• 13/02/2025

“Em nome de meu pai”

, "Em nome de meu pai". IMS Clarice Lispector, 2025. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2025/02/13/em-nome-de-meu-pai/. Acesso em: 25 março 2025.

Clarice Lispector escreveu deliberadamente textos políticos. Para citar alguns, “Carta ao Ministro da Educação”, em que defende o acesso de estudantes às vagas na universidade pública; “A matança de seres humanos: os índios”, no qual repudia o assassinato de indígenas para a exploração de recursos naturais e advoga pela demarcação de seus territórios; “Mineirinho”, em que censura a ação da polícia ao assassinar um criminoso com treze tiros. Clarice também participou de algumas reuniões contra a ditadura e esteve presente em manifestações, incluindo a Passeata dos Cem Mil, registradas em fotografias onde aparece em meio à multidão em frente à Câmara dos Vereadores, na Cinelândia, Rio de Janeiro, ou ao lado de Carlos Scliar, Glauce Rocha, Oscar Niemeyer, Milton Nascimento, entre outras figuras públicas da cultura. 

Apesar disso, foi acusada de alienada pela patrulha do Pasquim, tabloide formado por homens ilustrados da zona sul carioca, mais especificamente pelo cartunista Henfil. A querela teve repercussão negativa e o cartunista, com raciocínio caricaturesco, se defendeu: “Eu a coloquei no Cemitério dos Mortos-Vivos porque ela se coloca dentro de uma redoma de Pequeno Príncipe, para ficar num mundo de flores e de passarinhos, enquanto Cristo está sendo pregado na cruz. Num momento como o de hoje, só tenho uma palavra a dizer de uma pessoa que continua falando de flores: é alienada”. O enterro da escritora promovido pelo cartunista em sua coluna chamada “Cemitério dos Mortos-Vivos” aconteceu em 1972, portanto, poucos anos depois dos textos políticos publicados por Clarice durante o AI-5 e da Passeata dos Cem Mil. Teresa Montero mostra na biografia de Clarice, À procura da própria coisa, que a escritora era fichada pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de espionagem do governo ditatorial. 

Mas fato é que a ligação de Clarice com a política não se dá na superfície da vida pública, tampouco nos textos que abordam diretamente a questão. Isso se deve a uma compreensão da escritora sobre a fratura entre arte e política, abordada em dois textos irmãos, “Literatura e justiça” e “O que eu queria ter sido”, nos quais constata com lucidez desconcertante a inutilidade de sua literatura como instrumento político. No primeiro, ela diz:

[…] minha tolerância em relação a mim, como pessoa que escreve, é perdoar eu não saber como me aproximar de um modo “literário” (isto é, transformado na veemência da arte) da “coisa social”. Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir “arte”, senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo simplório de me aproximar do fato social: eu queria era “fazer” alguma coisa, como se escrever não fosse fazer.

Clarice diz que gostaria de se “aproximar de um modo ‘literário’ (isto é, transformado na veemência da arte) da ‘coisa social’”. Dissocia portanto duas dimensões, para ela inconciliáveis: a arte e o social. Diz desejar que sua literatura pudesse alcançar uma expressão – uma “veemência” – tal que a aproximasse da verdade com que sentiu a “coisa social”, anterior, inclusive, à verdade com que sentiu a arte. Declara o fracasso de sua literatura como instrumento político, que julga inócuo para a produção de mudanças efetivas na realidade social; mas vacila também quanto à força estético-formal de sua literatura no trato com o social, pois, segundo ela, a expressão de sua escrita está aquém à da “coisa social”. Em outras palavras, teria desejado provocar no leitor um arrebatamento semelhante ao que sentiu diante da injustiça flagrante de famílias miseráveis vivendo em barracos de madeira flutuando precariamente sobre gravetos no mangue de sua cidade, o Recife; mas declara-se incapaz de dar forma a esse sentimento. Uma vez apartadas a literatura e a “coisa social”, confessa sentir-se envergonhada por não fazer nada. Aqui, não fala mais de literatura e não aborda mais o desejo de uma escrita veemente, mas o desejo de ação política. 

No segundo texto, intitulado “O que eu gostaria de ter sido”, Clarice aborda novamente o sentimento de injustiça que a assaltou quando visitou os mocambos de Recife e como, diante de tamanha injustiça, assumia consigo o compromisso de defender os direitos das pessoas – “o que eu via me fazia como que me prometer que não deixaria aquilo continuar. Eu queria agir.” Observa ainda nesse texto que quando menina é como se tivesse diante de si dois caminhos a seguir, duas vocações, e questiona-se: “Por que foi o destino me levando a escrever o que já escrevi, em vez de também desenvolver em mim a qualidade de lutadora que eu tinha?” 

Importante notar que em ambos os textos, a palavra luta aparece reiteradamente. Ela diz “beleza profunda da luta”, em que curiosamente o atributo da beleza, tão confrontado quanto afeito à obra de arte, é transposto para qualificar a luta e não a literatura – mais um indício da co-moção de Clarice tanto pela “coisa social” como pela arte. E ela termina o texto mostrando-se inconformada com a ineficácia da literatura no campo das transformações sociais: “o que eu gostaria de ser era uma lutadora. Quero dizer, uma pessoa que luta pelo bem dos outros. […] Terminei sendo uma pessoa que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima. É pouco, é muito pouco.” 

Tornam-se manifestos os dois espantos da menina Clarice: a verdade da “coisa social” e a verdade da arte. Duas verdades como dois caminhos divergentes a seguir: um coletivo, outro individual; um exterior, outro interior; um concreto, outro abstrato; um regido pelo consciente, outro pelo inconsciente; um político, outro artístico; um da ação, outro da imaginação; um real, outro ficcional. Duas verdades que criam uma tensão sem trégua em sua obra, cujo ponto máximo será a história – decididamente “exterior e explícita” – de Macabéa, em A hora da estrela, publicada por Clarice pouco antes de morrer. 

A luta, cujo germe é a revolta, será o guia do sentimento de justiça em Clarice. Antes de escolher a verdade da arte e se tornar escritora, entre os dois caminhos que a comoviam, seguiu o da luta e ingressou na Faculdade Nacional de Direito; ela diz em entrevista: “minha ideia era estudar advocacia para reformar as penitenciárias”. Durante a graduação, publicou, na revista da faculdade, um ensaio chamado “Observações sobre o direito de punir”. Nele, traça uma gênese do surgimento do direito, cuja conclusão será a de que a lei nasce da revolta e garante institucionalmente sua perpetuação: 

De início, não existiam direitos, mas poderes. Desde que o homem pôde vingar a ofensa a ele dirigida e verificou que tal vingança o satisfazia e atemorizava a reincidência, só deixou de exercer sua força perante uma força maior. […] Os fracos uniram-se; e é então que começa propriamente o plano […] os fracos, os primeiros ladinos e sofistas, os primeiros inteligentes da história da humanidade, procuraram submeter aquelas relações até então naturais, biológicas e necessárias ao domínio do pensamento. Surgiu, como defesa, a ideia de que apesar de não terem força, tinham direitos. […] E no espírito do homem foi se formando a correspondente daquela revolta.

O direito, em forma de lei, é assim o “correspondente daquela revolta” original dos mais fracos contra os mais fortes. A revolta, como o próprio prefixo da palavra sugere, está no início e no fim do direito, não cessa de voltar, revoltar, é matéria-prima e obra em progresso – acender o fogo no fogo, para, uma vez conquistado, não deixar que se apague. Cabe observar na história contada por Clarice a ocorrência de uma mudança significativa entre o ponto um, quando a revolta é individual (ou transindividual), o fermento do direito, e o ponto dois, quando é fixada na forma impessoal da lei, garantidora do direito à luta, que passa então a ser política. Entre uma e outra, muda-se o status da revolta, de individual para coletiva. 

No entanto, pondera Clarice, o capricho dos juízes pode se infiltrar na aplicação impessoal da lei, tornando-a disfuncional. É aqui que a cobra morde o rabo. Porque, se a lei é impessoal, a aplicação da lei, que está em poder de pessoas designadas para tal, não o é. Sendo assim, a revolta – poderíamos chamar também com Thoreau de “desobediência civil” – é a força motriz da justiça, isto é, renova, numa dinâmica que vai do individual ao coletivo e do coletivo ao individual, sucessivamente, a saúde de um sistema político. Tal dimensão individual da revolta – contra uma justiça personalista que oprime, pune, mantém privilégios de certos estratos sociais, em suma, elimina a possibilidade de luta – está entranhada, como veremos, na obra de Clarice. 

*

Vejamos a revolta individual (ou sua aniquilação) em duas personagens de Clarice insuspeitadamente parecidas. A primeira, Joana, do romance de estreia, Perto do coração selvagem, escrito quando a autora tinha 20 anos, e a segunda, Macabéa, de A hora da estrela, último livro publicado em vida. Entre o primeiro e o segundo livro, se passou toda a vida adulta da autora e, com ela, um certo desengano vai ganhando espaço. 

Em Perto do coração selvagem, a personagem Joana, após a morte do pai, passa a viver com a tia. Certo dia, quando a acompanhava no mercado, ao sair da loja, coloca um livro debaixo do braço e sai sem pagar. A tia empalidece e na sequência travam o seguinte diálogo: 

– Você sabe o que fez?
– Sei… Eu roubei o livro.
– Você acha que se pode roubar?
– Bem… talvez não.
– Por que então…?
– Eu posso.
– Você?! – gritou a tia.
– Sim, roubei porque quis. Só roubarei quando quiser. Não faz mal nenhum.
– Deus me ajude, quando faz mal, Joana?
– Quando a gente rouba e tem medo. Eu não estou contente nem triste.
A mulher olhou-a desamparada:
– Minha filha, você é quase uma mocinha, pouco falta para ser gente… Daqui a dias terá que abaixar o vestido… Eu lhe imploro: prometa que não faz mais isso, prometa, prometa em nome do pai.
Joana olhou-a com curiosidade:
– Mas se eu estou dizendo que posso tudo, que… – Eram inúteis as explicações. – Sim, prometo. Em nome de meu pai.

A revolta aqui é um experimento juvenil, mero exercício petulante de desobediência, mas gostaria de guardar dela a potência, uma vez que o poder de dizer não à lei equivale a dizer sim a si mesmo – uma autoafirmação. Nesse sentido, veremos mais à frente o quanto Joana é diferente de Macabéa, embora ambas compartilhem algumas semelhanças de personalidade. 

Aproveito um detalhe do diálogo citado acima para fazer uma breve digressão e tratar da importância do pai de Clarice para sua noção de justiça ligada ao valor da pessoa humana. 

Proveniente da doutrina cristã, a fórmula “em nome do pai”, que aparece no texto, por coincidência, serviu ao psicanalista Jacques Lacan para forjar sua metáfora da lei – “o nome do pai”, cujo som, em francês, le nom du père, soa também como “o não do pai”. Para o psicanalista francês, é esse não dos adultos que instaura na criança o supereu com o qual seu eu terá que negociar durante a vida social. No diálogo criado por Clarice, o supereu, encarnado na figura da tia, seguidora das convenções, diz que não se pode roubar, mas o eu indômito de Joana discorda e rouba porque pode e não tem medo. Uma vez constatado pela menina que a tia nunca entenderia seus argumentos, cinicamente acata sua súplica e promete não roubar mais, “em nome de meu pai”. O pai morto de Joana, ao contrário da tia, não representou para a personagem a figura impositiva da lei; quando era vivo, Joana, ao recitar-lhe versinhos, recebia como resposta sins: “lindas, pequena, lindas. Como é que se faz uma poesia tão bonita?”. Desse modo, quando promete não mais roubar em “nome de meu pai”, embora pareça ceder ao pedido da tia, negaceia e mantém-se leal à filiação paterna, no avesso da metáfora lacaniana, ou seja, singularizando a figura de seu pai. 

O pai de Clarice foi um imigrante ucraniano, com pendor para as artes, a matemática e as coisas do espírito, mas, quando jovem, por ser judeu, foi rejeitado nas universidades onde pretendeu estudar. Após uma viagem de imigração que durou meses – Clarice nasceu em trânsito, numa vila chamada Chechelnyk –, tendo sofrido no caminho ataques violentos de grupos antissemitas, quando chegou ao Brasil, trabalhou em uma fábrica de sabão e como mascate. Conforme Clarice escreveu na crônica “Persona”, o maior elogio atribuído por seu pai a alguém era dizer que ele ou ela eram “uma pessoa”; “até hoje digo, como se fosse o máximo que se pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada por ter desde cedo me ensinado a distinguir entre os que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas.” Pedro Lispector morreu quando Clarice tinha 18 anos. Em carta ao amigo Fernando Sabino, confidenciou que certa vez o pai lhe havia dito: “se eu escrevesse, escreveria um livro sobre um homem que viu que se tinha perdido”; e ela arremata: “não posso pensar nisso sem que sinta uma dor física insuportável”. 

Uma existência que não foi o que se desejou ser devido às contingências da vida, no caso, ser judeu, na Ucrânia, em tempos de perseguição a seu povo, para alguém como Clarice, que perscruta a “matéria vida” com tanta acuidade, que dedicou toda sua literatura a tentar se aproximar de seu mistério, essa é a maior injustiça: um ser humano impedido, pelas condições sociais e materiais, de ser o que se quer. Essa visão de Clarice coincide com a de outra judia, Hannah Arendt, que persegue o valor da singularidade do ser humano a partir da ideia de natalidade (ideia, aliás, alçada à importância filosófica pelo cristianismo). Assim diz Arendt em A condição humana

[…] o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas possuem um elemento de ação e, portanto, de natalidade.

O que condições sociais e materiais adversas podem reprimir é justamente a ação de uma pessoa, ação necessariamente política, isto é, o florescimento da revolta e da possibilidade de luta. No caso de uma sociedade injusta, o não da lei caprichosa é um não à ação política dos desassistidos. Macabéa, por exemplo, personagem de A hora da estrela, teve a vida assaltada pela máquina do sistema econômico e político. Vamos relembrar sua história, narrada por outro personagem, Rodrigo S.M. (na verdade Clarice Lispector); é assim, com seu nome próprio entre parênteses que a escritora apresenta seu personagem-autor-narrador, confundindo-se com ele.

Rodrigo S.M. é um intelectual de classe média ou classe média alta (embora diga que não pertence a classe nenhuma) e conta a história de uma nordestina (como ele) cujo “sentimento de perdição no rosto” pegou no ar de relance em uma rua do Rio de Janeiro. Faz questão de frisar que ela é uma criação ficcional sua, ainda que se pareça com tantas nordestinas reais “que andam por aí aos montes”. Desde aí já há uma intenção da escritora de embaralhar ficção e realidade, dizendo uma coisa e desmentindo-a logo a seguir. Macabéa é uma personagem perturbadora. Ela é sonhadora, poética, sensual; no entanto, essas qualidades, nela, não germinam. Como Clarice disse em entrevista, Macabéa tem “uma inocência pisada”. O narrador, a certa altura, diz que a personagem “tinha o que se chama de vida interior e não sabia que tinha”. Maltratada pelo autor, ainda que este oscile entre o ódio e o amor por sua criação, Macabéa é massacrada pela cidade grande e humilhada pelas pessoas próximas. A nada reage. 

Joana, de Perto do coração selvagem, também é sonhadora, poética e sensual. É como se a matéria de que as duas foram feitas fosse a mesma – expressa na pujante “vida interior” –, mas, em Joana, essa matéria original tenha sido “passível de aperfeiçoamento”, cujo fruto será uma mulher reflexiva, confiante e ativa; assim termina o livro de estreia de Clarice, com Joana pensando sobre si, após desilusões na vida: “nada impedirá meu caminho até a morte-sem-medo, de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo”. O tema do aperfeiçoamento e do aprendizado perpassa muitos livros de Clarice; e, para ela, isso significa a autodescoberta do mal, da desobediência, da insubmissão, da afirmação dos desejos. Em outras palavras, a revolta contra a lei. 

Já em Macabéa, é como se esse mesma matéria de que foram feitas tenha se atrofiado – como seus “ovários murchos como um cogumelo cozido” – e produzido o fruto disforme “do cruzamento de ‘o quê’ com ‘o quê’.” Macabéa, ao fim do livro, após uma curta vida de autômata, é atropelada: “e enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a – e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho”. Não é por acaso que o cavalo aparece no fim tanto do primeiro como do último livro. Joana toma emprestada as qualidades de vigor e beleza do cavalo novo, enquanto – o mesmo cavalo? – ri de escárnio da morte de Macabéa; lhe é negado como figura redentora, de renascimento. E por que Macabéa e Joana, embora feitas da mesma matéria, se tornam uma o avesso da outra?  

A primeira frase de A hora da estrela é: “o mundo começou com um sim”. Esse foi o primeiro “sim” de Macabéa, seu nascimento. Afinal, foi concebida. Com esse sim da natalidade, a personagem traz o germe da “capacidade de iniciar algo novo, de agir”, usando as palavras de Hannah Arendt. Mas – e aí está a consternação do livro – Macabéa, entre o primeiro sim, o do nascimento, e o segundo, o de sua morte, foi cravejada – como o foi o criminoso Mineirinho por treze balas – por nãos: não tinha pai, não tinha mãe, não era bonita, não era inteligente, não era atraente, não era amada. Ao contrário, só recebia destratos da tia, da amiga do trabalho Glória, do namorado Olímpico e da cidade grande e impessoal. Macabéa foi assinalada pela insígnia do não. 

O que a escrita de Clarice faz em A hora da estrela é instalar uma inexorabilidade quanto ao destino de Macabéa, fundada na desigualdade imobilizante da sociedade brasileira, de matriz escravocrata e atravessada por um sistema econômico desigual e massacrante para os mais pobres. Macabéa não tem “o direito ao grito” – esse é um dos títulos possíveis para o livro, dentre os treze que lista Clarice. Uma vida nascida do sim, contudo espoliada por nãos. Qualquer desejo de Macabéa, desde sempre, foi repreendido e dele se fez escárnio. Mesmo os que se permitia alimentar não eram dela, mas ouvidos nas propagandas do rádio, do cinema, das vitrines das lojas. Ou seja, o que poderia ter de mais vital, seus desejos, mesmo deles foi alienada pelo mercado; “como uma cadela vadia era teleguiada”, joguete de uma lógica que a desindividualizava, tornando-a mais uma na massa servil – “nem se dava conta de que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável”.  

Clarice, em seu texto impiedoso e sarcástico, emula a opressão do sistema e seus nãos, retirando inclusive frases do senso comum das madames, como por exemplo: “ela quis mais porque é mesmo uma verdade que quando se dá a mão, essa gentinha quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não é?”. Sua escrita, em A hora da estrela, procura exacerbar um discurso que já existe difuso em certos estratos da sociedade, deflagrando, a partir de sua superexposição, e sem juízo de valor, o sadismo, a opressão e o racismo das classes médias e altas. 

Exceção feita ao entrelugar ocupado por Rodrigo S.M., que, apesar de se identificar e se compadecer da vida daquela miserável, não abre mão de seu conforto e tampouco nada poderá fazer para salvá-la. Ele passa grande parte do livro sem saber como será o fim de Macabéa, se ela morrerá ou não, preocupado em fazê-la viver, mas sem ter as rédeas de seu destino. No texto, a realidade fala mais alto que a ficção. O criador ter de matar sua criatura é o atestado da impotência de uma classe média apática, mas também a confissão do crime de classe, uma vez que não fazer nada (ou “apenas escrever não é fazer”) corresponde a se tornar cúmplice da necropolítica; não matou, mas deixou matar. Um dos títulos alternativos de A hora da estrela é precisamente A culpa é minha

Enquanto a luta política é, para as pessoas injustiçadas, uma exigência, porque dela dependem a vida e a morte, para a classe média intelectual, representada por Rodrigo S.M., é uma escolha (entre a luta ou o pagamento do serviço privado de segurança, de educação, de saúde etc.) da qual Clarice diz se envergonhar de nada fazer. A vergonha por não fazer nada em “Literatura e justiça”, se torna culpa em A hora da estrela. Culpa, mas também identificação com Macabéa; ele é capaz de na mesma página dizer consternado que acaba de “morrer com a moça” e, supreendentemente, perceber que não estava tão morto assim, pois se despede do leitor com as seguintes palavras: 

E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?! Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.

A novela se inicia com um sim e acaba com um sim. O sim final reúne em único termo dois sentidos opostos: a morte apoteótica de Macabéa, atropelada por um carro de luxo, e a vida do narrador intelectual, expressa no gozo hedonista do carpe diem: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos”. 

*

Em 2023, a escritora Conceição Evaristo publicou o livro Macabéa: Flor de Mulungu, composto por um conto e ilustrações (de Luciana Nabuco), no qual a narradora, identificando-se com a personagem, salva sua vida: “Macabéa ia se parir. Flor de Mulungu tinha a potência da vida. Força motriz de um povo que resilientemente vai emoldurando o seu grito”. A palavra grito aqui faz ressoar um dos títulos alternativos, como já vimos, da novela de Clarice, neste caso, negado à Macabéa, e agora reivindicado por Evaristo. A escolha da autora mineira nos devolve a questão colocada no início deste texto: a relação entre literatura e política. 

Salvar ou não a vida de uma personagem na ficção, está claro, não é o mesmo que salvá-la na vida real. Mas a intenção de Evaristo parece sugerir algo mais: que a rasura da história original, contada por Rodrigo S.M., autor que, embora movido por um desejo ávido e um tanto frustrado de identificação com a personagem, vive no conforto burguês de sua casa, pudesse, pela apropriação da voz narrativa, promover efeitos de realidade. Quanto a isso, é exemplar o título de um de seus mais comentados contos, “A gente combinamos de não morrer”, publicado no livro Olhos d’água. Também Macabéa, Flor de Mulungu é parte de um projeto de escrita que de certa forma desdiz as formulações de Clarice em “Literatura e justiça”, ou seja, é marcado pela porosidade entre ficção e realidade, individualidade e coletividade, pólos que coexistem no conceito de escrevivência. Cito Evaristo: 

Escrevivência pode ser como se o sujeito da escrita estivesse escrevendo a si próprio, sendo ele a realidade ficcional, a própria inventiva de sua escrita, e muitas vezes o é. Mas, ao escrever a si próprio, seu gesto se amplia e, sem sair de si, colhe vidas, histórias do entorno. E por isso é uma escrita que não se esgota em si, mas, aprofunda, amplia, abarca a história de uma coletividade.

A escrita de Clarice Lispector na voz de Rodrigo S.M. parte de um lugar diverso. Há também porosidade entre ficção e realidade, mas as duas dimensões se embaralham no texto e, supostamente, dali não saem. Mas é o trânsito entre o individual e o coletivo, ou entre a obra e seu impacto no leitor, que marca, para Clarice, o impedimento da literatura como instrumento político, pois a escritora escreve a partir de um lugar isolado, sem lastro de pertença a uma coletividade, esta substituída pela ideia do consumidor-cidadão, peça da engrenagem do sistema econômico capitalista e da democracia minimalista. Uma vez que a luta só pode ser coletiva, a sensação de impotência do narrador é inevitável. 

Evaristo, ao contrário, escreve a partir da experiência de alguém que teve a sociedade e o aparato estatal e policial contra ela: é negra, viveu em favela, foi empregada doméstica. Assim como a maior parte da população afrodiaspórica brasileira, socializou-se em modos de vida herdados da ascendência africana, em enclaves de resistência contracoloniais fundados em laços de pertencimento afetivo e político, levados a cabo, por exemplo, nos quilombos, terreiros e favelas (chamadas não por acaso de comunidades). Assim, salvar Macabéa na ficção guarda relação com a afirmação de sua própria existência e de tantas mulheres negras escritoras, que hoje, como resultado de uma luta empreendida ao longo de muitas décadas, gozam de uma abertura mais sistemática no mercado editorial para contar sobre si próprias histórias antes expropriadas por escritores das classes dominantes. 

A apropriação da narração sobre si teve um marco paradigmático na literatura brasileira, com a publicação, em 1960, do livro Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, traduzido para 14 idiomas. Há uma foto em que Carolina e Clarice aparecem lado a lado. Na ocasião, autografavam seus respectivos livros em um evento literário. Carolina teria dito a Clarice que ela escrevia de forma elegante, e Clarice, que Carolina escrevia com verdade. De algum modo, a verdade para Clarice pode ser traduzida por seu próprio desejo de escrever com a veemência da “coisa social”. Tal veemência pode ser entendida como escrita pregnante de realidade; feita de palavras, a um só tempo, extraídas da matéria do chão, das coisas, dos corpos, com toda sua aspereza, como se nelas trouxessem estilhaços de vida capazes de ferir o leitor, e encantadas, capazes de fazer ressoar a propriedade física de seus sons na caixa toráxica, (re)criando o concreto do mundo, isto é, dando forma estética à revolta, à “beleza da luta”. É como Clarice quando diz que o natural é sobrenatural, que é “inteiramente mágico o fato de uma escura e seca semente conter em si uma planta verde brilhante.” Ou como canta Chico César na canção “Béradêro”, palavras que “são sons, são sons de sim, são sons, são sons de sim, são sons…” Palavras são sementes que podem germinar.

Mas se Carolina em sua época foi uma desbravadora solitária, representante do valor de exceção da mulher negra e pobre que conseguiu escrever a contrapelo da cidade, hoje, o fato de Evaristo e outras mulheres negras, assim como escritores e escritoras de representatividades silenciadas historicamente, poderem escrever, isso se deve menos à própria literatura do que à luta dos movimentos sociais negros por políticas públicas de Estado que criassem condições para singularidades artísticas florescerem no seio da coletividade. Políticas públicas postas em prática em anos mais ou menos recentes, de todo modo, mais de trinta anos após a publicação de A hora da estrela. O que nos mostra que tais mudanças, ainda que sofram demasiada resistência das classes dominantes, acontecem como indispensáveis suturas na malha social brasileira. Para listar algumas: bolsa família, cotas raciais nas universidades públicas, Prouni, criação de institutos federais, aumento substancial do número de universidades federais e a lei 10.639/03, que regulamenta o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio. Essas políticas tiveram e têm impacto efetivo na vida das pessoas; são elas que efetivamente salvam Macabéas, dentro e fora da ficção, como parece ter sido o desejo, fora de alcance, do intelectual Rodrigo S.M.. 

Desse modo, o fato de Evaristo poder salvar a vida de sua Macabéa é a evidência, agora sim, de um escrever que é como fazer, pois o ato da escrita ou de se fazer ouvir literariamente foi conquistado no bojo da revolta coletiva e individual, da potência transformadora da natalidade, propulsora de sins, e dela é inseparável. Mas podemos também pensar na própria vida de Clarice, aos 18 anos, imigrante, pobre e orfã, vendo-se na imagem de seu pai, “um homem que viu que se tinha perdido”, impedido de ser o que desejou ser pelo estigma de ser judeu. Afinal, ela poderia ter se tornado Macabéa. Ainda podemos ouvir ressoar as palavras de Rodrigo S.M. (na verdade Clarice Lispector): “quando penso que eu podia ter nascido ela [Macabéa] — e por que não? — estremeço. E parece-me covarde fuga de eu não ser, sinto culpa como disse num dos títulos”. A pergunta não é retórica: como não associar a “laranjada aguada e pão amanhecido”, que Tânia, irmã de Clarice, disse ter sido a refeição da família nos dias de maior pobreza, com “o cachorro quente e refrigerante”, base da alimentação de Macabéa? 

Clarice escreveu sua história na idade madura (tinha 56 anos), período em que ainda se ressentia da acusação de ser uma escritora alienada. Já distante da pobreza da infância, vivendo em seu apartamento de classe média alta no Leme e tendo apenas a escrita como instrumento de ação no mundo, sentia-se impotente politicamente. A tentativa malograda do autor de salvar Macabéa parece ser resultado da descrença niilista da escritora na possibilidade de atingir a alteridade radical que almejava no contexto de uma sociedade rachada por extrema injustiça. Sozinha com sua escrita, e a partir da compreensão de que a luta política se faz coletivamente, não viu saída ética outra para sua literatura senão matar sua personagem — “a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela”. 

Se Clarice, como vimos no texto “O que eu queria ter sido”, tendo desejado ser uma lutadora, julga que “é pouco, é muito pouco” ser alguém “que procura o que profundamente se sente e usa a palavra que o exprima”, na mesma chave, como bem discorda José Miguel Wisnik, no podcast Clarice Lispector: visões do esplendor, é preciso entender que

essa escritora tão interiorizante, tão voltada para questões que a gente diria da subjetividade, na verdade, faz o que a literatura faz quando é potente, que é na mesma dimensão do subjetivo ter uma sondagem ontológica do mundo onde o social aparece com toda a força.

Clarice, de algum modo, fez usufruto em sua escrita do direito ao grito, cuja expressividade tem origem na veemência da realidade, aquela mesma de que se queixou não ter alcançado, mas que A hora da estrela, tal o desconcerto, a crueldade e a carga de indignação que suscita, dá testemunho contrário. A arte pode não ser ação, mas é objeto com potencial político quando através de um aprendizado ético do leitor logra ações consequentes e prenhes de efeitos de realidade. No mais, para Clarice, a verdadeira criadora de Macabéa, “qualquer gato, qualquer cachorro vale mais do que a literatura”. 

Notas

Uma literatura sem literatura

Ferraz, Eucanaã. Uma literatura sem literatura. IMS Clarice Lispector, 2021. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2021/08/09/uma-literatura-sem-literatura/. Acesso em: 25 março 2025.

As crônicas de Clarice Lispector foram reunidas em livro pela primeira vez em 1984, em A descoberta do mundo, volume organizado por Paulo Gurgel Valente, filho da autora, que alinhou em ordem cronológica 468 textos publicados no Jornal do Brasil entre os anos 1967 e 1973. Li e reli aquelas quase oitocentas páginas muitas vezes; ia do começo até o fim, depois de volta ao início; e passei a saltar de uma maravilha para outra; uma única página me lançava numa experiência inquietante. Tanto voltei àquelas iluminações ao longo dos anos que, apesar de minha péssima memória para tudo, percebi, a certa altura, que sabia de cor vários trechos e frases. Bastou a nova edição, agora com o título Todas as crônicas, para que eu relesse novamente, e mais uma vez, todos aqueles textos, aos quais o novo organizador, Pedro Karp Vasquez, acrescentou outros 120, até então dispersos.

Mas eu descobrira Clarice Lispector antes de A descoberta do mundo, quando li Água viva, livro publicado em 1973. Jovem e iniciante leitor, vivi a impressão profunda de uma obra perturbadora, que não era um romance, absolutamente; que tampouco se tratava de poemas; que lembrava um diário, não sendo; que tinha algo de ensaio filosófico, muito embora seu fluxo enovelado, estranho, não buscasse senão exprimir sensações acerca da escrita e da criação artística; e não bastava dizer que era um feixe de anotações livres sobre as coisas do mundo e sobre o tempo. Ciente do caráter irresoluto e experimental do livro, a autora o classificou como “ficção”. Era um modo de explicar sem explicar, ou melhor, de fugir dos limites estreitos dos chamados gêneros literários. Quando li pela primeira vez os textos de A descoberta do mundo, reconheci, como se estivesse tonto, passagens que eu lera em Água viva. Não sei se cheguei a pensar o que hoje me parece tão claro: que as páginas do Jornal do Brasil, descoladas de sua fonte, baralhavam os sinais divisórios entre as escritas do livro e as do jornal.

Escritores não estão — nem nunca estiveram — preocupados em preservar fronteiras entre gêneros. Se a crônica é difícil de circunscrever, descrever ou simplesmente abordar, o agrupamento de Todas as crônicas não apenas não ajuda a pôr limites, como torna impossível qualquer demarcação. Se se trata, por um lado, da indeterminação característica da prosa hesitante que há muito frequenta jornais e revistas, há, por outro lado, uma fluidez que se move para além disso, perturbando a visão, desordenando os sistemas, recusando a lei.

Intrinsecamente comunicativa, factual, efêmera, leve, transparente, a crônica seria inviável para uma autora cujos contos e romances se definiram por uma escrita oposta a tais características. Clarice, no entanto, ocupou-se da tarefa de escrever semanalmente sem abdicar do que lhe exigia a publicação num veículo de massa. A flagrante contradição, em vez de se dissolver num desfecho fácil e confortável, acabou por engendrar um processo de criação que exibiria seus dilemas, conflitos e perplexidades aos olhos do leitor. Assim, já na terceira semana de colaboração no Jornal do Brasil, a cronista afirmava: “Ainda continuo um pouco sem jeito na minha nova função daquilo que não se pode chamar propriamente de crônica. E, além de ser neófita no assunto, também o sou em matéria de escrever para ganhar dinheiro. Já trabalhei na imprensa como profissional, sem assinar. Assinando, porém, fico automaticamente mais pessoal. E sinto-me como se estivesse vendendo minha alma”. 

Ainda que a passagem consolide um dilema referido por outros autores — a diferença mais ou menos conflitante entre escrever literatura, de um lado, e, de outro, escrever por dinheiro (para jornal) —, a declaração, considerada no conjunto das crônicas, conduz a outra ponderação, a de que, afora o fácil antagonismo, havia no espírito de Clarice uma agitação mais poderosa e subterrânea: a vaga mas decisiva recusa da literatura. Com isso quero dizer que ao consignar, de imediato, que escrevia ali “para ganhar dinheiro”, ela dava mais um passo — caminho já aberto — para fora da instituição literária, gesto a ser compreendido menos como circunstância leviana e muito mais como uma rejeição de fundo, não importando até que ponto a escritora, naquele momento, o fizesse em completa consciência. Tal atitude, cabe advertir, não se limitava à mera desmitificação da imagem do escritor como alguém que não toma parte em assuntos vis e pragmáticos. A injunção financeira retornaria mais adiante, outra vez exposta de modo desanuviado, mas a asserção agora seria sobretudo provocadora: “Pagam-me para eu escrever. Eu escrevo, então”. 

Rubem Braga

É lugar-comum considerar a crônica, apesar de suas virtudes e da excelência de seus praticantes, um gênero menor. Clarice não o engrandeceu. Digamos que, ao contrário, decresceu ao seu tamanho e fez questão de pôr às claras o curso que tomava. Mais que isso, se não pretendeu lançar o gênero para o alto, exercitou-o num processo de veemente diminuição, como se buscasse encolher o gênero até fazê-lo desaparecer. Lemos a certa altura: “Vamos falar a verdade: isto aqui não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não entra em gênero. Gêneros não me interessam mais. Interessa-me o mistério”. 

Portanto, em vez de recusar as marcas que definem o caráter de segundo plano da crônica — aquelas que a distanciam da literatura, ou ainda, de tudo o que, sob tal cifra, considera-se maior —, Clarice, no início, adotou os traços característicos do gênero buscando uma adequação a ele, mas logo passou a ativá-los, encontrando nessa operação uma liberdade tão extrema quanto arriscada, o que decerto lhe dava a dimensão real de escrever algo tão menor que já não era literatura nem qualquer outra coisa senão escrita — apenas isso, fora de toda qualificação.

Nesse sentido, “O caso da caneta de ouro” é exemplar, pondo em cena uma alegoria que ironiza a exigência de uma escrita maior: “Com caneta de ouro devem-se escrever coisas de ouro? Teria que escrever frases especiais porque o instrumento era mais precioso? E terminaria eu mudando de jeito de escrever? E se o jeito mudasse, na certa ele iria, por seu turno, me influenciar — e eu também mudaria. Mas em que sentido? Para melhor? Outra questão: com caneta de ouro eu cairia no problema do Rei Midas, e tudo o que ela escrevesse teria a rigidez faiscante e implacável do ouro?”.

É sem dificuldade que percebemos o quanto Clarice descobriu na crônica um modo cabal de fugir da “rigidez faiscante e implacável” exigida da literatura. Mas o escape não era um programa a ser executado de maneira irrefletida, pois se a crônica parece, por natureza, franquear a fuga da douradura literária, não deixa de oferecer seus modelos, artífices e traços de gênero, ainda que menor. Dissonante, a nova cronista sondava com desembaraço suas suspeitas e indecisões. Lançava luz, por exemplo, sobre obstáculos que soavam intransponíveis: “Quero falar sem falar, se é possível”.

Acompanhando cronologicamente as muitas incertezas, distinguimos a flutuação de uma subjetividade que se exprime pela aceitação e pelo acolhimento, mas também pela dúvida constante, ao ponto da exasperação: “O Jornal do Brasil está me tornando popular. Ganho rosas. Um dia paro. Para me tornar tornada”. E, mais à frente: “Sei que o que escrevo aqui não se pode chamar de crônica nem de coluna nem de artigo. Mas sei que hoje é um grito. Um grito! De cansaço. Estou cansada!”.

A resposta entusiasmada dos leitores emprestava-lhe alguma segurança, à qual se unia um vivo contentamento, a tal ponto que, mantendo-se estranha ao métier, na medida em que escrevia algo que não podia nomear senão como “uma espécie de crônica”, designa-se como colunista e cronista, e mesmo não compreendendo o mistério de ser um deles, sente-se como um deles: “Sou uma colunista feliz. Escrevi nove livros que fizeram muitas pessoas me amar de longe. Mas ser cronista tem um mistério que não entendo: é que os cronistas, pelo menos os do Rio, são muito amados. E escrever a espécie de crônica aos sábados tem me trazido mais amor ainda. Sinto-me tão perto de quem me lê”. 

Porém, a recepção favorável, amorosa, dos leitores não eliminava outras desconfianças. Mais que isso, o amor do público de certo modo fomentava incertezas, gerando uma espiral de indagações sobre o ato de escrever e sobre os liames indecifráveis que unem obra, autor e leitor, indagações expressas com espanto num momento e com tranquilidade no instante seguinte, que duraram como nervo, implícito ou explícito, naqueles textos. Quanto a ser cronista, certeza e indecisão se abeiravam: “Sei que não sou, mas tenho meditado ligeiramente no assunto”. E mais: “Na verdade eu deveria conversar a respeito com Rubem Braga, que foi o inventor da crônica. Mas quero ver se consigo tatear sozinha no assunto e ver se chego a entender”. Manifestam-se aqui o desejo da principiante que anseia por se adequar ao gênero, mas também o apetite da aprendiz pela descoberta de soluções próprias, sendo uma delas a inusitada e constante exposição de seu isolamento voluntário e de seu confronto com o ofício. 

Ao correr da máquina

A reunião das crônicas recompõe como uma fala contínua o diálogo semanal com os leitores, para os quais a “colunista” desvelava francamente ansiedades, desconcertos, mas também as alegrias de se manter em proximidade amorosa. Não raro as angústias pareciam vencidas e a escrita resolveu-se fora de expectativas literárias: “Como vocês veem isto não é coluna, é conversa apenas”. Se o problema do gênero — o cumprimento de certos padrões — seria vencido por uma exceção lograda dentro do próprio gênero, outra contrariedade persistiu: a exposição da intimidade. Dessa vez, Rubem Braga foi realmente convocado a socorrer a autora, que declara: “Nota: um dia telefonei a Rubem Braga, o criador da crônica, e disse-lhe desesperada: ‘Rubem, não sou cronista, e o que escrevo está se tornando excessivamente pessoal’. Ele disse: ‘É impossível, na crônica, deixar de ser pessoal’. Mas eu não quero contar minha vida para ninguém: minha vida é rica em experiência e emoções vivas, mas não pretendo jamais publicar uma autobiografia”. 

O juízo pronunciado pelo mestre não aplacou o desassossego, que seria referido muitas vezes: “Noto uma coisa extremamente desagradável. Estas coisas que ando escrevendo aqui não são, creio, propriamente crônicas, mas agora entendo os nossos melhores cronistas. Porque eles assinam, não conseguem escapar de se revelar. Até certo ponto nós os conhecemos intimamente. E quanto a mim, isto me desagrada. Na literatura de livros permaneço anônima e discreta”. 

A diferença pungente entre a escrita para o livro e a escrita para a imprensa consistia, portanto, na propensão a uma espécie de nudez que sobrevinha irrefreável nos textos que demandavam periodicidade. Merece a pena mais uma citação: “Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha. Acho que se escrever sobre o problema da superprodução do café no Brasil terminarei sendo pessoal. Daqui em breve serei popular? Isso me assusta. Vou ver o que posso fazer, se é que posso. O que me consola é a frase de Fernando Pessoa, que li citada: ‘Falar é o modo mais simples de nos tornarmos desconhecidos’”. 

A hipótese bem-humorada — o humour é traço decisivo das crônicas claricianas — de uma redação objetiva (a abordagem do “problema da superprodução do café no Brasil”) faz ver um irrealizável grau zero da escrita, ou seja, a impossibilidade de a autora manter-se resguardada na impessoalidade, o que, enfim, coincide com a lição de Rubem Braga. Desse modo, qual o motivo do permanente mal-estar com a constatação de que na “coluna” a pessoa da escritora se dava a conhecer? E qual o alcance da afirmação de que não queria contar sua vida para ninguém e de que não pretendia “jamais publicar uma autobiografia”?

Ao se dizer “anônima e discreta” nos livros, Clarice transferia para a crônica toda a carga de intimidade e biografismo, como se o fizesse impelida por uma força incontrolável. E, curiosamente, a força parece vir de fora dela. Não de uma instância superior, mística ou divina, mas de algo bastante prosaico: sua máquina de escrever. Assim, tanto o descumprimento dos princípios literários quanto a manifestação da intimidade emergem pela força de um maquinismo cuja performance no tempo é capaz de definir os rumos da criação — a velocidade determinaria a escrita, e a cronista, mais de uma vez, afiança que escreve “ao correr da máquina”.

Um dos mais importantes críticos da obra de Clarice Lispector, o português Carlos Mendes de Sousa, observa em Figuras da escrita (Instituto Moreira Salles, 2012) que os romances claricianos se originam de um ritmo arrastado, já que operados pela máquina lenta da reescrita ou do esforço composicional, enquanto as crônicas nascem de uma máquina veloz, propícia ao fluxo e à associação de ideias. Nesse último caso, vigora o trânsito livre e veloz de sensações, que não raro incorporam bruscamente a consciência metalinguística: “Ah, isto não é crônica nem coluna, bem sei. Por uma vez acho que não importa: os dias correm, a máquina corre. Mas se eu fosse cronista, ah não me faltariam assuntos!”.

A paráfrase é irresistível: existe uma relação direta entre texto e tempo; entre o correr dos dias e o correr da máquina; entre escrever movida pelo tempo da máquina, e dos dias, e não ser cronista; entre não ser cronista e não ter assuntos. Tudo se passa como se a máquina determinasse o trânsito da escrita, e esta, então, escapasse do controle do autor, que, em certos momentos, como que assiste de fora ao que se passa, surpreendendo-se e registrando seu estranhamento. “O charlatão é um contrabandista de si mesmo. Que é mesmo que estou dizendo?”

O mecanismo deixa-se flagrar aqui no momento em que o fluxo veloz — sem ser interrompido — incorpora a autoconsciência. Algo semelhante ocorre no seguinte fragmento: “Meu Deus, como o amor impede a morte! Não sei o que estou querendo dizer com isso: confio na minha incompreensão, que tem me dado vida instintiva, enquanto que a chamada compreensão é tão limitada”. Por vezes, a consciência da velocidade parece interromper o fluxo: “Estou escrevendo com muita facilidade, e com muita fluência. É preciso desconfiar disso”. Esse registro da desconfiança e da aparente interrupção da marcha talvez não seja exatamente um freio, mas um momento de desaceleração.

Mesmo se queixando da perda de sua “intimidade secreta”, Clarice aceitava que a escrita “ao correr da máquina” a expusesse, e chegou mesmo a desejar isso, muito embora recusasse o que julgava autobiográfico. É preciso considerar a gravidade e, ao mesmo tempo, a ironia da seguinte afirmativa: “Com perdão da palavra, sou um mistério para mim”. Se há uma forte dimensão autobiográfica nas crônicas de Clarice, é necessário atentar para outra ordem de valores colocada em cena com insistência: ela não sabia integralmente sobre o que escrevia, já que procurava o desconhecido naquilo que era mais banal, como se estranhasse tudo e todos e sobretudo a si mesma; também não sabia como escrevia, entregando-se ao “correr da máquina”; por fim, compreendia menos ainda o que escrevia — crônica? uma “espécie de crônica”? artigo? conversa? O que Clarice estaria biografando, afinal? A única resposta, que parecerá oblíqua por ser demasiado direta, seria: a ignorância. Ou ainda: o mistério. 

Instinto

Não há projeto autobiográfico algum, tampouco um centro emissor estável, e isso se faz mais claro quando as crônicas transcrevem falas ou textos alheios, muitas vezes cartas de seus leitores. Mais importante, porém, é a impressão que irrompe do conjunto, a de que essas centenas de páginas são uma recolha de fragmentos instáveis, clarões súbitos, vestígios. Quando empreguei aqui a expressão “fala contínua”, referia-me à permanência do diálogo de Clarice Lispector com seus leitores, o que não significa uma voz linear e/ou inteiriça. Ao contrário, o efeito geral é, digamos, o de acumulação e desordem, daí resultando, em vez da presença forte e duradoura de um sujeito, o seu desbaratamento. 

As crônicas de Clarice semelham bem mais um ato de esvaziamento do sujeito, no qual se surpreendem, sem dúvida, estilhaços biográficos. Talvez pudéssemos extrair delas esta suma pedagógica/ontológica: falando de si, excessivamente, rapidamente, maquinalmente, deixa-se de ser. E se usei acima a palavra “ato”, julgo mais preciso, na sua imprecisão, o termo ritual. Acercando-se do mistério e do silêncio, da impessoalidade da máquina e dos animais, da sensação de morte e de Deus, a própria autora se surpreende com a precipitação de sua intimidade, como se voltasse a si — voltando a ser — e, em meio ao fluxo, desejasse recuar: “Como em tudo, no escrever também tenho uma espécie de receio de ir longe demais. Que será isso? Por quê? Retenho-me, como se retivesse as rédeas de um cavalo que poderia galopar e me levar Deus sabe onde. Eu me guardo”.

Nada disso, porém, respondia a uma convocação intelectual. A demanda vinha da intuição, de um arrebatamento anterior aos mecanismos de um conhecimento racional estrito. Assim, Clarice fala de um ímpeto de escrever que pode se dar como “impulso puro — mesmo sem tema”. E acrescenta: “Mas quem? Quem me obriga a escrever? O mistério é esse: ninguém, e no entanto a força me impelindo”. Mais adiante, ela chegaria a formular de modo muito claro sua visão do processo criativo: “Para falar a verdade, não se pode pensar num conteúdo sem sua forma. Só a intuição toca na verdade sem precisar nem de conteúdo nem de forma. A intuição é a funda reflexão inconsciente que prescinde de forma enquanto ela própria, antes de subir à tona, se trabalha”. 

Lembrando que Clarice incorporou algumas crônicas a seu romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, fantasio que Todas as crônicas poderia se chamar Uma desaprendizagem: “Não sei mais escrever, porém, o fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me salvará da literatura”. Escrevendo, a cronista aprendia a “não saber escrever”, enquanto a literatura se tornava, por conseguinte, uma estranha dádiva — “Escrever é uma maldição” —, pois só por meio dela, aceitando sua desimportância, haveria alguma chance de se alcançar aquilo que realmente importa, o desconhecido objeto que a escrita promete: “O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar”. 

Essas especulações sobre a escrita e seus mistérios podem soar bastante divertidas, graças a declarações cuja franqueza desdenha qualquer sombra de soberba: “Quando não estou escrevendo, eu simplesmente não sei como se escreve. E se não soasse infantil e falsa a pergunta das mais sinceras, eu escolheria um amigo escritor e lhe perguntaria: como é que se escreve?”.

Está em ação uma rara faculdade de conhecimento por meio de instrumentos que se inauguram a cada exercício, de modo que a revelação do que se vai dizer e o ato de dizer se confundem, sem chance para que se pavimente alguma ciência minimamente estável, repetível, ou ainda, sem que se configure uma habilidade: “Pessoas que às vezes querem me elogiar chamam-me de inteligente. E ficam surpreendidas quando digo que ser inteligente não é meu ponto forte e que sou tão inteligente quanto qualquer pessoa. Pensam, então, inclusive que estou sendo modesta”. É outra vez a intuição que vem a primeiro plano, constituindo um modo inteligente de operar no escuro: “Mas muitas vezes a minha chamada inteligência é tão pouca como se eu tivesse a mente cega. As pessoas que falam de minha inteligência estão na verdade confundindo inteligência com o que chamarei agora de sensibilidade inteligente. Esta, sim, várias vezes tive ou tenho. […] O que, suponho, eu uso quando escrevo, e nas minhas relações com amigos, é esse tipo de sensibilidade. Uso-a mesmo em ligeiros contatos com pessoas, cuja atmosfera tantas vezes capto imediatamente”. 

Tal vontade de atestar a viabilidade de uma escrita fora dos contornos de uma inteligência formal concernente à literatura dá ocasião a esclarecimentos aos quais nunca faltam o humour e a ironia. Após proclamar que não é uma “literata”, porque não tornou a escrita de livros — escritos “espontaneamente” — nem uma profissão nem uma carreira, Clarice se pergunta se é uma “amadora”. E sem responder, prossegue: “Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que, agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. […] Hoje em dia, apesar de muitas vezes ter preguiça de escrever, chego de vez em quando a ter mais preguiça de ler do que de escrever”. 

O humour inteiramente desembaraçado não raro se faz sobre os equívocos em torno da inteligência ou de dotes intelectuais, como no episódio em que uma amiga lhe conta que alguns a consideram, ela Clarice, “altamente intelectualizada” e julgam que tem “grande cultura”. A amiga diz que a autora de A maçã no escuro deveria, “só para não se envergonhar”, dar um jeito em sua estante, que lhe parecia muito desfalcada. A deliciosa conclusão da cena vem nos seguintes termos: “Mas realmente je m’en fiche. Brinco toda secreta de deixar que pensem o que quiserem. Como não tenho remorsos de ser realmente uma ‘desfalcada’ — em outras coisas me dói — estou pura para sentir o gosto do logro. […] No começo tentei dizer a verdade: mas tomavam como modéstia, mentira ou ‘esquisitice’”. 

Vem a propósito lembrar que a grande maioria desses textos foi escrita da segunda metade dos anos 1960 até meados da década seguinte, período marcado pela contracultura e suas ramificações. Clarice, ao defender com serenidade mas vigor um lugar marginal perante a instituição literária, a seus regulamentos e aparatos, parece harmonizar-se com aquele espírito contestatório, como se sua vocação mais profunda houvesse encontrado uma coincidência com os jovens de seu tempo. É bastante eloquente, e emocionante, que em 17 de fevereiro de 1968 sua não-crônica seja uma carta ao ministro da Educação, na qual se refere à injusta distribuição de vagas nas universidades, cuja conclusão vem com a seguinte frase: “Que estas páginas simbolizem uma passeata de protesto de rapazes e moças”. Pouco adiante, em 29 de junho do mesmo tumultuado ano de 1968, a cronista, falando diretamente com um de seus leitores, intrépida, assevera: “Os estudantes estão gritando em todas as partes do mundo, Élcio. E eu grito com eles”. 

Percebo a esta altura que não disse quais são os temas recorrentes dessas crônicas. Mas, num rol brevíssimo, e pouco responsável, por ser apenas uma lista, registro: motoristas de táxi, empregadas domésticas, animais, Deus, justiça, a necessidade urgente de preservarmos as terras indígenas e de fazer a reforma agrária no país, o medo, sua mão queimada, a indiferença, Chico Buarque, o mar, leitores, a solidão, o silêncio, a fome, o amor, seus filhos. Eu também deveria ter falado das entrevistas, várias, inusitadas, com gente como Pablo Neruda, Nelson Rodrigues, Millôr Fernandes, Tom Jobim e Zagallo.

É quase como um ps, então, que cito mais uma passagem (era uma festa, na qual se encontravam Clarice e alguns amigos, entre eles o autor de Grande sertão: veredas): “Guimarães Rosa então me disse uma coisa que jamais esquecerei, tão feliz me senti na hora: disse que me lia, ‘não para a literatura, mas para a vida’. Citou de cor frases minhas e eu não reconheci nenhuma”.

* Este texto foi publicado originalmente no dia 1º de abril de 2019 na revista Quatro cinco um.

Nota do autor

Alguns textos publicados em A descoberta do mundo não estão em Todas as crônicas porque integram o volume Todos os contos.

Notas

“O lustre” é publicado em inglês

, "O lustre" é publicado em inglês. IMS Clarice Lispector, 2018. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2018/04/05/o-lustre-e-publicado-em-ingles/. Acesso em: 25 março 2025.

O lustre, segundo romance de Clarice Lispector, publicado em 1946, ganhou recente tradução para o inglês, realizada por Benjamin Moser e Magdalena Edwards. O novo título, The chandelier, é mais um da série de traduções de obras da autora que vêm sendo publicadas nos últimos anos. Em depoimento ao The New York Times, Moser observa que talvez esse seja o livro mais estranho e difícil da escritora brasileira (nascida na Ucrânia, em 1920). O crítico britânico Christopher Ricks, por sua vez, enxerga nele uma miniatura do universo de Clarice:

Muitos temas, indagações filosóficas e tipos de personagem que aparecem [em O lustre] retornarão depurados na medida em que Clarice refina seu estilo e os cristaliza nos diamantes perfeitos que serão seus últimos livros, narrados com aforismos e fragmentos — que ela chamava de “antiliteratura”.

O jornal americano ainda celebra a redescoberta de Clarice nos Estados Unidos como um dos verdadeiros acontecimentos literários do século XXI, ressaltando a singularidade de sua escrita, marcada por uma pontuação e uma sintaxe únicas, além de uma capacidade de ressignificar as palavras segundo seu próprio desejo — “Ninguém se parece com Lispector (…). Ninguém pensa como ela”, conclui o jornalista Parul Sehgal.

Alguns dias depois do destaque dado a The chandelier pelo jornal americano, o editor Gregory Cowles incluiu o título na lista de dez sugestões de leitura que fez para a prestigiada coluna Book Review.

Leia aqui a matéria do The New York Times.

*Foto: Fotógrafo não identificado/ Arquivo Clarice Lispector/ IMS

Notas

Clarice Lispector por Jorge Carrión

, Clarice Lispector por Jorge Carrión. IMS Clarice Lispector, 2018. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2018/01/19/clarice-lispector/. Acesso em: 25 março 2025.

O escritor e crítico literário espanhol Jorge Carrión publicou recentemente, no New York Times, um ensaio sobre a vida e a obra de Clarice Lispector (“La pasión según Clarice Lispector”). O autor parte da leitura de Por qué este mundo, a biografia de Clarice escrita por Benjamin Moser, recém-lançada em tradução espanhola pela editora Siruela, para abordar questões mais amplas relacionadas à obra clariceana:

Ela não gostava de entrevistas e a ficção, em seu caso, é muito mais importante, incisiva e eloquente do que a não ficção. Ao ler seus romances e contos, poderíamos concluir que é uma escritora hermética, próxima ao misticismo. Porém, creio que, pelo contrário, ela é uma artista absolutamente contemporânea, que resolveu em sua obra uma das grandes questões literárias da nossa época: como escrever com ambição abstrata paisagens mentais com palavras figurativas.

Ou seja, para Carrión, a obra de Clarice é “corporal, totalmente vital e sanguínea”, embora esteja coalhada de metáforas e mistérios. Essa característica, ainda segundo o crítico, aproximaria sua prosa da poesia. Por isso, talvez, ela escrevesse como se fosse para salvar a vida de alguém, talvez a dela própria, como disse em Um sopro de vida.

Leia o ensaio de Carrión, em espanhol, clicando aqui.

Notas

“Tornar-se”: notas sobre a “vida secreta” de Clarice Lispector

, "Tornar-se": notas sobre a "vida secreta" de Clarice Lispector. IMS Clarice Lispector, 2017. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2017/12/21/tornar-se-notas-sobre-a-vida-secreta-de-clarice-lispector/. Acesso em: 25 março 2025.

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Nesse ano em que se comemora A hora da estrela, a entrada de Clarice Lispector e de sua alter ego (uma de muitas), Macabéa, na “própria profundeza (…) – a floresta”, a profusão de explicações factuais para esse ou aquele personagem, elemento narrativo ou situação de escrita, ao enlaçar e engessar ainda mais uma obra já marcada pela leitura biografizante, parece perder de vista a lição essencial enunciada repetidas vezes por essa escritora e escritura conhecidas justamente pela rarefação do enredo, dos fatos. Se a formulação de tal lição aparece em Água viva (“Não vou ser autobiográfica. Quero ser ‘bio'”), é na “Explicação” de abertura de A via crúcis do corpo que ela se manifesta (termo chave na poética de Clarice) em toda sua radicalidade. A própria posição não marcada em relação aos outros treze textos que compõem o volume, o que torna impossível distinguir graficamente ou por meio de um elemento paratextual se se trata de um prefácio (da autora) ou já de uma ficção (de uma narradora) é reforçada pelo que a “Explicação” diz: “É um livro de treze histórias. Mas podia ser de quatorze. Eu não quero. Porque estaria desrespeitando a confidência de um homem simples que me contou a sua vida. Ele é charreteiro numa fazenda. E disse-me: para não derramar sangue, separei-me de minha mulher, ela se desencaminhou e desencaminhou minha filha de dezesseis anos. Ele tem um filho de dezoito anos que nem quer ouvir falar no nome da própria mãe. E assim são as coisas”. A décima-quarta história, contada no gesto mesmo em que se anuncia a sua omissão – uma confidência inconfidente –, assemelha-se, assim, à “quinta história” do conto homônimo de A legião estrangeira: a última, ou primeira, das histórias é a história da feitura das histórias, não só implicando (dobrando para dentro) a vida na obra, mas também explicando (dobrando para fora) a ficção na realidade. Nesse sentido, cabe lembrar que, segundo a explicação, a gênese de A via crúcis veio de uma encomenda editorial de “três histórias que (…) realmente aconteceram” (grifo nosso), e que seriam, conforme a autora (ou narradora), “Miss Algrave”, “Via crucis” e “O corpo”, as três peças do livro mais afastadas da proposta, pois que consistem, antes de tudo, na reescritura paródica de outros textos: em ordem, a experiência mística de mulheres católicas, a encarnação de Cristo e um conto de Poe, “The Tell-Tale Heart”, que Clarice já havia traduzido (ou seja, reescrito uma vez, dando-lhe o título de “O coração denunciador”). Como “A explicação inútil”, do “Fundo de gaveta”, segunda parte de A legião estrangeira, que se autonomizou no volume Para não esquecer, a “Explicação” mais complica do que fornece uma chave de leitura para a relação vida-obra e para a gênese (o nascimento) da ficção na realidade – o que já se prenunciava nas epígrafes do livro, que misturam passagens bíblicas e uma atribuída a um “Personagem meu ainda sem nome” e outra de “Não sei de quem é”. Assim, por um lado, Clarice faz de uma ficção de Poe (ou a toma como) uma história que realmente aconteceu (o que está escrito já aconteceu, o que se escreve acontece), num paradoxal movimento literário de desliteraturização, magistralmente trabalhado por João Camillo Penna, e que aparece já em Perto do coração selvagem, quando o Lobo das Estepes, personagem do livro homônimo de Hesse, e, portanto, referência literária, figura como uma lembrança da vida de Joana. Por outro lado, em um jogo com a encomenda do editor, ela insere nesse livro de contos, de ficções, três outras histórias (“O homem que apareceu”, “Dia após dia” e “Por enquanto”) que soam, pela dicção e retomada de datas e fatos mencionados na “Explicação”, como não ficcionais, em tudo próximas às crônicas clariceanas. Ou seja, a escritora ao mesmo tempo cumpre à risca e dobra a aposta colocada pelo editor de ficcionalizar fatos reais: de fato, a partir mesmo da abertura do livro, como vimos, a vida se torna ficção, mas o que se ficcionaliza (ou realiza) não são apenas determinados fatos, e sim a própria escritura do livro, a encomenda e sua realização, a vida da escritora e da escritura, em suma, a relação mesma entre vida e obra, realidade e ficção. É como se, para Clarice, a ficção literária, o “como se”, constituísse uma via de mão dupla, por meio da qual o inexistente ganha vida apenas à medida que a ‘vida real’ se desrealiza, ou seja, se desse a partir de uma recriação do dado, conforme podemos ver nessa famosa passagem, em que o nascimento da escritura co-incide com o não nascimento (morte) da escritora, ou melhor, com a transformação (e intersecção) recíproca – um corpo-a-corpo – da realidade e da ficção: “Escrever é tantas vezes lembrar-se do que nunca existiu. Como conseguirei saber do que nem ao menos sei? assim: como se me lembrasse. Com um esforço de memória, como se eu nunca tivesse nascido. Nunca nasci, nunca vivi: mas eu me lembro, e a lembrança é em carne viva” (grifo no original).

2.

A “Explicação” parece formular poeticamente uma solução há muito buscada e trabalhada para um duplo problema, conjugado e de origem financeira, que a assolava: a necessidade de escrever cotidianamente crônicas, e, portanto, de ‘falar de si’, aproveitar elementos e acontecimentos da própria vida, e de publicar novos livros, mesmo julgando não ter material à altura. Isso resultou numa série de livros que reciclam contos e crônicas anteriores (Felicidade clandestina, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Água viva e mesmo Onde estivestes de noite), num procedimento que alterna, conjuga e mistura o palimpsesto e a colagem e justaposição, como demonstrou Edgar Nolasco, e que, com A via crucis do corpo, parece ganhar o estatuto de uma poética da reescritura, ou melhor, de uma concepção da escrita e criação literárias como re-criação, transformação – análogas, assim, à própria vida. E, de fato, a cena inaugural mesma da escrita ficcional em Clarice, o conto “Os desastres de Sofia”, seguidas vezes remetida a um fato biográfico, e publicado em dois livros, além de retomar e inverter tanto a história de Chapeuzinho Vermelho, fazendo da menina o lobo, quanto o romance Lês Malheurs de Sophie, de quem toma o título, a situa já como reescritura (e Sofia como reescritora). Como se sabe, diante da tarefa posta pelo professor (um dos muitos, sempre masculinos, na obra clariceana, às vezes cruéis como n'”O crime do professor de matemática”, outras, pedantes como em Uma aprendizagem, mas sempre operando como iniciadores às avessas, antípodas com as quais as personagens, femininas, devem se confrontar para aprender) de escrever a história por ele contada com as “próprias palavras”, Sofia a reescreve, acrescendo um final de modo a inverter a moral proposta: ao invés de um louvor ao trabalho, o relato transformado pela menina se converte num elogio ao ócio, ao “ato gratuito” de uma crônica futura de Clarice, à felicidade que sempre deve ser clandestina, jamais merecida. É sintomático que esse momento de nascimento da escritura ficcional no conto ganhe os contornos de uma série de desastres do saber (sofia) em vários sentidos: um ato desastrado, mera provocação gratuita de Sofia, até então muito segura de si; a revelação da “muda catástrofe” do professor, mestre do saber, cujo sorriso de contentamento em reação ao gesto da aluna é descrito como monstruoso, desconjuntado, desastrado; e, por fim, o desastre de um saber de tipo científico, baseado na observação de um objeto por um sujeito, saber supostamente neutro, que não cria, apenas descreve, saber intelectual que um professor transmite a um aluno, em suma, todo o contrário do que se estabelece nessa cena, em que a reescritura da parábola moral por Sofia apresenta um outro saber, feminino, ao (re)criar sobre a parábola, cria sobre o mundo, sobre o outro, sobre o corpo mesmo do professor, uma transformação, um impulso (outro termo chave de Clarice, sua tradução modificada do conatus de Spinoza, presente tanto nos seres vivos quanto nos objetos maquínicos, como Sveglia). Se antes, Sofia “pensava que tudo que se inventa é mentira”, na reação de felicidade quase extática do professor, no seu olhar, ela vê outra coisa: “O que vi, vi tão de perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso tivesse se colado ao buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando. Eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel. Com suas lágrimas orgânicas.

Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o olho ri. (…) Eu vi um homem com estranhas sorrindo (…) – era cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida. Vida nascendo era tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo. Ver a esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago. (…) Eu o olhava surpreendida, e para sempre não soube o que vi, o que eu vira poderia cegar os curiosos”.

Devemos ler essa passagem em conjunto com outras tantas em que a criação, em geral associada ao feminino, remete, por um lado, à transformação e não à creatio ex nihilo, e, por outro, ao nascimento. Assim, por exemplo, outra cena inaugural da escrita em Clarice, o seu primeiro romance, Perto do coração selvagem, tratado pela crítica como um Bilundgsromande uma artista. Lembremos, para começar, que, nele, Joana se vê não só diante de um professor, como também de outras duas figuras masculinas ligadas à escrita, o Pai, solteiro, e o marido, Otávio, sendo que cada uma das duas partes da ficção se inicia com uma cena de escrita – a primeira, daquele, a segunda, deste. Incapaz, ou melhor, indisposta a reproduzir dentro da família (a dos tios quando criança, a com Otávio após o casamento) o papel reprodutivo que era imposto às mulheres na sociedade de então, Joana, diante da notícia da gravidez de Lídia, amante de seu marido, e mesmo antes, já à sua aproximação, numa cena eivada do peculiar erotismo corpo-anímico de Clarice, reconfigura o impulso de engravidar (acompanhado no texto pelo brotar de um vocabulário repleto de partos, embriões, fecundações, que acompanhará toda a obra posterior) na gestação e nascimento de palavras, num movimento que culminará no fim do romance: “um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre onde haja uma mulher com meu princípio, erguerei dentro de mim o que sou um dia, a um gesto meu minhas vagas se levantarão poderosas, água pura submergindo a dúvida, a consciência, eu serei forte como a alma de um animal e quando eu falar serão palavras não pensadas e lentas, não levemente sentidas, não cheias de vontade de humanidade, não o passado corroendo o futuro! o que eu disser soará fatal e inteiro!” Não se trata, porém, de uma simples passagem da gravidez literal à metafórica, mas de uma transfiguração do que é a maternidade e o feminino, como se pode depreender da cena do encontro de Joana com Lídia: “talvez a divindade das mulheres não fosse específica,estivesse apenas no fato de existirem. Sim, sim, aí estava a verdade: elas existiam mais do que os outros, eram o símbolo da coisa na própria coisa. E a mulher era o mistério em si mesmo, descobriu. Havia em todas elas uma qualidade de matéria-prima, alguma coisa que podia vir a definir-se mas que jamais se realizava, porque sua essência mesma era a de ‘tornar-se'”. O feminino aqui designa um excesso qualitativo da existência, um peculiar modo de existência que se caracteriza por não se fixar plenamente em nenhum modo – a diferença de cada forma em relação a si mesma, sua possibilidade de se modificar, se recriar. Desse modo, a redefinição do feminino como um “tornar-se” coloca sob outra luz a sua associação com a matéria, a maternidade, não mais na égide da reprodução de corpos, papéis e sentidos, mas, antes, na chave da metamorfose de corpos, papéis e sentidos: engravidar e parir (e, por extensão, o feminino) tornam-se sinônimos de devir (para ser claro, mesmo que redundante: devir, tornar-se, é já engravidar e parir). E que a criação pela linguagem se conecte, no romance e em Clarice, a esta concepção não-reprodutiva da gravidez já havia sido prenunciado nas brincadeiras com palavras da jovem Joana: “O que se pensava passava a ser pensado. Mais ainda: nem todas as coisas que se pensam passam a existir daí em diante… Porque se eu digo: titia almoça com titio, eu não faço nada viver. Ou mesmo se eu resolvo:vou passear; é bom, passeio… e nada existe. Mas se eu digo, por exemplo:flores em cima do túmulo, pronto eis uma coisa que não existia antes de eu pensar flores em cima do túmulo.”

3.

Se, como afirma Joana, “nada existe que escape à transfiguração”, a esse excesso feminino que há em tudo o que existe e que se confunde com a própria existência enquanto transformação (inclusive, e esse é o ponto, transformação do que é o feminino), o problema de gênero sexual mostra-se logo um problema de gênero textual, com a progressiva transfiguração da forma narrativa do romance, o qual, começando em terceira pessoa (posição não-marcada, i.e., masculina, e, em certo sentido, isomorfa à onisciência divina do Pai criador ex nihilo, fálico) e com o pai escrevendo, aos poucos vai sendo contaminado pela primeira pessoa feminina, a voz de Joana, a quem cabe a última enunciação. O movimento de transfiguração formal, de feminização da forma narrativa, não se restringe a Perto do coração selvagem, mas atravessa os romances de Clarice, tendo como ápice A paixão segundo G.H., já todo na primeira pessoa, com a protagonista narradora se colocando diante do desafio de não se amparar mais numa “terceira pessoa” e no olho que “vigiava a minha vida” (a terceira pessoa onisciente?), e, para tanto, e em contrapartida, inventando uma mão masculina: de um ele que cria e fala sobre uma ela, passamos a uma ela que cria e fala para um ele. Água viva, depois desse corpo estranho (e, por isso mesmo, especialmente importante) que é Uma aprendizagem, retoma a estrutura de GH, mas já livre de todo enredo que não a própria escritura e seu desejo de captar o “instante-já”, que é “semente viva”, os “instantes de metamorfose”, o momento exato da transformação, do tornar-se em si. Não assusta, desse modo, que ele não seja apresentado como romance, e sim como “ficção” (ou “coisa”, como o classificou depreciativa mas clariceanamente Hélio Pólvora em seu parecer sobre Água viva para o Instituto Nacional do Livro). Mas como nada em Clarice escapa à transfiguração, as duas prosas longas finais, A hora da estrela e Um sopro de vida (também não “romances”, mas “novela” e “pulsações”, respectivamente), produzem uma torção ulterior: nelas, nos vemos diante de narradores masculinos em primeira pessoa escrevendo livros sobre (criando) personagens femininas, num gesto pleno de crítica às críticas que Clarice – e a literatura feminina de um modo geral – sofria. Pense-se, por exemplo, na antiga pecha de literatura sentimental ou intimista, ou seja, a acusação de falar sempre de si, e como Rodrigo S.M., “o mais cínico narrador já criado por Clarice Lispector”, segundo Ítalo Moriconi, não consegue senão projetar a si e seus estereótipos sobre Macabéa, a ponto de esta ver a imagem dele ao se olhar no espelho – e isso vindo de um escritor engajado, documental, interessado apenas por “fatos sem literatura”, e que reclama que “escritora mulher pode lacrimejar piegas”. E, para falar da “nordestina amarelada”, sobre a “cadela vadia”, em nome de Macabéa, Rodrigo S.M. precisa necessariamente atribuir a ela a ausência total não só de voz e consciência, como mesmo, por meia narrativa, de nome. Por outro lado, porém, é emblemático que o movimento final de Um sopro de vida retome o de Perto do coração selvagem, com Ângela, a personagem, vindo da ficção para o mundo, e o Autor perdendo as palavras, numa inversão do destino de outra criatura, Macabéa:

“E agora sou obrigado a me interromper porque Ângela interrompeu a vida indo para a terra. Mas não a terra em que se é enterrado e sim a terra em que se revive. Com chuva abundante nas florestas e o sussurro das ventanias.
Quanto a mim, estou. Sim.
‘Eu… eu… não. Não posso acabar.’
Eu acho que..”

4.

Em uma crônica que confronta essa série de questões – a classificação de seus livros, especialmente GH, a forma de suas narrativas e o enredo rarefeito, e a relação entre vida e ficção –, Clarice expõe em chave teórica o vir ao mundo de Ângela (e demais personagens, como Joana, já que Perto do coração selvagem termina in media res, com a protagonista em viagem, saindo das amarras da família e do narrador, para outro lugar, desconhecido): “O que é ficção? é, em suma, suponho, a criação de seres e acontecimentos que não existiram realmente mas de tal modo poderiam existir que se tornam vivos”. Não se trata de uma proximidade ou aparência de verdade ou realidade (uma verossimilhança interna ou externa), mas de uma entrada na vida: a criação ficcional nomeia, para Clarice, uma certa intensificação do modo de ser do possível ou do inexistente (“de tal modo”), que o torna – o transforma em – vivo. Nesse sentido, a concepção spinozista entoada por Joana, “Tudo é um”, deve ser lida na maior amplitude possível – tudo participa da mesma substância, incluindo a ficção e os seres inexistentes: “Tudo é um, tudo é um…, entoara. A confusão estava no entrelaçamento do mar, do gato, do boi com ela mesma. A confusão vinha também de que não sabia se entrara ‘tudo é um’ ainda em pequena, diante do mar, ou depois, relembrando. No entanto a confusão não trazia apenas graça, mas a realidade mesma. Parecia-lhe que se ordenasse e explicasse claramente o que sentira, teria destruído a essência de ‘tudo é um’. Na confusão, ela era a própria verdade inconscientemente, o que talvez desse mais poder-de-vida do que conhecê-la. A essa verdade que, mesmo revelada, Joana não poderia usar porque não formava o seu caule, mas a raiz, prendendo seu corpo a tudo o que não era mais seu, imponderável, impalpável.” Se tudo participa da mesma substância, se a diferença entre as coisas não é de natureza, de essência, mas de modo, de forma, então decorre daí uma continuidade não só entre o humano e o animal, como também entre o orgânico, vivo, e o inorgânico, supostamente morto, e, ainda mais, entre os seres existentes e os inexistentes: trata-se assim de se questionar a prerrogativa da excepcionalidade humana, da vida biológica e da superioridade ontológica do atualmente existente, e, ao mesmo tempo, já que tudo participa da mesma substância, mudando apenas sua forma, de postular a possibilidade universal de metamorfose e transfiguração, em suma, da vida. “Tudo é um” quer dizer que tudo pode se modificar, que tudo é vivo – incluindo, e eis a extensão que queremos frisar, os seres ficcionais, que são tão vivos quanto os seres existentes. Seguindo a máxima shakespeariana – “We are such stuff as dreams are made on” –, Clarice parece postular um monismo radical, que se pode ver em uma série de formulações suas ou de suas personagens nas quais a criação não remete a um outro inferior da realidade ou da vida, como quando G.H. afirma: “Terei que fazer a palavra como se fosse criar o que me aconteceu? Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir. Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se ter a realidade”.Talvez isso explique porque a experiência da “coisa” seja sempre acompanhada de uma experiência da linguagem nas suas ficções, porque,ao adentrar o “bio” antes do biográfico, o “neutro”, “it“, a “matéria-prima”, a “floresta”, o “proibido tecido da vida”, a zona antes da individuação e separação em gêneros, onde reina a “Ela/ele”, o “Ele/Ela” de Onde estivestes de noite, as personagens clariceanas se sintam na necessidade de escrever, ficcionar, pois elas veem, como Joana, seus corpos ligados por uma raiz a tudo que não é mais seu – todas as outras coisas, todos os outros seres, entre os quais os inexistentes. “Ter a realidade” dessa experiência da unicidade do mundo, implica, assim, criar, enquanto gesto de tornar vivo, de intensificar um modo de ser do que normalmente aparece não só morto, como inexistente. Dessa maneira,não é um acaso, que, em Água viva, a protagonista-narradora, após vivenciar o “estado de graça”, descrevendo-o como “se viesse apenas para que soubesse que realmente se existe e existe o mundo”, afirme que “depois da liberdade do estado de graça também acontece a liberdade da imaginação. (…) A loucura do invento”. O “estado de graça” vem apenas para se saber que realmente se existe e existe o mundo – e que, entre eles, existe o inexistente, ao qual a ficção tem o poder de tornar vivo.

5.

Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres abre com a protagonista Lóri, diante de uma situação de angústia extrema, ficcionando, numa sucessão de “faz de conta que” descritos como “os movimentos histéricos de um animal preso”, que “tinham como intenção libertar, por meio de um desses movimentos, a coisa ignorada que o estava prendendo”. Essa transvaloração de uma cena tipicamente (estereotipadamente) feminina, associando, como em Água viva, criação e liberdade, nos leva à verdadeira data clariceana, ou melhor, a hora clariceana por excelência, entre duas datas, hora possivelmente inventada da escritura de A via crucis do corpo. Se a “Explicação” afirma que “Hoje é dia 12 de maio, Dia das Mães”, data na qual teriam sido terminadas as três histórias que “realmente aconteceram”, o “P.S.” que a suplementa (ou reescreve) e em que teriam sido redigidos outros contos do volume é datado de outro hoje, posterior ao “domingo maldito”: “Hoje, 13 de maio, segunda-feira, dia da libertação dos escravos – portanto da minha também”. Pode-se ler essa sequência, essa associação ou sucessão entre maternidade e liberdade de dois modos, não necessariamente contraditórios entre si. Por um lado, como a libertação da escravidão dos personagens, especialmente as femininas, do papel social, familiar, epitomizado na reprodução, na maternidade – a passagem da mãe à liberta. Nesse sentido, tratar-se-ia da radicalização do movimento que se intensifica na escritura de Clarice a partir do que José Miguel Wisnik chamou de trilogia da separação – Laços de família, A legião estrangeira e A paixão segundo G.H.. Nela, os laços familiares, socialmente familiarizados, não só unem, como prendem, enlaçam, servindo como instrumentos de domesticação que alocam a cada um em seu lugar. Mas, nas margens do familiar, nas bordas dos laços do domesticado, começam a aflorar uma série de figuras que dominarão a ficção posterior de Clarice: loucos, criados, animais (galinhas, cachorros, baratas, cavalos, etc.), espaços “naturais” domesticados na cidade, cercados por ela (jardins – privados, zoológicos ou botânicos), etc. Como uma verdade legião estrangeira – de sentido completamente oposto à da formação militar com esse nome –, tais figuras vão ganhando cada vez mais o centro da cena, questionando e revelando a violência das relações domesticadas e domesticantes, a ponto de, em A via crucis, a multiplicidade não poder ser mais alienígena ao corpo familiar de então – gays, lésbicas, transexuais, prostitutas, freiras e viúvas repletas de desejo carnal, mendigos, em suma, “tudo o que não presta”, para usar as palavras de um político imprestável. Desse modo, por exemplo, a dupla de contos “Macacos” e “A menor mulher do mundo”, articulando racismo e especismo, traz à tona o papel do exotismo violento, mesmo quando piedoso, que está na base do processo de familiarização (de humanização) em nossa sociedade. Tal questionamento, porém, não se reduz a uma negação do dado, uma afirmação às avessas; antes, busca converter a afirmação em interrogação, no que parece ser um movimento que atravessa a escritura de Clarice: “Este livro é uma pergunta”, afirma Rodrigo S.M.; “Escrever é uma indagação. É assim: ?”, lemos em Um sopro de vida; “sou uma pergunta”, diz a narradora de Água viva, frase que também intitula uma crônica; e, para ficar com só mais um exemplo, o mais forte deles: “O único modo dechamar é perguntar: como se chama? Até hoje só consegui nomear com aprópria pergunta. Qual é o nome? e este é o nome.” Trata-se, assim, não só de negar os laços existentes, ou de afirmar outros em seu lugar, mas de abrir espaço para a experimentação de outras relações – por isso, a libertação é só o primeiro passo de um movimento indagador que não pode estagnar em uma afirmação, em um nome: “Liberdade é pouco. O que eu quero ainda não tem nome”. Tomemos o conto “A legião estrangeira”. Nele, nos deparamos com uma configuração familiar no mínimo estranha. Os membros da família propriamente dita da narradora não são nomeados e mal aparecem. Quem ocupa, no primeiro momento, o lugar de proeminência é um pintinho que, aterrorizado, faz com que os filhos peçam à sua mãe que seja a mãe também daquele animal, de alguém que não pertence propriamente à família, e nem mesmo ao gênero humano – maternidade que a narradora diz não saber desempenhar. É essa cena “infamiliar” (para usar um termo que aparece três vezes em Laços de família, e uma tradução possível para o Unheimlich freudiano) que a faz rememorar outra, a convivência com Ofélia, mais uma estranha de quem foi mãe, a filha da vizinha. Se, por um lado, a narradora parece exercer certa atração sobre a criança, a ponto de esta visitá-la todos os dias, por outro, a relação aparece socialmente invertida, pois é Ofélia quem se comporta como uma adulta, como a encarnação da obediência às normas sociais e de comportamento (o tema reaparecerá de forma trágica em “Os obedientes”), cabendo à anfitriã de fato curvar-se, e definir o laço entre elas de modo paradoxal: “já me tornara o domínio daquela minha escrava”. O ponto de virada se dá quando Ofélia ouve um pintinho (outro) na cozinha, e a narradora a permite e estimula ir brincar com o animal, o que termina fazendo, contra toda a rigidez que lhe fora imposta pela sua própria família. Não estranha que na descrição do acontecimento, de novo, nos deparemos com uma imagem que já se tornou familiar: “A agonia de seu nascimento. Até então eu nunca vira a coragem. A coragem de ser o outro que se é, de nascer do próprio parto, e de largar no chão o corpo antigo. (…) Já há alguns minutos eu me achava diante de uma criança. Fizera-se a metamorfose”. É numa relação não propriamente maternal que a maternidade ganha uma abertura de sentido, que novos laços, entre a narradora e Ofélia, entre esta e o mundo e consigo mesma, podem ser experimentados: aqui, a maternidade (‘imprópria’) designa a aberturada porta para a desobediência, para que se possa sair dos laços de família, para que se possa fazer contato com o estranho, e assim modificar a si mesmo, “ser o outro que se é”. Desse modo, podemos voltar à sucessão de datas da “Explicação” e vê-la de outro modo, complementar a esse primeiro: a maternidade enquanto libertação das relações dadas, possibilidade de recriação do dado, incluindo a própria maternidade, já que a figura mais maternal (inclusive literalmente) de A via crúcis do corpo é a transexual Celsinho/Moleirão, “mais mulher que Clara”, sua amiga (‘biologicamente’ mulher) e concorrente.

6.

A força e a singularidade da concepção clariceana de ficção, e de sua relação com a vida, reside nessa atenção para aqueles e aquilo que estão à margem, como se o poder de tornar vivo da ficção, seu poder de libertar, estivesse relacionado ao “poder-de-vida” do radicalmente outro– e “atenção” é mais um dos vocábulos cruciais, também associado ao feminino, de sua escritura: “Lóri era uma mulher, era uma pessoa, era uma atenção, era um corpo habitado olhando a chuva grossa cair”. Em seu belo texto sobre A hora da estrela, Hélène Cixous aponta a minúcia dessa atenção e suas consequências: “O maior respeito que tenho por qualquer obra no mundo é o que tenho pela obra de Clarice Lispector. Ela tratou como ninguém, a meu ver, todas as posições possíveis de um sujeito com relação ao que seria ‘apropriação’, uso e abuso do próprio. E isso nos detalhes mais finos e mais delicados. Aquilo contra o que seu texto luta sem cessar, em todos os terrenos, os mais pequenos e os mais pequenos grandes, é o movimento de apropriação: mesmo quando parece o mais inocente, permanece totalmente destrutivo. A piedade é destrutiva, o amor mal pensado é destrutivo; a compreensão mal medida é aniquiladora. Pode dizer-se que a obra de Clarice Lispector é um imenso livro do respeito, livro da boa distância. E essa boa distância não se pode obter, como diz ela o tempo todo, senão por um árduo trabalho de deseuização, um árduo trabalho de desegotização. O inimigo para ela é o eu cego.” Assim, para Clarice, prestar atenção ao outro demandaria a “despersonalização” ou “objetivação” de si, a entrada no neutro, o “não nascimento” de si, movimento sem o qual não é possível a sua conversão em um “corpo habitado”, a “Encarnação involuntária” de que fala um conto/crônica e que parece ser um bom nome para a ficção segundo C.L.: “Às vezes, quando vejo uma pessoa que nunca vi, e tenho algum tempo para observá-la, eu me encarno nela e assim dou um grande passo para conhece-la (…) Já sei que só daí a dias conseguirei recomeçar enfim a minha própria vida. Que, quem sabe, talvez nunca tenha sido própria, senão no momento de nascer, e o resto tenha sido encarnações”. Exemplificada pela encarnação em uma missionária e depois numa prostituta (um par sempre presente), a operação, que tenho chamado de obliquação, seguidamente ocorre diante de, ou em relação com, figuras de uma alteridade extrema, especialmente animais. Trata-se de adotar a perspectiva do outro e, desse modo, estranhar a própria (daí a importância da intensidade da diferença), como no “Seco estudo de cavalos” (“E veria as coisas como um cavalo vê”), ou em “A procura de uma dignidade”, na qual a inversão perspectiva se enuncia de maneira plena: “Ulisses, se fosse vista a sua cara sob o ponto de vista humano, seria monstruoso e feio. Era lindo sob o ponto de vista de cão. Era vigoroso como um cavalo branco e livre, só que ele era castanho suave, alaranjado, cor de uísque. Mas seu pelo é lindo como a de um energético e empinado cavalo. Os músculos do pescoço eram vigorosos e a gente podia pegar esses músculos nas mãos de dedos sábios. Ulisses era um homem. Sem o mundo cão” (o livro infantil Quase de verdade puxará ainda mais esse fio, sendo narrado pelo “mesmo” cachorro Ulisses, companheiro de vida de Clarice, cabendo a ela a transcrição ou tradução de seus latidos em escrita). Todavia, o movimento não termina aí: não estaríamos diante de um verdadeiro nascimento, um verdadeiro tornar-se, uma transformação, se tal encarnação não estabelecesse uma relação com a vida, não se tornasse ela mesma viva, não nos modificasse, não nos fizesse renascer. É preciso, portanto, que a transformação perspectivística seja um modo de reciprocamente olharmos pelos olhos dos outros e sermos olhados por eles, não só vermos o mundo pelos olhos dos outros, como também vermos a nós mesmos por esse olhar, nos vermos de outro modo, modificando-nos. Ao menos, essa parece ser a “experiência maior” de que fala Clarice, e que suas ficções não cessam de buscar: “Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o outro dos outros era eu. “A experiência maior, enquanto tornar-se outro a partir do contato com outro não se reduz a ser os outros (experiência não eivada de egotismo às avessas); antes, constitui um experimento da subjetividade ancorado na transfiguração, pelo qual, atravessando o não nascimento de si e o nascimento do outro em nós, acessamos aquela “terra em que se revive” de que fala Um sopro de vida, em que nos recriamos – ou somos recriados. A ficção torna o outro vivo em nós, para tornar a nossa vida outra. Ela fornece a liberdade para o questionamento de si e seus laços com o mundo e para a indagação de outras relações, para as quais ainda não temos nome, para as quais a pergunta é o único nome possível.

7.

Partindo de uma formulação espelhada de Um sopro de vida, “A sombra de minha alma é o corpo. O corpo é a sombra de minha alma”, a jovem clariceana Letícia Pilger afirmou que a relação da autora com o livro póstumo poderia ser definida de maneira análoga: de fato, a obra ficcional é a sombra da vida da Clarice, desde que tomemos a recíproca como verdadeira, a saber, que a vida de Clarice é também a sombra de sua ficção. Afinal, parafraseando Eduardo Viveiros de Castro, se tudo, incluindo os seres ficcionais, é vivo, então a vida, e também a ficção, é outra coisa – tudo é um (tornar-se).

Alexandre Nodari é professor de Literatura Brasileira e Teoria Literária da UFPR; colaborador dos Programas de Pós-Graduação em Letras e Filosofia da mesma instituição. Também é editor da revista Letras e coordenador do SPECIES – Núcleo de antropologia especulativa: http://speciesnae.wordpress.com)

Notas

Clarice no México

, Clarice no México. IMS Clarice Lispector, 2017. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2017/12/13/clarice-no-mexico/. Acesso em: 25 março 2025.

O aniversário de Clarice Lispector foi no domingo passado, dia 10 de dezembro, mas as comemorações da “Hora de Clarice” continuam, no Brasil e no exterior. No México, o Fondo de Cultura Económica celebrou a data com uma apresentação de En estado de viaje (publicado pelo FCE em 2017), reunião de textos do período em que a autora esteve fora do país (entre 1944 e 1959). Confira trechos da leitura no vídeo, com a participação de Tálata Rodriguez.

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Biografia de Clarice ganha edição em espanhol

, Biografia de Clarice ganha edição em espanhol. IMS Clarice Lispector, 2017. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2017/12/11/biografia-de-clarice-ganha-edicao-em-espanhol/. Acesso em: 25 março 2025.

A biografia de Clarice Lispector escrita por Benjamin Moser, Why this world (Oxford University Press, 2009), segue circulando pelo mundo. Publicada no Brasil também em 2009 pela Cosac Naify, com tradução de José Geraldo Couto, a obra ganhou nova edição este ano, desta vez pela Companhia das Letras. Intitulada Clarice,, a biografia reeditada conta com novas fotos, imagens raras, cartas e manuscritos descobertos pelo próprio Moser.

O livro chega agora aos países de língua espanhola. A editora madrilenha Siruela lançou Por qué este mundo. Una biografía de Clarice Lispector (trad. Cristina Sánchez-Andrade) em setembro na Europa e começou a distribui-lo na América Latina este mês. Os novos lançamentos darão oportunidade aos leitores hispanófonos de entrar em contato com uma “biografia digna de sua protagonista”, segundo Orhan Pamuk, escritor turco vencedor do prêmio Nobel. “Enfim, uma das autoras mais enigmáticas do século XX retratada em todo seu vibrante colorido”.

Ficou interessado? Você pode ler um trecho da obra clicando aqui.

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A hora e a vez de Clarice Lispector

, A hora e a vez de Clarice Lispector. IMS Clarice Lispector, 2017. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br/2017/12/04/a-hora-e-a-vez-de-clarice-lispector/. Acesso em: 25 março 2025.

Em 2017, comemoram-se os quarenta anos de A hora da estrela, último livro escrito por Clarice Lispector e publicado no ano de sua morte. O evento “Hora de Clarice”, organizado anualmente pelo IMS para celebrar o aniversário da escritora (10 de dezembro), homenageará esse legado com uma programação diversa em suas sedes. Além disso, outras instituições promoverão leituras, lançamentos e apresentações dentro e fora do Brasil.

Um dos destaques do projeto é a leitura de A hora da estrela dirigida por Bruno Lara Resende, com os atores Ana Carina, Charles Fricks, Marcio Vito e Raquel Iantas. A apresentação será no dia 10 de dezembro, no auditório do IMS do Rio de Janeiro. No IMS de Poços de Caldas, o professor Sérgio Roberto Montero Aguiar falará sobre a relação de Maria Bethânia com a obra de Clarice, utilizando áudios com fragmentos declamados em shows e livros, discos e projeção de imagens. Em São Paulo, haverá um encontro com a escritora e tradutora Idra Novey, que verteu A paixão segundo G.H. para o inglês.

Esta edição reafirma a projeção cada vez maior da obra de Clarice no mundo. Um dos marcos mais recentes foi a publicação de The Complete Stories pela editora norte-americana New Directions, considerado pelo New York Times como um dos cem melhores livros de 2015 e vencedor do prêmio PEN de tradução. Em 2017, outra tradução de fôlego veio a público, desta vez na França: a casa Des Femmes-Antoinette Fouque publicou Nouvelles – Édition Complete, reunindo 85 textos.

“Hora de Clarice” faz parte desse grande movimento de divulgação internacional da obra clariceana. Nesta edição, entre as atividades fora do Brasil estão o lançamento de A paixão segundo G.H. na Turquia (pela editora MonoKL) e uma celebração na embaixada brasileira na Holanda, onde também se publicará uma tradução do romance. Além disso, em Portugal, também no dia 10, será lançada Clarice, uma biografia, escrita por Benjamin Moser.

Ao passo que cresce a notoriedade no exterior, o reconhecimento em terras nacionais se fortalece ainda mais. Uma das autoras mais amadas do Brasil, além de objeto de extensa e fértil fortuna crítica, Clarice desperta muito interesse, como se pode notar pelos diversos eventos programados para acontecer na semana da “Hora de Clarice”, em várias regiões do país, de São Paulo a Caraúbas, na Universidade Federal Rural do Semi-Árido.

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