado arcebispo para a ocasião (e anunciado cardeal no dia 1º deste mês de setembro), foi a “sede de Jesus”. O texto da palestra foi publicado em livro, sob o título Elogio da sede (pela Quetzal, em Portugal, e no Brasil, pela editora Paulinas).

A apresentação começa com o episódio, descrito no Evangelho de São João, em que Jesus encontra a mulher samaritana no poço de Jacob (João 4:5-24). Jesus fazia a travessia entre a Judeia e a Galileia, quando, cansado, para à beira do poço para descansar e a mulher chega ali para buscar água. Ele a vê e lhe diz: “Dá-me de beber”. Logo de início, Tolentino nos previne que não é de água a sede de Jesus; trata-se de uma sede maior: “a sede de tocar as nossas sedes, de contactar com os nossos desertos, com as nossas feridas”.

Se no poço de Jacob Jesus pede de beber à samaritana, no final das Escrituras, faz o contrário; se oferece, como fonte: “O que tem sede aproxime-se […]”, diz. E torna explícita a metáfora: “[…] beba gratuitamente da água da vida” (Apocalipse 22:17). O tema volta a aparecer, desta vez em forma de súplica, nas últimas palavras pronunciadas por Jesus na cruz. Ele diz somente isto: “Tenho sede”. Podemos, portanto, situar Jesus no meio do caminho: ele é tanto aquele que sacia a sede — com a “água da vida” (de sua vida) — como o que tem sede do outro. Ele atravessa e é atravessado. Está na encruzilhada.

Conectar com a nossa sede, observa Tolentino, ainda que não seja fácil, se torna indispensável para que a vida espiritual não perca o lastro com a realidade na qual a vida pessoal e biográfica está ancorada; antes, é preciso coragem para encará-la de frente, sem vícios de olhar e livre de idealizações. Reconhecer nossa sede é, por tudo isso, assumir uma falta que nos é constitutiva. É coragem de se reconhecer frágil.

Ainda de acordo com Tolentino, escritores e poetas são potenciais mediadores entre as pessoas e suas sedes. Por três motivos, lista: a literatura se apresenta sem visões compartimentadas, como uma “metáfora integral da vida”; nos passa um conhecimento advindo da experiência concreta e não conceitual; e, por fim, contra as aparências forjadas socialmente, afirma a singularidade radical da existência. Posto isto, para ilustrar o efeito revigorador das letras na vida espiritual, cita um longo trecho, de que reproduzo apenas uma pequena parte, da crônica “Um ato gratuito”, de Clarice Lispector”, incluída no livro Todas as crônicas (2018):

Uma tarde dessas, de céu puramente azul e pequenas nuvens branquíssimas, estava eu escrevendo à máquina — quando alguma coisa em mim aconteceu. Era o profundo cansaço da luta. E percebi que estava sedenta. Uma sede de liberdade me acordara. Eu estava simplesmente exausta de morar num apartamento. Estava exausta de tirar ideias de mim mesma. Estava exausta do barulho da máquina de escrever. Então a sede estranha e profunda me apareceu.

Cabe observar uma coincidência entre a cena do encontro de Jesus com a samaritana e a de Clarice. Em ambas, há um mesmo ponto de inflexão: é o cansaço que faz irromper a sede. Da mesma forma que a sede não é somente de água, o cansaço tampouco é apenas físico; ele ganha uma dimensão existencial: estafa generalizada, oriunda de uma rotina que, por força do hábito, tende a embotar a fruição imediata com as coisas do mundo — e “o prazer é o máximo da veracidade de um ser. É a única luta contra a morte”, reivindica a personagem Ângela, de Um sopro de vida (1978).

A crônica citada por Tolentino faz par com o conto “Amor”, publicado pela primeira vez no livro Laços de família (1960). Tanto em um como no outro, o parque do Jardim Botânico — com seus troncos nodosos, pássaros voando, sombras oscilantes e secretas — é o lugar de escape do cotidiano utilitário, que vai religar a cronista Clarice (ou a personagem Ana) ao mistério da vida e à própria liberdade. O arrebatamento se dá por uma perturbação dos sentidos. Na crônica, ela escreve: “Eu ia ao Jardim Botânico para quê? Só para olhar. Só para ver. Só para sentir. Só para viver”; a espiral sinestésica se acentua até a fusão com a natureza circundante e sua despersonalização: “o resto era o verde úmido subindo em mim pelas minhas raízes incógnitas”.

Ao acaso, ela encontra um chafariz com o rosto talhado em pedra. Não apenas cola sua boca à da estátua e bebe avidamente a água que jorra sem parar, como também se molha toda — “esse exagero estava de acordo com a abundância do jardim”, justifica. Nota-se que a opulência do jardim se coloca em frontal desacordo com o princípio fundador da ciência econômica, isto é, a escassez de recursos, que tem como corolário a lei da oferta e da demanda, modelo para a determinação de preços e propulsora do jogo competidor capitalista. Em meio à natureza exuberante, ao contrário, tudo era farto e gratuito.

Situação semelhante ocorre no conto “O primeiro beijo”, do livro Felicidade clandestina (1971). Um jovem casal em início de namoro está em um ônibus, no que aparenta ser uma excursão escolar. O clima é ameno e eles desfrutam da fresca presença um do outro. À certa altura, a menina pergunta ao namorado se ele já tinha beijado outra mulher antes dela. Sem maiores explicações, ele diz que sim. Ela quer saber quem. Ele se atrapalha para responder e, numa espécie de fuga, entra em modo de suspensão contemplativa — “apenas sentir era tão bom”.

Uma sede irrompe então abrupta. O incômodo com a falta de água vai aumentando: “sede enorme maior do que ele próprio, que lhe tomava agora o corpo todo”. O calor e o vento — que se convertera em “vento de deserto” —, embora suportados diligentemente, acentuam o mal-estar do rapaz na mesma medida em que seu “instinto animal” intui o frescor da água “na curva inesperada da estrada”. Era uma questão de tempo, “talvez minutos apenas, talvez horas, enquanto sua sede era de anos” — Clarice redimensiona a sede para além do motivo particular da trama.

Finalmente, o ônibus para e, antes dos colegas e da namorada, ele consegue ser o primeiro a chegar “ao chafariz de pedra”. Fecha os olhos e cola sua boca “ao orifício de onde jorrava a água”. Dá o primeiro gole: “Era a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar”. Quando abre os olhos, percebe que sua boca está colada à boca de uma estátua de mulher e afirma para si mesmo, confuso: “mas não é de uma mulher que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida…”.

Nessa passagem, a água que jorra “de uma boca para outra” se transfigura em vida, assim como na oferta de Jesus a seus seguidores: “O que tem sede aproxime-se e […] beba gratuitamente da água da vida”. Entretanto (e é isso que deixa o menino “confuso na sua inocência”), na história de Clarice, “o líquido vivificador” não é o sêmen masculino, mas brota dessa espécie de mulher arquetípica — materializada na condição dura da pedra — capaz de atravessar, imperturbável, séculos e civilizações.

Ao flagrar a estátua em sua nudez, percebe que a havia beijado. Entra em um estado de desorientação próprio da experiência extática: encontra-se perplexo, “de pé, docemente agressivo”, com o coração palpitando fundo, “num equilíbrio frágil”; sente a vida se transformando, em sobressalto. A verdade que emerge de dentro dele ficamos sabendo ser o termo de um processo iniciático: “ele se tornara homem”. Tal como a mulher de pedra, o rapaz também perde sua individualidade para indiferenciar-se na figura do homem genérico, o mesmo riscado a carvão ao lado da mulher e do cachorro, como vestígios rupestres, pela empregada Janair, em A paixão segundo G.H. (1964): “Na parede caiada, contígua à porta — e por isso eu ainda não o tinha visto — estava quase em tamanho natural o contorno a carvão de um homem nu, de uma mulher nua, e de um cão que era mais nu do que um cão”.

*

Oferecer-se ao risco da experiência é também colocar-se em posição de vulnerabilidade em relação a sentimentos de alegria e tristeza a que estamos expostos na vida. Entretanto, se a tristeza persiste e não conseguimos contê-la, nossa energia vital vai sendo minada pouco a pouco. A tristeza, antes de caráter circunstancial, se transforma em acédia, estado de ânimo que, conforme a explicação de Tolentino, pode ser percebido “como uma indiferença, uma falta de presença e de interesse, uma perda do gosto de viver, uma desvitalização interior que se traduz num fechamento, negligenciando a chamada do presente”.

Ainda para Tolentino, a acédia — ou a depressão, nome usado hoje em dia para o mal — sobrevém quando renunciamos à sede; abandonamos nossos desejos e, desse modo, compactuamos com a morte. Embora a medicina contemporânea tenha passado a tratar a doença alopaticamente — e sem prejuízo desse tipo de procedimento —, trata-se, acredita, de um distúrbio de origem igualmente espiritual, cuja “fonte radica no mistério da solidão humana”.

Sobre essa questão, outra coincidência pode ser notada nas histórias narradas por Clarice e por João Evangelista. Em uma e em outra, há referências ao momento do dia em que a sede aparece. É meio-dia. Ou: a hora sexta — quando, segundo acreditavam alguns padres da Idade Média, surgia a figura do “demônio do meio-dia” para aliciar os bons espíritos dedicados à ascese moral. O receio dos religiosos não era infundado, pois, conforme explica Giorgio Agamben, no livro Estâncias, uma das características notórias da melancolia era o desregramento erótico, que assumia, para alguns, como a monja beneditina e médica Hildegard von Bingen, o “aspecto de um transtorno sádico e selvagem”.

O pensador italiano observa ainda que existia desde Aristóteles uma tradição que costumava associar o humor negro ao pendor para a poesia e para as artes. Assim, estabeleceu-se uma associação ambivalente entre a contemplação e o abatimento, que, a partir da filosofia dos primeiros padres católicos, ganharia relevância no imaginário renascentista. A melancolia passaria a signo reversível, como duas faces de uma mesma moeda, pois admitiria propensões contrárias sob o mesmo diagnóstico. Tal identificação está, para Agamben, entre “os mais surpreendentes resultados da ciência psicológica medieval”, uma vez que “a retração do acidioso não delata um eclipse do desejo, mas sim o fato de tornar-se inatingível o seu objeto: trata-se da perversão de uma vontade que quer o objeto, mas não quer o caminho que a ele conduz e ao mesmo tempo deseja e obstrui a estrada ao próprio desejo”. O paradoxo reside portanto no fato de que o desejo não cessa, mas o ânimo para a busca de sua realização, esse sim, esmorece — o desejo “se comunica com seu objeto sob a forma da negação e da carência”, conclui.

Nesse jogo de cara ou coroa, como fazer virar para cima a face positiva da melancolia?

Voltemos ao meio-dia — “é a hora central do dia, o ponto que determina a passagem de uma parte a outra da jornada. O meio do tempo assinalando um antes e um depois. O meio do caminho ou a encruzilhada da vida”, afirma Tolentino, investindo o termo de um sentido que extrapola o estritamente cronológico. É o momento em que, na imagem contundente de João Cabral de Melo Neto, “[…] o sol é estridente,/ a contrapelo, imperioso,/ e bate nas pálpebras como/ se bate numa porta a socos” (“Graciliano Ramos”, em Terceira feira, 1961).

Está subjacente nos versos do poeta pernambucano a insurgência de um despertar de ânimo que, todavia, como explica Agamben, resta dormente no estado melancólico. O sol insidioso do meio-dia — o demônio meridiano dos padres medievais — é portanto o mesmo que, “estridente, a contrapelo”, contém o antídoto indefectível contra a letargia — bate nas fragilíssimas pálpebras com a violência desmedida de um imperativo ético: o primado da alegria.

Para fazer virar para cima a face positiva da melancolia, José Tolentino lembra da proposta elaborada por Simone Weil de uma “educação do desejo”. Ensina ele: é preciso não ceder à tentação das substituições e aprender a permanecer “na falta, na incompletude, no vazio e na espera”. E continua: não é nosso desejo que alcança Deus, mas “se permanecermos sedentos e desiderantes é o próprio Deus que desce à nossa humanidade para encher de plenitude o nosso desejo”.

Não poderia deixar de notar a semelhança entre a imagem acima — do “Deus que desce à nossa humanidade para encher de plenitude o nosso desejo” — e o “estado de graça”, definido por Clarice na célebre crônica de mesmo nome, também incluída em Todas as crônicas (2018). A escritora brasileira fala em “anunciação” — “como se o anjo da vida viesse me anunciar o mundo”;

[…] há uma bem-aventurança física que a nada se compara. O corpo se transforma num dom. E se sente que é um dom porque se está experimentando, numa fonte direta, a dádiva indubitável de existir materialmente. […] No estado de graça vê-se às vezes a profunda beleza, antes intangível, de outra pessoa. […] E exatamente porque depois da graça a condição humana se revela na sua pobreza implorante, aprende-se a amar mais, a perdoar mais, a esperar mais.

Clarice adverte que a graça não se espera: “só vem quando quer e espontaneamente”. No entanto, pode-se dizer que há um estado de abertura, em que a pessoa se coloca disponível para recebê-la. Tolentino, em outro livro, A mística do instante (2016), sugere como fazê-lo, ao mesmo tempo que, sem a intenção, joga luz sobre um dos motivos mais recorrentes da obra de Clarice. Diferentemente da mística entendida como auscultação do mistério (de Deus) na interioridade do ser, Tolentino propõe uma mística intermediada pelo corpo e aberta ao imponderável de cada instante. A via de acesso ao divino passa, assim, pela experiência direta com as pessoas e o mundo material e cotidiano. Trata-se de uma mística sensual, que só pode ser encontrada no momento presente, que é sempre o meio do caminho, nunca o fim.

*

Como epílogo, transcrevo um trecho da crônica “Prece por um padre”, de Todas as crônicas (2018). Clarice, aceitando, por hipótese, o título de mestre espiritual conferido por Tolentino a ela e aos escritores em geral, repete o gesto do sacerdote português a seus colegas da Cúria Romana e dedica a um padre anônimo (que lhe teria pedido para rezar por ele) este emplasto religioso contra a morte:

Uma noite gaguejei uma prece por um padre que tem medo de morrer e tem vergonha de ter medo. Eu disse um pouco para Deus, com algum pudor: alivia a alma do Padre X…, faze com que ele sinta que Tua Mão está dada à dele, faze com que ele sinta que a morte não existe porque na verdade já estamos na eternidade, faze com que ele sinta que amar é não morrer, que a entrega de si mesmo não significa a morte, faze com que ele sinta uma alegria modesta e diária, faze com que ele não Te indague demais, porque a resposta seria tão misteriosa quanto a pergunta, faze com que ele se lembre de que também não há explicação porque um filho quer o beijo de sua mãe e no entanto ele quer e no entanto o beijo é perfeito, faze com que ele receba o mundo sem medo, pois para esse mundo incompreensível nós fomos criados e nós mesmos também incompreensíveis […].

Quando os mistérios se tocam — a pletora erótica de um beijo perfeito do filho em sua mãe — é que a vida, para além de qualquer entendimento, vibra a esmo — de alegria.

*Foto: Clarice, aos dez anos, no jardim Derby, veste luto pela morte da mãe. Recife, 1930. Acervo Clarice Lispector/ IMS.

Notas

“O amor tem cheiro de morte”

, “O amor tem cheiro de morte”. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/07/23/o-amor-tem-cheiro-de-morte/. Acesso em: 15 dezembro 2025.

O sexo

Uma única vez Clarice Lispector escreveu deliberadamente sobre sexo. Foi no livro A via crúcis do corpo. Ainda assim, observa seu biógrafo Benjamin Moser, “o tema que une os contos coletados não é, na verdade, o sexo. É a maternidade”. De fato, a partir desse comentário, é possível pensar que a escritora desfaz a linha de fronteira que separa amor maternal e desejo sexual, unindo os dois instintos numa conjunção, tal como no orgão feminino comum ao nascimento e à cópula.

Moser conta também que alguns amigos da escritora a consideravam “comoventemente ingênua” em matéria de sexo. A amiga e artista plástica Maria Bonomi, que à época havia se separado do marido para relacionar-se com uma mulher, teria sido sabatinada com “perguntas técnicas” por uma Clarice curiosa. Interesse estampado também na matéria “O vício impune da literatura”, publicada na Folha de S.Paulo, em 1992, na qual se lê sobre suposta “troca de revistas pornográficas importadas” entre ela e o poeta Carlos Drummond de Andrade.

Em todo caso, é a própria Clarice que se esquiva, no prefácio de A via crúcis do corpo: “se há indecência nas histórias a culpa não é minha. Inútil dizer que não aconteceram comigo”. Em 1975, em entrevista concedida à revista Manchete por ocasião do lançamento do livro, reitera: “Até me espantei […] como eu sabia tanta coisa sobre o assunto”.

Se é verdade que quase não há sexo na obra de Clarice, não menos verdadeiro é o fato de sua literatura estar impregnada de erotismo; um erotismo que toca o extremo da matéria. O melhor exemplo disso é a experiência mística por que passa a personagem principal de A paixão segundo G.H., quando come a massa branca da barata morta que acabara de esmagar junto à porta do armário, no microcósmico quarto de empregada.

O incidente com G.H. pode ser entendido à luz do que o pensador francês Georges Bataille, no livro O erotismo, classifica como “erotismo sagrado”, que está ligado ao mundo concreto, a seus objetos, e, por isso, se distingue do erotismo dos corpos ou dos corações — uma experiência que, desse modo, independe tanto da relação sexual como de outra pessoa.

Para ele, a despersonalização da fusão erótica pode ser aproximada daquela experimentada no rito sacrificial. Diante da imolação da vítima — no caso de G.H., a barata —, o que se revela aos sentidos dos participantes, que não raro a comem, é a experiência do sagrado, afirma; “em decorrência da morte violenta […] o que subsiste e que, no silêncio que cai, experimentam espíritos ansiosos, é a continuidade do ser, a que a vítima é devolvida”.

Continuidade e descontinuidade são termos que devem ser entendidos como a reintegração de um ser mortal e singular, por isso descontínuo, à fermentação geral da vida, indistinta e impessoal. Tal como na máxima de Lavoisier, de que “na natureza nada se perde e nada se cria, tudo se transforma”, o corpo serve de alimento às bactérias, que participam do processo de apodrecimento da carne humana e põem em marcha o incessante ciclo de nascimento e morte.

O horror imediato experimentado com a putrefação do cadáver revela a homens e mulheres a afinidade incontornável entre a “corrupção fétida” da morte e a essência da própria vida. Desse modo, se por um lado “o horror nos afasta, ligado ao apego que a vida inspira, por outro, um elemento solene, ao mesmo tempo terrificante, nos fascina, introduzindo uma perturbação soberana”.

Uma perturbação de tal ordem, continua Bataille, é desencadeada no contato direto com o que comumente é chamado de náusea ou repugnância; o termo “perturbação soberana”, usado por ele, se ajusta perfeitamente ao que críticos e a própria Clarice chamaram de “momento existencial”, “espanto”, “flash”, “epifania” etc., em sua obra. A superação do nojo vista no sacrifício é a mesma que, diante de um evento inesperado, vai fazer rebentar, nas personagens de Clarice, a desordem advinda com a vivência erótica ligada ao real; experiência que, ainda segundo o pensador francês, por não fazer parte da nossa vontade, “é sempre uma espera do aleatório”.

Mas se para a escritora, como vimos, o sexo não tem primazia, o que é que se revela então no flagrante erotismo de seus textos? Em A paixão segundo G.H., ela mesma responde: “Ah, as pessoas põem a ideia de pecado em sexo. Mas como é inocente e infantil esse pecado. O inferno é mesmo o amor. Amor é a experiência de um perigo de pecado maior — é a experiência da lama e da degradação e da alegria pior”.

O amor

No conto “Amor”, do livro Laços de família, Clarice Lispector narra a história de Ana, uma dona de casa que está no bonde, cansada, voltando do mercado para casa, e pensando descuidadamente no cotidiano do lar: o fogão enguiçado, os filhos, o marido — a tudo, Ana dava “sua mão pequena e forte, sua corrente de vida”, lê-se.

A narradora adverte o leitor: “certa hora da tarde era mais perigosa. […] quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções”. Nessa hora, Ana ficava inquieta. Sua vida antes da família, que, como ficamos sabendo, era “uma exaltação perturbada”, não estava mais ao seu alcance, pois ela “criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto” — em ordem.

Absorta em seus pensamentos, Ana é desorientada, de súbito, pela visão de um homem cego mascando chiclete: “[…] o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado”.

Cabe observar o modo original como Clarice encena alguns clichês, lhes devolvendo o sentido antes gasto das palavras. A descrição trivial do cego — olhos abertos na escuridão, o que equivale ao lugar-comum “ver na escuridão” — afigura-se metaforicamente como espécie de anseio existencial da personagem: a calma compreensão da vida em plena ebulição, em sua desordem intrínseca. A mastigação que parecia fazê-lo oscilar entre o riso e a seriedade evoca, do mesmo modo, a reconciliação, “sem sofrimento”, entre opostos, numa unidade primordial e, para usar o termo de G.H., “inexpressiva”.

De repente, o bonde dá uma freada e as compras que estavam no colo de Ana caem no chão. Ela dá um grito. O condutor para. Ela recolhe o que estava pelo chão. Mas os ovos se haviam quebrado: “gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede” do saco de tricô. Aqui, assistimos à representação de mais uma frase feita: “a vida que escorre pelas mãos”. A gema, óvulo da galinha, se fertilizada pelo macho, dá a vida; se não, é vida que poderia ter sido e não foi. Desse modo, descartado o despojo de vida — a sua própria? —, toda a frágil harmonia do cotidiano de Ana também se esvai.

Percebe então uma ausência de lei, não sabe mais para onde ir — “ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. […] E um cego mascando goma despedaçava tudo isso”. Sem perceber, perde o ponto de casa e, num rompante, desce do bonde. Anoitecia. Aos poucos, reconhece o lugar onde está e adentra o Jardim Botânico. Surgem aqui equivalências com o Jardim do Éden, que, por um lado desloca para o parque real na cidade do Rio de Janeiro o paraíso mítico judaico-cristão, mas, por outro, o descreve em novos termos. Ao contrário da atmosfera amena e afável do Gênesis, instala-se, em “Amor”, o horror e a degradação:

Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. […] era um mundo de se comer com os dentes […]. era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

A moral

Bataille, em outro texto, o ensaio “A linguagem das flores”, publicado na revista Documents, em 1929, critica a imagem da flor como símbolo da descoberta do amor. A frequente associação se explicaria, segundo ele, pelo fato de que tanto o fulgor das flores como os sentimentos humanos são “casos de fenômenos que precedem a fecundação”. No entanto, para homens e mulheres, o que se torna signo do desejo, na flor, é a corola, seu aspecto mais decorativo, e não o orgão sexual, um “tufo de aspecto sórdido”, encoberto pelas pétalas. A aparência da flor equivale, portanto, a um ideal de beleza humano e, por isso, nada diz sobre sua real natureza — as flores “murcham como lambisgóias envelhecidas e maquiadas demais, e rebentam ridiculamente sobre os talos que pareciam levá-las às nuvens”, afirma o pensador, para quem “o amor tem cheiro de morte”.

Para destruir a impressão de harmonia da natureza vegetal, continua Bataille, basta imaginar “a visão fantástica e impossível das raízes que fervilham, sob a superfície do solo, nojentas e nuas como vermes”. À raiz, em contraposição ao talo, poderia ser então atribuído o mais baixo valor moral. As semelhanças entre o texto de Clarice e os argumentos de Bataille são patentes (e um tanto quanto inusitadas). Ela escreve: “O impulso erótico das entranhas se liga ao erotismo das raízes retorcidas das árvores. É a força enraizada do desejo. Minha truculência. Monstruosas vísceras e quentes lavas de lama ardente”. [1] O tema reaparece em A paixão segundo G.H.: “o imundo é a raiz — pois há coisas criadas que nunca se enfeitaram”.

Em “Amor”, a experiência de Ana é, portanto, a experiência do interdito. A narradora alerta o leitor: “a moral do jardim era outra”. Muito diferente do jardim bíblico, onde deus já ditava ordens ao primeiro casal, no jardim de Ana (ou de Clarice), é a própria personagem que encontra, sem qualquer ditame, e com um misto de atração e repulsa, a despersonalização erótica que reconcilia bem e mal num todo indistinto e amoral. Nas palavras de Espinoza, de quem Clarice era leitora entusiasta, Ana se deixa “afetar” pelas coisas do mundo e segue o rastro de um aprendizado ético que tem o corpo como sede e a experiência real como lastro. De modo muito próximo ao pensamento do filósofo holandês, Clarice reflete, em A paixão segundo G.H., sobre a moralidade:

Seria simplório pensar que o problema moral em relação aos outros consiste em agir como se deveria agir, e o problema moral consigo mesmo é conseguir sentir o que se deveria sentir? Sou moral à medida que faço o que devo, e sinto como deveria? De repente a questão moral me parecia não apenas esmagadora, como extremamente mesquinha. O problema moral, para que nos ajustássemos a ele, deveria ser simultaneamente menos exigente e maior. Pois como ideal é ao mesmo tempo pequeno e inatingível. Pequeno, se se atinge; inatingível, porque nem ao menos se atinge. […] A solução tinha que ser secreta. A ética da moral é mantê-la em segredo. A liberdade é um segredo.

O segredo

Ana respirava o perfume pútrido das plantas em decomposição — até que se lembra dos filhos. Sente-se imediatamente culpada. Mas por quê? “De que tinha vergonha?”. Ao sair do jardim, já não era a mesma. Agora, “seu coração se enchera com a pior vontade de viver”. E isso era incompatível com a rotina de antes. Ainda em transe, chega em casa, recebe convidados para jantar; as crianças brincam na sala. Tudo parecia normal, mas ela estava ausente e alucinada e, involuntariamente, assusta um dos filhos:

“Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe o rosto, esquentando-o”.

Ana tinha os sentidos saturados e a casa assumia um vulto excessivo. Ouve um estouro no fogão. “O que foi?!”, pergunta ao marido, em sobressalto. Ele fica surpreso com o medo da mulher; “não foi nada, disse, sou um desajeitado”. Traz ela para perto de si e lhe faz um carinho. Ana transfere para o marido todo aquele amor de quem vira a morte de frente e lhe diz com gravidade: “Não quero que lhe aconteça nada, nunca!”. Ele acha graça; “é hora de dormir”, diz. Conduz então a mulher até a cama, “afastando-a do perigo de viver”; de volta à noite que sucede o dia que sucede a noite — a vida prática, que, miserável, contudo, suporta a existência de quem sabe o amor.

[1] O trecho, escrito à mão no verso do datiloscrito de “Objeto gritante” (texto que deu origem ao livro Água Viva), é citado pelo crítico Carlos Mendes de Sousa, em Clarice Lispector: pinturas.

Notas

“As mulheres são selvagens”

, “As mulheres são selvagens”. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/05/13/as-mulheres-sao-selvagens/. Acesso em: 15 dezembro 2025.

1

A revista “Cultura|s”, do jornal La Vanguardia, festejou, recentemente, a edição em espanhol do livro Todos los cuentos, de Clarice Lispector. A tradução é compartilhada por Cristina Peri Rossi, Elena Losada, Juan García Gayo, Marcelo Cohen e Mario Morales, e tem prefácio de Benjamin Moser, também autor de ¿Por qué este mundo?, biografia de Clarice publicada pela mesma editora, Siruela, em 2017.

No artigo “Toda la vida de uma mujer”, assinado por Laura Freixas, a escritora brasileira é aclamada como um mito, conhecida no Brasil somente pelo primeiro nome. Clarice, segundo a jornalista, além de gozar de prestígio acadêmico, é popular, e suas obras inspiram canções, séries de televisão, peças de teatro e coreografias. A consagração internacional teria vindo, no entanto, postumamente, quando a escritora e feminista francesa Hélène Cixous elevou a brasileira a máximo expoente da escrita feminina e despertou o interesse de editores europeus e universidades norte-americanas.

A jornalista assinala ainda a capacidade da escritora brasileira “mergulhar com a profundidade que até agora ninguém conseguiu na exploração da identidade da mulher”. Donas de casa, esposas burguesas, matriarcas rodeadas pelo clã familiar; para ela, as personagens femininas de Clarice, aparentemente convencionais e pouco interessantes, guardam, por sob a superfície, o germe do inconformismo — “as mulheres são selvagens”, afirma. Ainda são “alegres, livres, poderosas, felizes em sua simbiose emocional e sensorial com a natureza”.

Esse modo feminino de estar no mundo pode ser percebido, segundo a jornalista, desde o primeiro conto de Clarice, “Triunfo”, publicado em 1940, na revista Pan.

2

Vale a pena determo-nos com mais cuidado nesse conto.

Luísa, a personagem principal, desperta em sua casa sob um silêncio inabitual, interrompido pela pancada alta e sonora do relógio, que soa como prenúncio do que virá.

Desde o início do conto, o ritmo e a escolha das palavras descrevem o despertar de Luísa em comunhão erótica com o dia nascente. A começar pela imagem da “mancha de sol”, que avança “aos poucos pela relva do jardim” e encontra uma abertura na janela — “Penetra.”, escreve. O verbo, usado no tempo presente (que coincide com o imperativo da segunda pessoa, tu), soa potente, viril, sozinho na oração. A “relva” remete à imagem dos pelos pubianos. E quando a claridade do sol alcança o quarto, a personagem, ainda deitada na cama, “um braço cá, outro lá, crucificada pela lassidão”, franze as sobrancelhas e faz um trejeito com a boca, evocando o prazer orgástico. O dia “vai-lhe entrando pelo corpo”.

Luísa, porém, percebia uma ausência: “… e aqueles ruídos familiares de toda manhã?”, pergunta-se. Pois é no silenciar destes que surgem novos rumores. Ouve “passos longínquos, miúdos e apressados”, “folhas secas pisadas”; pensa em uma criança correndo na estrada. A essa altura, ainda se encontra no limiar entre o sono e a vigília, estado de consciência chamado de hipnagogia, quando os sentidos estão aguçados e receptivos e podemos ser acometidos por visões oníricas iluminadoras.

De repente, de novo o silêncio, “absoluto, como de morte”.

Ficamos sabendo que o marido a abandonara na tarde anterior, após uma briga, mais uma, às quais Luísa sempre reagira amedrontada. Absorta na gravidade da casa vazia, vai então até à mesa de Jorge, com a esperança de achar algum bilhete que lhe dissesse algo como: “Apesar de tudo, eu te amo. Volto amanhã”. Em vez disso, encontra uma folha de papel na qual ele confessava sentir-se medíocre por não conseguir fixar a atenção no livro que escrevia. Aqui, acontece um ato falho revelador. Luísa identifica-se com Jorge e toma para si o sentimento dele — “E ele sabia-o então?”, pergunta-se. Era o que também “ela sempre sentira, vagamente apenas: mediocridade”.

Antes disso, acompanhamos uma discussão do casal, recordada por Luísa. Ele a acusa: “Você, você me prende, me aniquila! Guarde seu amor, dê-o a quem quiser, a quem não tiver o que fazer! Entende? Sim! Desde que a conheço nada mais produzo! Sinto-me acorrentado. Acorrentado a seus cuidados, a suas carícias, ao seu zelo excessivo, a você mesma! Abomino-a!”.

Em brigas anteriores, ela, normalmente “tão cheia de dignidade, tão irônica e segura de si”, suplicou-lhe, pálida, que não a abandonasse. Mas, desta vez, conforme ele, Luísa interrompera-o “no momento em que uma nova ideia brotava, luminosa, em seu cérebro. Cortara-lhe a inspiração no instante exato em que ela nascia, com uma frase tola sobre o tempo, e terminando com um detestável: ‘não é, querido?’”

A cena revela uma incompatibilidade comum entre homens e mulheres. Segundo Simone de Beauvoir, o homem deseja alcançar a transcendência, e, para isso, nascido, é claro, da mulher, busca desprender-se dela para seguir adiante a realização de um projeto. A mulher, por sua vez, está vinculada à natureza; é o repuxo que atrai o homem para a imanência, para a terra. Assim, é motivo da maior indignação para Jorge o amor frugal e devotado de Luísa; ele diz sentir-se “acorrentado a seus cuidados, a suas carícias, ao seu zelo excessivo”.

Ainda para Simone de Beauvoir, a mulher-mãe tem “um rosto de trevas: ela é o caos de que tudo saiu e ao qual tudo deve voltar um dia; ela é o Nada. (…) Ele aspira ao céu, à luz, aos picos ensolarados, ao frio puro e cristalino do azul; e, a seus pés, há um abismo úmido e quente, obscuro, pronto para abocanhá-lo; numerosas lendas mostram-nos o herói que se perde para sempre recaindo nas trevas maternas: caverna, abismo, inferno”.

Outra divergência que aparece com destaque no texto é a inclinação do homem à razão, contraposta à sensualidade da mulher. “A mulher é mais sensual do que o homem”, afirma Kierkegaard. A partir de tal raciocínio, seria possível pensar que o ciclo menstrual (e seus possíveis desdobramentos: a gravidez, o parto), em concerto com os movimentos da lua e das marés, é, por si só, manifestação evidente da mulher como parte sensível de uma harmonia cósmica.

É também nesse sentido que Hélène Cixous, citada no artigo da revista “Cultura|s”, observa a incidência, na obra de Clarice, de personagens que apresentam problemas de visão. Para ela, esse aspecto indica uma forma de aproximação com o mundo que não passa pelo distanciamento racional, mas pela fusão emocional e sensorial. Cabe lembrar que a visão, desde antes de Aristóteles — ainda que com este, na Metafísica, tenha sido motivo de detida reflexão —, é um sentido que está tradicionalmente associado à razão.

Há, portanto, um elogio da sensualidade que perpassa toda a narrativa.

Vale a pena repetir que o motivo da briga que culminou com a separação do casal foi “uma frase tola sobre o tempo” dita por Luísa. E que ela cometera a imprudência de interromper Jorge justo “no momento em que uma nova ideia brotava, luminosa, em seu cérebro”. Antes, a narradora descreve a imagem de uma cena do casal muitas vezes repetida: “Ela, calada, defronte dele. Ele, o intelectual fino e superior”.

Encontramos ainda outros indícios dessa valorização ao longo do texto. Quando Luísa se dá conta de que Jorge havia partido, passa a mão pela testa a fim de “afastar os pensamentos”. Em outro momento, lemos: “Pareceu-lhe ouvir seu riso irônico, citando Schopenhauer, Platão, que pensaram e pensaram…”. O ato de pensar, que ecoa aqui de forma um tanto irônica — e que está também espelhado em palavras como “idéia”, “cérebro”, “pensamentos” e nos nomes de filósofos —, soa em flagrante oposição à falta de sensibilidade de Jorge, incapaz de acolher o gesto amoroso da mulher sem pensar para além de seus interesses egoístas.

Tal perspectiva aparece exemplarmente no papel reservado à intuição. A intuição — entendida como sabedoria do corpo sobre a qual não se tem explicação — é o motor principal das ações de Luísa e a conduzirá ao êxtase erótico no desfecho do conto. A intuição é tema de outros textos de Clarice, sendo parte, inclusive, de seu processo criativo. Em uma de suas crônicas (“Forma e conteúdo”, Todas crônicas, p. 269), registra: “Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha”.

Assim, desde o despertar, tocada pelo sol e tomada pelos ruídos da rua, Luísa entrega-se sinestesicamente aos estímulos que estão a seu redor. À falta do marido, chora. Depois (e aqui as frases curtas acompanham a respiração ofegante da personagem), “vai até a pia e molha o rosto. Sensação de frescura, desafogo. Está despertando. Anima-se. Trança os cabelos, prende-os para cima. Esfrega o rosto com sabão, até sentir a pele esticada, brilhante”. Seus gestos são impetuosos, assim como o movimento da natureza e das coisas: “abre as janelas de uma vez”; “o ar novo entra rápido”; “o relógio bate mais vigorosamente”.

Luísa passa então a perceber com frescor renovado o ambiente íntimo da casa, que, antes, com a presença de Jorge, parecia obnubilado: “Sempre vivera ali com ele. Ele era tudo. Só existia ele. Ele tinha ido embora. E as coisas não estavam de todo destituídas de encanto. Tinham vida própria”.

Deixando-se levar por um arrebatamento de origem desconhecida, “como se temesse pensar” (de novo o mal do “pensamento”), Luísa pega algumas peças de roupa e se põe a lavá-las no grande tanque no fundo do quintal. A descrição mais parece a de um ato sexual: “Arregaçou as mangas e as calças do pijama e começou a esfregá-las com sabão. Assim inclinada, movendo os braços com veemência, o lábio inferior mordido no esforço, o sangue pulsando-lhe forte no corpo, surpreendeu a si mesma”.

Terminada a tarefa, após um breve intervalo, uma nova onda leva Luísa enfim ao clímax:

Olhou a torneira grande, jorrando água límpida. Sentia um calor… Subitamente surgiu-lhe uma ideia. Tirou a roupa, abriu a torneira até o fim, e a água gelada correu-lhe pelo corpo, arrancando-lhe um grito de frio. Aquele banho improvisado fazia-a rir de prazer.

Importante notar aqui que a “ideia” que surge a ela é de natureza diferente da masculina; é uma ideia-ação, provocada por e desencadeadora de um gesto consequente.

3

A jornalista de La Vanguardia ressalta a importância da voz feminina de Clarice num mundo em que as mulheres são habitualmente definidas pelos homens: “políticos, teólogos, cientistas, poetas”, lista Laura Freixas. E é justamente nesse mundo de papéis e tarefas definidas pela autoridade masculina que a escrita clariciana engendra uma possibilidade de ruptura. Curioso observar, por exemplo, que a tarefa mais caricata de uma dona de casa — lavar roupas no tanque — venha a ser decisiva para experiência extática que conduzirá a personagem à emancipação em relação ao marido — o triunfo de Luísa. Pois o medo de ser abandonada é nota reiterada no decorrer da narrativa: “Se ele for embora, eu morro, eu morro”; ou “Como viveria agora? (…) Repetia, repetia sempre: e agora?”.

Se não se pode dizer que Clarice tenha sido uma feminista stricto sensu, a autora, em suas narrativas, traz a primeiro plano mulheres comuns, que vivem a tensão entre o jugo e a autonomia em uma sociedade cujas leis são criadas predominantemente por homens. Na aparente fragilidade das personagens femininas, dá a ver a força de quem conhece as coisas pelos sentidos, de perto, por dentro.

Essa força irrompe de forma inusitada no desfecho do conto. A liberdade conquistada por Luísa não lhe inspira, como seria fácil supor, a autonomia ou o desejo de viver só (ainda que agora fosse capaz), mas sim o oposto, a sensação serena e confiante de que Jorge voltaria: “Um morno raio de sol envolveu-a. Riu. Ele voltaria, porque ela era mais forte”. Assim termina “Triunfo”, primeiro passo de uma estreante.

Notas

Clarice em Paris

, Clarice em Paris. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/03/11/clarice-em-paris/. Acesso em: 15 dezembro 2025.

A tradicional livraria parisiense Shakespeare and Company expôs com destaque em suas prateleiras a versão para o inglês do livro Todos os contos, de Clarice Lispector. A edição, cuja tradução, de Katrina Dodson, foi reconhecida pela instituição Pen América, dos EUA, com o prêmio de melhor tradução de 2016, ocupou o lugar destinado às sugestões de leitura da equipe de livreiros da loja, especializada em literatura de língua inglesa.

Livraria Shakespeare and Company, em Paris.

A nota que acompanhava a exibição do livro ressaltava que a reunião dos contos de Clarice em inglês eram ótima oportunidade para um público maior tomar conhecimento da importante escritora brasileira. Descreviam-na como dona de linguagem poética e ritmo hipnotizante, que “carregam o leitor de forma fantástica pelo universo sublime de personagens femininas, do inconsciente humano e de amores não correspondidos”.

A livraria possui uma longa história na capital francesa. A primeira loja foi aberta em 1919, pela americana Sylvia Beach, e se tornou um ponto de encontro para artistas como Ernest Hemingway, Gertrude Stein, Man Ray, Djuna Barnes, Ezra Pound e T. S. Eliot. Em 1922, a Shakespeare and Company editou a obra-prima da literatura moderna, Ulisses, de James Joyce, que havia então sido proibida no Reino Unido e nos Estados Unidos.

Cabe lembrar que é da epígrafe de outro título do escritor irlandês, Retrato do artista quando jovem (“Ele estava só. Estava abandonado, feliz, perto do coração selvagem da vida”), que Clarice, sem saber, e aceitando sugestão do amigo Lúcio Cardoso, tomou emprestado o nome para seu primeiro livro.

A loja, que desde a abertura estava localizada no número 12 da rua Odeon, foi obrigada a fechar em junho de 1940 durante a ocupação alemã em Paris. Terminada a guerra, outro americano, George Whitman, abriu na rua de la Bûcherie, 37, a livraria Le mistral, tendo como modelo a de Sylvia. Com a morte da proprietária, em 1964, George, que havia recebido dela, seis anos antes, autorização para uso do nome original, trocou então seu letreiro para Shakespeare and Company.

Também sob a nova direção, o lugar foi frequentado, em diferentes épocas, por escritores como Allen Ginsberg, Henry Miller e Anaïs Nin, hospedou amigos (pois dispunha de cômodos para esse fim) e abrigou, entre 1978 e 1981, a sede do jornal literário Paris Voices. Segundo definição do dono, o estabelecimento poderia ser considerado “uma aventura socialista disfarçada de livraria”.

Em foto publicada no perfil do instagram da livraria, 8 de março passado, o rosto de Clarice aparecia ao lado do da atriz Marianne Faithfull e outros, estampados nas capas dos livros erguidos pelas frequentadoras da loja durante a celebração do Dia Internacional da Mulher.

Capa do livro Complete stories, de Clarice Lispector, na festa de comemoração do Dia Internacional da Mulher promovida pela livraria parisiense Shakespeare and Company.

O destaque dado à escritora brasileira por uma livraria especializada em idioma inglês — e que foi, como vimos, casa editorial de um ilustre inventor da língua, como Joyce —, além de reafirmar a qualidade já avalizada da tradução de Katrina Dodson e os esforços de Benjamin Moser na promoção da autora nos países anglófonos, dá a dimensão do prestígio cada vez maior que Clarice tem alcançado fora do Brasil.

Notas

Amar o amor

, Amar o amor. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/02/05/amar-o-amor/. Acesso em: 15 dezembro 2025.

Antes de publicar seu primeiro livro, ainda estudante de Direito, Clarice Lispector havia trabalhado na imprensa como repórter e redatora da Agência Nacional e em periódicos como a revista Vamos ler! e o jornal A Noite. No final da década de 1960, já então consagrada, aceitou o convite para assumir uma página de entrevistas na célebre Manchete. Durante quase um ano e meio, personagens importantes da literatura, teatro, música, artes plásticas e esportes passaram pela sabatina da escritora; entre elas amigos como Lygia Fagundes Telles, Rubem Braga, Maria Bonomi e também Vinicius de Moraes.

O que logo chama atenção nas conversas com Clarice é uma espécie de inadequação para a função no que diz respeito à técnica jornalística: é pessoal demais, por vezes indiscreta e, a pior das heresias, fala de si como se fosse ela a entrevistada. Não poderia ser diferente e, claro, a revista sabia disso — a sessão receberia o nome de “Diálogos possíveis com Clarice Lispector”. Mais do que possíveis, talvez fosse melhor dizer improváveis.

Na entrevista com Vinicius, publicada em 1969, a primeira abordagem soa logo como uma provocação: “Vinicius, você amou realmente alguém na vida?” Ora, em tese, essa não era uma pergunta a ser feita, ainda mais assim de sopetão, ao famoso amante das mulheres e maior expoente da lírica amorosa no Brasil, autor de sonetos que são monumentos da língua portuguesa e se equivalem aos de Camões em importância.

A escritora explica que telefonara para uma das ex-esposas do poeta, que lhe disse que ele quando ama se dá a tudo por inteiro: crianças, mulheres, amizades. Por isso, a ela, Clarice, teria lhe vindo a ideia de que Vinicius amava mesmo o amor e nele incluía as mulheres. “Que eu amo o amor é verdade”, responde, “mas isso não quer dizer que eu não tenha amado as mulheres que tive. Tenho a impressão que, àquelas que amei realmente, me dei todo.”

Clarice, certamente por conhecer a biografia do poeta, em via de se casar pela sétima vez, avança: “Acredito, Vinicius. Acredito mesmo. Embora eu também acredite que quando um homem e uma mulher se encontram num amor verdadeiro, a união é sempre renovada, pouco importam as brigas e os desentendimentos: duas pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar no mesmo par novos amores”.

Bonita reflexão sobre o amor, em tudo contrária, no entanto, à do poeta, que argumenta: “É claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói para a eternidade é o amor-paixão, o mais precário, o mais perigoso, certamente o mais doloroso. Esse amor é o único que tem a dimensão do infinito”.

A entrevistadora retoma a palavra, desassombrada: “Você acaba um caso porque encontra outra mulher ou porque se cansa da primeira?”

Na minha vida tem sido como se uma mulher me depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor-paixão pela sua própria intensidade não tem condições de sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no dístico final do meu “Soneto de fidelidade”: “que não seja imortal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure”.

A entrevista prossegue, mas por enquanto quedemos aqui. Com perguntas tão diretas e desconcertantes, Clarice toca de modo intuitivo em pontos sensíveis da personalidade amorosa de Vinicius. O amor-paixão é um deles. Segundo o filósofo Alain Badiou [1], o amor romântico destaca o êxtase inicial do primeiro encontro, que não seria, para ele, o momento mais importante da relação amorosa, baseada sim em uma construção duradoura, a que também dá o nome de “aventura obstinada”. Assim, diferentemente da apreensão do instante como única dimensão temporal da eternidade, propõe uma concepção “menos milagrosa e mais laboriosa, ou seja, uma construção persistente, ponto por ponto, da eternidade temporal”.

Clarice concordaria com Badiou. Para Vinicius, porém, o amor deveria ser vivido no paroxismo; “mas amar é sofrer, mas amar é morrer de dor”, canta em um de seus afro-sambas, o “Canto de Xangô”, parceria com Baden Powell. O poeta deseja fundir-se com a amada, mas a consciência aguda do infortúnio lhe traz sofrimento. Adentrando as razões do coração que a própria razão desconhece, ele busca no renascimento do amor em novos pares tornar possível o impossível. O oposto da proposta de Clarice, de criar novos amores no mesmo par.

Viria daí a sensação de que, para o autor de “Soneto de fidelidade”, sua vida teria sido como se uma mulher o depositasse nos braços de outra. Por isso também é recorrente em seus versos a analogia entre a mulher real e a imaginada mulher ideal, de tal modo que uma assumisse qualidades da outra. Nenhum poema exemplifica melhor tal fusão do que “Epitalâmio”. Nele, ao fim de longa citação de nomes femininos — alguns que reforçam antiteticamente qualidades arquetípicas (Sombra / Alba, Vândala / Santa, Altiva / Suave), e outros que evocam mulheres supostamente reais (Alice, Maria, Nina, Linda, Marina, Maja, Clélia) com as quais tivera algum tipo de experiência amorosa — o poeta se espanta:

Vejo chegar alguém que me procura
Alguém à porta, alguma desgraçada
Que se perdeu, a voz no telefone
Que não sei de quem é, a com que moro
E a que morreu… Quem és, responde!
És tu a mesma em todas renovada?
Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu! Sou Eu!

O “Sou eu!” que ecoa enfaticamente no último verso do poema traz uma ambiguidade reveladora, pois pode tanto significar a resposta da mulher como a própria voz do poeta, que se confunde com ela ou até mesmo com todas elas — nesse caso, a polifonia proviria de tantas vozes quantas as mulheres evocadas. É uma resposta que reúne em um único sintagma poeta, mulheres reais e a mulher ideal (“a mesma em todas renovada”) e realiza no poema, portanto, a fusão, impossível na vida real, com a amada.

O amor devotado à mulher foi para o poeta a via mais importante para a plenitude amorosa. Mas não a única. Em sua primeira resposta a Clarice, afirma: “por esse amor eu compreendo a soma de todos os amores, ou seja, o amor de homem para mulher, de mulher para homem, o amor de mulher por mulher, o amor de homem para homem, o amor de ser humano pela a comunidade de seus semelhantes”. A conversa entre eles prossegue, mas, de repente, se calam.

Vinicius rompe o silêncio: “Tenho tanta ternura pela sua mão queimada…”.

Cabe lembrar que, três anos antes, Clarice provocara um incêndio em sua casa após adormecer com o cigarro aceso. Com graves queimaduras no corpo e correndo risco de morte, passou dois meses hospitalizada na Clínica Pio XII, em Botafogo, de onde saiu com sequelas, principalmente na mão direita.

Emocionada, a escritora se dirige ao leitor e reconhece: “este homem envolve uma mulher de carinho”.

Ao tocar numa questão dolorida da vida de Clarice, o poeta corresponde à alta carga emotiva instalada pela própria escritora desde o início da entrevista. O que a delicada observação de Vinicius revela aqui é o jogo amoroso no qual ambos estavam enredados — para um e para outro, amor e dor são sentimentos indissociáveis.

Uma espécie de sedução difusa envolve os dois. Clarice pede um poema para Vinicius. De improviso, ele compõe um retrato preciso e impactante da autora de A paixão segundo GH; atinge o centro de sua obsessão, a busca incessante do “eu” na imanência, e, na condição objetiva de Outro (como um espelho), lhe devolve subjetivamente a singularidade da existência, concentrada no dístico formado pelo próprio nome. Diz assim: “Você escreve uma palavra em cima e a outra embaixo porque é um verso”:

Clarice
Lispector

“Acho lindo o teu nome, Clarice”, elogia.

A entrevista acaba, mas a escritora leva até ao fim a apuração; telefona para uma das ex-esposas do poeta e lhe pergunta: “Como é que você se sente casada com Vinicius?” Ela responde: “Muito bem. Ele me dá muito. E mais importante do que isso, ele me ajuda a viver, a conhecer a vida, a gostar das pessoas.” Conversa também com uma “mocinha inteligente”: “Você teria um ‘caso’ com ele?” “Não (…) eu amo um outro homem. E Vinicius me revela ainda mais que eu amo aquele homem. A música dele faz a gente gostar ainda mais do amor. E ‘de repente, não mais que de repente’, ele se transforma em outro (…)”.

O epílogo acaba por revelar o incontornável desdobramento ético da obra de Vinicius, impregnada de vida e, a todo momento, ultrapassada por um efeito de contágio transformador de outras vidas. Estas, por sua vez, não vão lhe seguir o modelo, mas a coragem de viver.

Clarice termina: “Porque há grandeza em Vinicius de Moraes”.

[1] No livro Elogio ao amor (Martins Fontes, 2009)

*Foto em destaque: Vinicius de Moraes, 1971. Por Alécio de Andrade. Coleção Pirelli/MASP de Fotografia.

**Bruno Cosentino é cantor e compositor. Lançou os álbuns Amarelo (2015), Babies (2016) e Corpos são feitos pra encaixar e depois morrer (2017) e Bad Bahia (2020). É editor da revista de crítica musical Polivox e doutor em literatura brasileira na UFRJ, com tese sobre o amor e o erotismo nos poemas e canções de Vinicius de Moraes.

Notas

Rio de Clarice

, Rio de Clarice. IMS Clarice Lispector, 2019. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2019/01/18/rio-de-clarice/. Acesso em: 15 dezembro 2025.

Se a leitura da autora de obras-primas como Laços de família, A maçã no escuro e A paixão segundo G.H. convida ao mergulho num mundo circunspecto, por vezes sombrio, a visão da escritora que emerge de O Rio de Clarice, passeio afetivo pela cidade, de Teresa Montero, é definitivamente solar. Nas páginas do livro, lançado pela Editora Autêntica, o prazer de Clarice Lispector em flanar pelas ruas, florestas, parques e praias do Rio de Janeiro, onde chegou em 1935, aos 15 anos, fica evidente. Elaborada a partir dos passeios que Teresa promove desde 2008 pelos recantos preferidos da escritora na metrópole, a obra vai além, e oferece uma visão mais detalhada de bairros, ruas e monumentos. Entrelaça citações, depoimentos e histórias com mapas (com QR Code), imagens da época e outras feitas especialmente para a publicação pelo fotógrafo Daniel Ramalho.

A ideia de uma Clarice mais exuberante do que a versão introspectiva cristalizada publicamente ao longo dos anos é sugerida já no tom vermelho escolhido para cobrir a foto da capa, na qual a escritora curte a praia na década de 60, com pose de diva, ao lado dos filhos. Está também nos amarelos e laranjas vibrantes de uma pintura assinada pela própria Clarice (Explosão, de 1975), selecionada para ilustrar o verso da capa.

Explosão, de 1975. Pintura de Clarice Lispector. Foto: Arquivo Clarice Lispector/ Fundação Casa de Rui Barbosa.

“Um guia tem mais compromisso com horário, o dia que abre, que fecha. O passeio afetivo é muito mais um flanar pela cidade, a liberdade de passear a pé; então sempre achei que o livro tinha que ser algo por aí”, conta a editora Maria Amélia Mello, da Autêntica. “A ideia era contar um pouco a história dos bairros, principalmente o Leme, onde ela morou a maior parte da vida, e não simplesmente pontuar o que tem em cada lugar para você olhar”.

O Leme, que Clarice dizia ser a “minha terra”– ela chegou lá em 1959 com os dois filhos, Pedro e Paulo, já separada do marido Maury Gurgel Valente, e permaneceu até sua morte, em 1977 – ganhou o maior e merecido espaço. Desde 2016 a escritora, com seu cão Ulisses, está imortalizada no bairro numa estátua criada por Edgar Duvivier. A campanha pela instalação do monumento, que virou ponto turístico imediatamente, teve Teresa como uma espécie de madrinha. No livro, tanto o texto como as fotos daqueles tempos, a maioria cedida pelo Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (que, assim como o Instituto Moreira Salles, guarda parte do acervo da escritora), mostram uma Clarice que gostava de circular pela área, ir à feira, conversar com vizinhos, comprar cigarros, pilhas ou refrigerante no botequim em frente ao prédio.

Clarice sorri para o filho Paulo Gurgel Valente em frente à quitanda na rua Gustavo Sampaio, esquina com a rua Anchieta, no Leme. Década de 1960. Foto: Arquivo Clarice Lispector/ Fundação Casa de Rui Barbosa.

“O livro revela um outro lado dela. Por mais que Clarice fosse introspectiva, que não gostasse muito de fazer social, ela passeava pela cidade”, conta Teresa, autora de uma biografia da escritora (Eu sou uma pergunta, editora Rocco, 1999). “Quando comecei a pesquisar apareciam sempre as reportagens falando sobre Clarice fechada em seu apartamento, pouco disponível etc. A imagem de reclusa se cristalizou, e eu me perguntava se era mesmo assim”.

Algumas histórias contadas no livro comprovam a faceta mais brincalhona da escritora. Uma das amigas de Clarice, a artista plástica Maria Bonomi, lembra que, quando vinha ao Rio, elas batiam ponto no restaurante La Fiorentina, no Leme, a qualquer hora do dia ou da noite para conversar. Quando se sentiam incomodadas pela aproximação de outras pessoas, pegavam a pizza e iam comer na areia da praia, por sugestão da escritora, uma travessura celebrada com muitos risos.

Pilastra, com assinaturas de artistas, do restaurante La Fiorentina, no Leme. Foto: Daniel Ramalho.

Nas pesquisas mais aprofundadas e nas entrevistas com amigos e conhecidos, Teresa começou a descobrir uma mulher comum, que se fazia presente no dia a dia da cidade. “Claro que havia os momentos em que ela se concentrava no processo de criação, mas era mãe de dois filhos pequenos, tinha que circular pelo bairro”, lembra a autora, formada em Letras e Teatro, que vem trabalhando na ideia de um livro desde que iniciou os passeios.

A dedicação ao roteiro clariciano pelo Rio é tamanha que, no processo de saber mais sobre o Leme, Teresa acabou se mudando para lá há cinco anos. “Minha visão do bairro era outra, de quem ia apenas a passeio. Com a mudança ganhei uma série de referências do cotidiano, o material ficou muito mais afetivo”, conta ela. “Moradores deram depoimentos, e mesmo sem ter conhecido Clarice falaram do bairro daquela época. Acho que o Leme é a cara dela, realmente. É um cantinho isolado, parece fora do Rio. Acordamos com os pássaros cantando”.

Pedra do Leme, com o Posto 6, o morro Dois irmãos e a Pedra da Gávea ao fundo. Foto: Daniel Ramalho.

O Leme tem um protagonismo óbvio, mas a obra contempla ainda Tijuca, Centro, Catete, Botafogo e Cosme Velho, lugares em que ela morou, estudou, trabalhou, além do Jardim Botânico, que ela amava e visitava sempre que podia. Primeiro lugar da cidade a ser sinalizado como um dos Caminhos Claricianos (o segundo foi a estátua no Leme), o Jardim Botânico também está presente na literatura de Clarice, como no belo conto “O amor”, que integra Laços de Família (1960).

Aleia Barbosa Rodrigues, no Jardim Botânico. Foto: Daniel Ramalho.

“O Rio da Clarice é natureza pura”, afirma Teresa, que em seu livro lembra também as marcas deixadas na obra da autora por outro pedaço verde da cidade: a Floresta da Tijuca. Ao chegar ao Rio, vinda de Recife, a família Lispector instalou-se na Tijuca entre 1935 e 1940, depois de uma breve passagem por Flamengo e São Cristóvão. Clarice, já morando no Leme, sempre voltava para passear pela floresta. O belo cenário verde é palco para o casal Lóri e Ulisses de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (1969).

Açude da Solidão, na Floresta da Tijuca. Foto: Daniel Ramalho.

A obra de Teresa segue costurando histórias de pessoas e lugares que fizeram e ainda fazem parte da memória da cidade, e também destaca curiosidades. Como os painéis do artista plástico Poty Lazzarotto pintados em hotel no Leme (na época Luxor Continental, hoje Novotel) onde Clarice se hospedava quando precisava se dedicar a um livro. “É uma coisa meio escondida, pouca gente conhece esses painéis”, diz a editora Maria Amélia Mello. “Contamos a história toda para poder situar o leitor. Na área do Porto do Rio, temos a foto do edifício A Noite, onde Clarice trabalhou. No Largo do Boticário, no Cosme Velho, tem a casa do artista plástico Augusto Rodrigues, onde ela ia todo domingo. Reunimos muita coisa legal, mapas, lembranças, memórias, história. A ideia é mesmo curtir a cidade, uma homenagem ao próprio Rio”.

*Mànya Millen é jornalista.

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